Trilhos Serranos

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domingo, 02 fevereiro 2014 14:04

DIANA A CAÇADORA

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Diana, era o nome dela
Perdigueira, híbrida raça
E em tantos anos de caça
Nunca tive melhor cadela

Pequenina, ela chegou a minha casa oferecida por um amigo. Cabia-me nas mãos postas em concha. Fofinha e mimosa, foi o «ai Jesus» do lar, dos pais e dos dois Diana-paradafilhos, ambos em idade escolar. Passou a fazer parte da família. Em tempo de férias viajávamos juntos e todos cabíamos na «Dyane» que tão bem rodava nas fáceis planícies altentejanas como nas íngremes e difíceis encostas do Montemuro e da Peneda-Gerês.
Treinada, desse modo, a andar de carro, não punha uma pata nos estofos. Mal entrava enroscava-se no tapete. A alegria via-se-lhe nos olhos, nos saltos, nos rodopios, nos afagos que pedia e a que correspondia. Perdigueira, não era de raça pura com pedigree registado nos anais caninos, com referência à mais pura linhagem.. Seguramente, pela personalidade e comportamento, corria-lhes nas veias o sangue de «Setter», de «Epanhol» e de «Colie».
Treinada de «pe-que-ni-ni-nha» a saber para que veio ao mundo, espevitados os seus instintos naturais, tudo o que se atirava para longe começou por ir buscar: um objecto, por norma, uma bola de ténis que adquiri, propositadamente. E eu dizia: vai buscar! e ela ia. Depois foram as deslocações aos baldios dos arredores da aldeia. Vai ali, Diana! Vem cá, Diana! Traz, traz cá, Diana! Pára aí, Diana! Para trás de mim, Diana. Avança agora, Diana! Volta cá Diana! Com tanta lição chegou à idade adulta. Nessa aprendizagem tornou-se catedrática a pisar mato e a sentir na pele a diferença que há entre um tojo e uma carqueja, entre uma giesta e um sargaço, entre uma estrada de macadame  e uma vereda sem alcatifa. Aprendeu a distinguir odores vegetais e animais, a correr inutilmente atrás de um melro que se esgueirava por entre giestas e as tentativas frustradas que fazia nas leiras quando queria apanhar todo o tipo de pássaros.

Diana-todaAbriu a época de caça. Apetrechos preparados de véspera, a carrinha Dyane com gasolina q.b. pronta a rodarmos para a serra. A Diana, quando, pela primeira vez, em vez do cajado me viu uma espingarda nas mãos, terá perguntado de si para si, que é isso? Rodopiando e saltando à minha volta de alegria, enroscou-se nervosa no tapete do carro ao meu lado. Ela cedo se apercebera que aquele dia era diferente dos outros dias. Ainda as estrelas brilhavam no azul esburacado do firmamento e já às suas orelhas grandes chegara o latido dos cães que passavam em carros, carrinhas e carretas. Cãozoada, cainhada, caçadores e caçarretas partiam para os montes.  Cedo chegara aos seus ouvidos aquele alarido, aquela ladainha, aquele coro latido, ladrado do animal domesticado desde antanho pelo homem, não importa a raça e o tamanho. Eles ladravam a alegria de voltarem aos matos, de regressarem ao primitivo habitat e ali exercitarem o seu instinto natural e selvagem de predadores. Sabiam que iam à caça.

A Diana, patas na serra, vassourando o terreno à minha frente, de lado para lado, ora para a esquerda, ora para a direita, tinha uma forma única de me dizer: atenção, está perto o que procuramos! Deixava a correria lateral, olhava para mim, seguia em frente, pata ante pata, cabeça esticada, narinas nervosas, corpo alongado, olho vivo, barriga quase colada ao chão a lembrar o gato à caça do rato, melhor, a lembrar leoa, leopardo ou chita, passo a passo, em direcção da presa e, estacando, já está! Imobilizada, petrificada como escultura de bronze, três patas no chão, a mão direita levantada e dobrada para o peito, ali estava ela «amarrada» e a dizer-me: pronto, o resto é contigo.
E era. Pica, Diana, dizia-lhe eu. E ela picava. Espingarda à cara, pum, pum, e lá ia ela buscar a peça caída, perdiz, coderniz, coelho ou lebre. Punha-a aos meus pés e rodopiava de alegria. Isto quando não corria em falso e regressava triste, sem nada, desiludida, a chamar-me caçarreta. Bem lhe lia isso nos olhos. Tinha falhado o tiro.
Teve fama entre os caçadores da minha roda, pois nada lhe faltava do que é mister num cão perdigueiro. Deu bigodes a cães de raça pura, fossem, pointers, setters, navarros, perdigueiros portugueses, e outros tantos com pedigree, com registo da sua linhagem. Peça ferida refugiada em ribeiras, silvados e matas de ásperos codessos, onde alguns desses cães se recusavam a meter o nariz e a pele,  tinha de se haver com a Diana. E se algumas vezes regressou de boca vazia, foi porque os obstáculos lhe impediram de trazer a peça. Chegava ao pé de mim, cabeça baixa, olhos caídos, comprometida, como que a dizer, não dei conta do recado. Os matos não me deixaram. Tem dó, não me ralhes. Eu entendia. Fazia-lhe uma carícia e ela retomava a alegria da caça e do monte. 

Na companhia dela, durante anos, corri quilómetros de serra, atravessei montes e vales, e ela, tepe-tepe à minha frente, sempre a puxar por mim. Resultado: ao fim do dia, ao chegarmos a casa, ela, sem ligar patavina à comida, logo se enroscava no ninho e adormecia. Eu fazia outro tanto, atirava-me febril para a cama e adormecia também.
Dias depois, recuperadas as energias, respondíamos novamente ao apelo da natureza guiados por aquele instinto primevo de séculos que em nós perdurou, aquele instinto primevo de séculos que não desapareceu em todos os cães e homens domesticados.
Morreu. Os meus filhos que cresceram com ela, que, por força de governar a vida, se tornaram adultos longe terra, não assistiram ao seu fim. E foi a pensar neles, nos meus filhos, nos meus netos e netas, que me dei ao trabalho de a «talhar» em madeira naquela postura tão sua, quando, já idosa, me esperava na varanda, sabedora de que só ambos habitávamos o silencioso casarão que já foi cheio de vida e de movimento. Das correias e brincadeiras dos meus filhos, das correrias e latidos dos filhos dela, alguns deles gravados em vídeo e alojados no Facebook. Foi por tudo isso que a enquadrei numa moldura e a pendurei numa das paredes livres da minha biblioteca. Foi por tudo isso que, só,  fiz este registo, porque penso, logo existo.

(cf. texto publicado no meu site antigo, no dia 12-08-2009, no botão «NOVIDADES)

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.