No dia 8 de Outubro deste ano de 2012 nasceu o meu netinho Guilherme. Ora um avô que passou a vida a ensinar, a investigar e a divulgar história, não podia deixar de ficar orgulhoso pelo meu filho ter dado ao seu filho o nome de uma figura lendária conhecida pela sua insubmissão à vénia, pela sua recusa em vergar a cerviz.
Na mesma semana do seu nascimento as TVs comunicaram ao mundo a iniciativa da Cruz Vermelha espanhola fazendo um peditório para acorrer aos mais necessitados. A imagem marcante e sugestiva é aquela do frigorífico vazio, onde resta apenas um ovo que o pai, rosto carregado, triste e silencioso, mas eloquentemente expressivo, distribui pelos filhos sentados à mesa.
Essa imagem, conjugada com o nascimento do meu neto e o mundo que o espera, fez-me regressar aos meus 10/11 anos de idade. Já passaram tantos anos e, numa altura em que o meu currículo de vida já averba quilómetros de escrita, nunca pensei vir a acrescentar-lhe mais uns metros com este episódio distante.
Eram tempos de fins de guerra, tempos de necessidades, de fome, de racionamentos. Todas as manhãs, eu abria as portas das lojas do gado, ovelhas e cabras, e arrancava com elas para os montes levando no bornal um «púcaro de alumínio».
Ao meio da manhã, que nunca mais chegava, era um regalo: mugia uma das cabras para o «púcaro» bebia o leite quentinho e espumoso, passava a língua pelos lábios e deles mesmos, ainda cheios de espuma leitosa, unidos em sopro, arrancava as notas da flauta natural com que nasci. Passava o resto da manhã a assobiar músicas inventadas, espontâneas, em disputa com os passarinhos, músicas jamais ouvidas e registadas em pauta (qual pauta, qual carapuça, eu sabia lá o que era uma pauta?) e a assobiar regressava a casa, onde a minha mãe me esperava ansiosamente para me aconchegar o estômago com uma espécie de hóstia fritada na sertã.
Uma mancheia de farinha de milho «arreloado», amassada com água, atirada para dentro da sertã ao lume, saía dali um «jantar e peras». Na aldeia a refeição do meio-dia chamava-se jantar e a da noite chamava-se ceia. A minha mãe, rosto semelhante ao do pai espanhol que vi agora na televisão, não se ficava calada. Da sua boca, face ao meu olhar suplicante, saíam sempre estas lapidares palavras: «Abílio, não tenho mais nada para te dar!».
Disse intencionalmente «palavras lapidares» e disse-o porque lapidares foram mesmo. Elas não foram escritas numa qualquer lápide de mármore, mas na alma de um filho, criança ainda, que jamais esqueceu a tristeza e a angústia da sua mãe, privada de poder dar-lhe o que ela entendia ser seu dever e obrigação de mãe. Foram palavras que toda a vida me acompanharam e me serviram de aguilhão para que, no que de mim dependesse, não tivesse de repeti-las aos meus filhos, se os tivesse.
Tive e nunca repeti. Nunca foi necessário. Mas convém dizer que por força de ganhar a vida, aos 20 anos abandonei a aldeia, sacrifiquei afectos de pessoas e lugares, atravessei o Atlântico, cheguei ao Índico, venci na vida e, após 17 anos a respirar o ar dos trópicos e a sofrer as febres do paludismo, voltei às origens empurrado pela «descolonização».
Impunha-se, lá como cá, recomeçar tudo de novo. Trabalho, estudo, trabalho, estudo, estudo e mais trabalho. Muitas férias ficaram por gozar, muitas viagens por fazer, muitas farras recusadas. Impunha-se recompor a vida e proporcionar aos dois filhos, que entretanto nasceram, o que era dever dos pais dar-lhes. E foi assim que, com os afectos de pai e mãe, cresceram. Nada de essencial à vida de crianças lhes faltou. Amor, afectos e afagos muitos. Barriguinha cheia sempre. E brinquedos q.b.
Estudaram, formaram-se, tornaram-se homens, educados no binónio liberdade/responsabilidade. Cada um deles me recompensou com uma neta, o Valter com a Mafalda e o Nuro com a Marta. A elas se junta agora o Guilherme irmão da Mafalda.
E posso garantir que, ao criá-los, nunca sofri a dor, o coração oprimido, que adivinho ter sofrido e sentido a minha mãe nas circunstâncias acima referidas. E espero que eles não venham também, em relação à sua prole, a passar pelo que passou a sua avó paterna, Gabrielina.
Mas da altura, lembro-me também a minha mãe, sua avó, dizer que «era um milagre» eu sair em jejum de casa com o gado e a casa regressar assobiando, feliz e contente, totalmente alheio e desligado das preocupações e cuidados que a afligiam. E para bem se entenderem tais angústias e preocupações não devo omitir que eu era apenas uma das sete bocas que ela pusera no mundo, bocas, todas elas, à espera de mastigarem alguma coisa que milagrosamentente ela teria de desencantar para enganar a fome a todos nós acometia. Devo dizer também, em boa verdade, que aquela hóstia de milho, frita na sertã, era para mim um manjar. E que me sabia bem trincá-la, pois, fosse pela fome, fosse pela massa de que era feita, ela não se agarrava ao céu-da-boca como acontecia com a hóstia de pão ázimo nos domingos de comunhão.
Nessa altura ensinavam-nos na catequese que a hóstia não se podia «mastigar» ou «trincar» e eu bem me lembro das voltas que a língua dava na boca para evitar que aquela rodela de farinha sem sal chegasse aos dentes. Se tal acontecesse era um pecado que teríamos de ir confessar de joelhos aos pés do padre. E naquela minha idade, alma infantil e ingénua, para mim era mais incómodo a hóstia colar-se ao palato, do que a miséria e a fome que sentiam as crianças e adultos na Europa, daí andar sempre a assobiar, jeito que me ficou para toda a vida. Ainda hoje, passeando pela serra, à caça ou a fazer seja o que for, dou por mim a assobiar com a mesma naturalidade que o passarinho, poisado no ramo da árvore, lança o seu gorjeio.
Lembrar tudo isto, no tempo em que me nasceu um netinho, o GUILHERME, numa altura em que Portugal, a Europa e o mundo chegaram ao ponto dos pais não poderem criar os filhos com o mínimo de dignidade humana, não poderem dar-lhes sequer a alimentação necessária, ter uma vida condigna, creio ser a memória a acicatar-me o engenho para esgrimir os argumentos históricos de insubmissão, ressuscitar o velho herói lendário, botar a mão à «besta», retesar as cordas, apontar o alvo, baixar a pontaria, deixar a maçã intacta e, de propósito, vazar com a flecha, todas as cabeças da besta, da hidra que conduziram o mundo a este estado de coisas: para uns tantos (poucos) a lauta mesa posta recheada de iguarias e de flores. Para outros (muitos) um só ovo dentro de um frigorífico a dividir pela a família inteira, sem um raminho de salsa. BASTA! Insubmissos, digamos BASTA! Para que os pais e mães de todo o mundo nunca digam aos seus filhos o que a minha mãe angustiada, numa ignota aldeia do globo, me disse um dia, ao servir-me aquela hóstia frita de milho, olhando os meus olhos suplicantes: «Abílio, não tenho mais nada que te dar».
SEGUNDA PARTE
A POBREZA-2
Constatei pelas reacções públicas e privadas à forma e ao conteúdo do texto que aqui publiquei anteriormente, relacionado com um episódio da minha infância, que neste «mundo cão», neste mundo em que o «ter» se sobrepõe ao «ser», ainda há pessoas com sensibilidade e empatia bastantes para se porem no lugar de outrem e chamar a si a dor do coração partido e impotente da minha mãe, face às dificuldades que os meus pais e tantos outros, por esse mundo fora, tinham em alimentarem a prole, nesses tempos do pós guerra.
Foram tempos maus que só vividos e sentidos podem ser contados. Mas desse tempo me lembro de outro episódio que, ao contrário do primeiro, me custou a escrevê-lo pela carga emocional que comportava, este o tenho referido mil vezes a título de risota e galhofa quando, na serra da Nave, eu e o meu primo Manuel Carvalho Soares, comparsa de caçada, há um bom par de anos, colocámos as espingardas no descanso e nos sentamos para o almoço.
Do bornal, constam geralmente iguarias como o presunto e mais peças de fumeiro, juntamente com toda a gama de enlatados que a indústria actual põe no mercado, desde o polvo às lulas e latas de sardinha.
Pois bem e voltando à vaca fria, nesses meus tais 10/11 anos de idade, regressava eu com as cabras e ovelhas das bandas do Rio Mau e, na Touça, depois de passar aquele caminho fundo que liga ao alto do Santo António, deparei com um grupo de caçadores sentados nuns penedos, a almoçarem. Não eram de Cujó. Esses eu os conhecia todos e os cães perdigueiros, bem tratados, nédios de pelo, distinguiam-se claramente dos cães de Cujó, todos coelheiros e quase sempre de costelas vincadas na pele, prontas a serem contadas à vista por qualquer aluno de anatomia, dispensado ele o tacto em tal tarefa. Mas, como ia dizendo, ao passar perto deles, descalço e roto, não sei se monco amarelo a pingar do nariz, um deles pergunta-me de supetão:
- Ó Menino, tens fome?
- Não senhor, respondi-lhe sem hesitar.
Mas um adulto, vindo da cidade do Porto, vim a sabê-lo mais tarde, bastava olhar para a minha triste figura e ver que só a vergonha de dizer sim, me levou a dizer não.
- Está bem, mas olha, toma lá esta lata de sardinha e quando tiveres fome, abre-a.
Deu-me a lata de sardinha acompanhada de uma chave. Não me lembro se agradeci ou não. Sei é que a pouca distância do grupo, pus-me a mirar a lata e a vareta que numa das extremidades imitava uma chave em triângulo e na outra tinha uma ranhura como o buraco de uma agulha das grandes. Para que serviria aquilo? Mirando e andando, ansioso por descobrir como chegar ao produto enlatado, os olhos mais atentos ao objecto do que ao caminho, acabei por dar um pontapé numa pedra e o resultado foi abrir um golpe no dedo grande do pé, pele levantada em alçapão, e o sangue a fazer bolinhas na poeira do caminho. Maldita lata! E assim, a viver um momento paradoxal, ansioso por comer o petisco e amaldiçoando a lata que o continha, cheguei à capela de Santo António. Sentei-me, encostei o alçapão da pele ao dedo, comprimi-o por algum tempo e aguardei que ele ficasse onde devia. Depois voltei à lata. Chave tinha eu, mas olho da fechadura é que não havia. E mira daqui, mira dali, lá descobri um pequenina língua triangular a descer junto ao corpo da lata. Endireitei-a e certifiquei-me que a ranhura da chave encaixava nela perfeitamente. Encaixei-a. E agora? Eu nunca tinha aberto uma lata de sardinha e ignorava o gesto simples de rodar a chave para a tampa começar a abrir e a mostrar o produto. E estava nesse palpos-de-aranha quando me lembrei da palavra «milagre» que minha mãe dizia por ver-me sempre a assobiar de estômago vazio. Milagre? Milagre fazem-no os santos e eu estava encostado à ermida de Santo Antonio. Pedi-lhe o milagre de me dizer como abrir aquela «caixão de lata». E fez luz. Comecei a rodar a chave, não sem esforço, pois, por azar meu, aquela era uma das latas de tampa bem soldada. Mas, com esforço, lá consegui chegar às sardinhas. Eureka! (sabia lá eu o que significava esta palavra?) E ali mesmo, no alto do Santo António, a ver Cujó, regalado a olhar para a povoação que nem um rei a olhar para o seu reino, esvaziei a lata, lambi-a, fiquei todo lambuzado, pois nem o óleo desperdiçei. Depois prossegui o regresso a casa, sempre a assobiar, atrás das ovelhas e das cabras… tlim…tlim…de campainhas ao pescoço. A minha mãe, deve ter notado a diferença. Eu não fui tão sôfrego a mastigar a hóstia de milho frita na sertã e, antes que ela me perguntasse se estava doente, contei-lhe o sucedido.
-Ainda há gente boa no mundo, Abílio, gente boa, um milagre.
Não lhe contei foi o pontapé que dei na pedra e o rasgo na pele resultante disso. Nem valia a pena. Por milagre o alçapão da pele já estava colado, já não havia sangue e eu sentia ali apenas um formigueiro sem dor nem incómodo.
Mas formigueiro, dor e incómodo sinto hoje e muito, face aos tempos que correm. E em vez de uma chave para abrir uma lata de conserva, apetece-me ter forma e força bastante para fechar a «caixa de Pandora» e levar à forca aqueles que a destaparam. Ainda que saiba que, lá no fundo dela, resta a Esperança