APESAR DE TUDO...PROSSIGO...
Neste tempo, em que tanto se fala de mobilidade humana e do retorno aos “transportes ferroviários”, vem mesmo a calhar falar de um SONHO que, em 1929, se alimentou nestas terras do interior, hoje ditas “desertificadas”, "sem gente", de “baixa densidade demográfica”.
E, para isso, nada melhor do que botarmos mão aos jornais antigos, aos jornais do tempo, onde os SONHADORES DE PROVÍNCIA deixaram rasto em letra redonda, mais especificamente no jornal “O Castrense” impresso no prelo ALBION que, em 2014, sob a minha orientação técnica, foi restaurado e exposto no Museu Municipal de Castro Daire. Nunca me canso de dizê-lo, que mais não seja, para acirrar os ânimos de todos os que, sentados nas cadeiras do PODER LOCAL, preferem o escuro do “silenciamento” à iluminação da informação, da história e cultura da nossa terra. Ainda bem que nesta minha página não metem bedelho.
Comecemos pelo CONVITE feito n’ “O Castrense” de 10 de março de 1929. Com efeito, na última página, o então Presidente da Comissão Administrativa do Município, Dr. João Simões de Oliveira, convidava todos os “habitantes deste concelho” a reunirem -se no dia 12 do corrente, nos Paços do Concelho, pelas 14 horas, a fim de se inteirarem do “novo traçado do caminho de ferro do Vale do Vouga que pretende ligar S. Pedro do Sul com Lamego”. (Cf. Recorte do jornal)
E a população não se fez rogada. No dia e hora marcada lá estava ela pronta a ouvir novas. É isso que nos diz o mesmo jornal na sua edição seguinte, 17 de março, n. 662, primeira página.
Para discutir assunto de tal importância formou-se uma MESA presidida pelo Dr. João Marques de Almeida, secretariado pelos senhores Dr. Pio de Oliveira Figueiredo e António José Loureiro de Almeida.
O Presidente da Comissão Administrativa, Dr. João Simões de Oliveira, expôs à mesa e à assembleia o assunto da reunião, informando que recebera um ofício do Vale do Vouga (ao qual já respondera) cujo teor resumia assim:
“(...) a companhia ainda não fez estudos definitivos, mas um simples reconhecimento, pelo qual verificou que o traçado mais fácil seria sair de S. Pedro do Sul, subir pela margem direita do Vouga, até alturas de Ribafeita, indo dali ao Carvalhal e a Castro Daire. Mas que há quem defenda outro traçado que seria sair de S. Pedro do Sul, seguir pelo rio Sul até ao Paiva e afingir esta vila. Que a companhia agradecia quaisquer indicações sobre o traçado a seguir e a considerar nos estudos a que procederá quando lhe for dada a concessão que já pediu ao Governo”.
E logo ali se colherem as seguintes e diversas opiniões, a saber:
O senhor Dr. Amadeu Fernandes Poças sugeriu que a linha, “vindo ao Carvalhal (...) deve sair de Viseu para facilitar a ligação com a sede do distrito”.
Diferentemente pensavam os senhorers Manuel C. Da Cunha Marado e António de Matos Laranjeira que se pronunciaram a “favor da linha por Sul e freguesia de Reriz”.
O senhor António J.L. De Almeida entendeu que se devia “aproveitar a ocasião que se oferece e que se deve pugnar pelo traçado mais e económico e, portanto, mais viável”.
E claro, na oportunidade, o Presidente da Comissão, Dr. João Simões de Oliveira, aproveitou para falar dos projetos das estradas em curso, nomeadamente do Carvalhal e ponte de Arcas, ao que o Dr. Pio Figueiredo retorquiu dizendo não viera à reunião para ouvi-lo falar dos seu projetos municipais, nem aplaudir ou atacar a obra levada a cabo pela Comissão, apesar de ser evidente que ela “nos últimos tempos tem sido grandemente perniciosa para os interesses de todos”, a bem dizer, desde o “28 de Maio”.
Abro aqui um parêntese para lembrar os amigos que me têm acompanhado nestas minhas investigações históricas, nomeadamente as que leram o meu livro “A Implantação da República em Castro Daire-I”.
Esta alusão ao “28 de Maio” nada mais era do que trazer à tona a data da revolução de 28 de maio de 1926, aquela que apeou o Dr. Pio Figueiredo das cadeiras do poder autárquico e no seu lugar pôs o Dr. João Simões de Oliveira. Tinham passado três anos, mas as divergências políticas mantinham-se vivas e deixaram disso nota impressa. De pouco valeria, porém. Os monárquicos, e todos os cidadãos afetos à política do Estado Novo, manter-se-iam no poder até ao 25 de Abril de 1974.
E a legenda que ficou lavrada, a maceta e escopro, no padrão levantado à frente da Igreja Matriz de Cujó - ANO XXIII DA REVOLUÇÃO NACIONAL - aquando da independência da freguesia, sendo então Presidente da Câmara o Dr. Luiz de Azeredo Pereira, não estava ali por acaso e tão pouco era de inspiração local. Os erros ortográficos deixados na pedra (nas duas legentas aqui apresentadas) são a prova irrefutável de que os artistas de Cujó eram, seguramente, mais expeditos na cantaria do que na história e na escrita. Uma das legendas estava e está, claramente, a exaltar a data da viragem política que pôs fim à República e deu início à Ditadura.
Dito isto, fechando o parêntese, retono o assunto da reunião referido no jornal “O Castrense” para dar a palavra ao Dr. Pio Figueiredo. Ele, depois das picardias do momento, expressou a sua opinião dizendo que “a linha a construir saisse de Viseu, viesse ao Carvalhal e Castro Daire e seguisse depois pelo Vale do Paiva abaixo, entroncando com a linha em projeto do Porto a alturas do Marco de Canavezes. Mas não podendo seguir esse traçado, e querendo o Vale do Vouga ligar-se à linha de Vila Franca das Naves, o mais conveniente seria sair o caminho de ferro de Viseu para esta vila (passando no Carvalhal, como o Vale do Vouga pretende) e seguindo daqui a Lamego, em vez de ir a Tarouca”.
Depois de tão animada discussão, com intervenções das pessoas gradas de terra, sem se chegar a uma opinião unânime, o jornal, à laia de conclusão, remata assim:
“Sobre o traçado de Castro Daire para diante todos concordam em que o melhor era ir a Lamego e não a Tarouca. Sobre o traçado até Castro Daire ouve divergências, como aliás é natural: as pessoas de algumas das freguesias do Paiva que estavam presentes, pronunciaram-se pelo traçado do Sul, que é naturalmente o que mais convém. Aos seus interesses; outra corrente, que é certamente a que tem mais razões, deseja que a linha saia de Viseu, fazendo-se, assim, a ligação com a sede do distrito; todos porém estão de acordo em quererem o caminho de ferro por um lado ou por outro”. (O Castrense”, n. 662, de 17-03-1929)
Resulta clara a intenção dos intervenientes, cada qual a “chamar a brasa à sua sardinha”. Atitude bem captada pelo redator do jornal. Um atavismo que o tempo não curou. Hoje como ontem, são muito raros os cidadãos que sacrificam os seus interesses pessoais, de amigos e clientela política ao interesse da “coisa pública”.
Estávamos em 1929. Três anos após a “Revolução Nacional”. O Estado Novo emergente. E o projeto de ligação de Castro Daire e outras terras beirãs por via férrea, não passou disso mesmo. De um sonho. Éramos um país agro-pastoril de baldios, de leiras, hortas e quintais. Combóios para quê?
Hoje todos os políticos bradam e berram contra a “desertificação do interior”. Dão-se conta da existência, no país, de zonas de “baixa densidade demográfica”, dizem. Mas poucos se dão ao cuidado de explicar as razões disso. Poucos chamam a si a responsabilidade política levada a cabo durante séculos e assumem que essa realidade se não deve ao “direito divino”. Existe por opções políticas e humanas centralizadoras. E mesmo os políticos que da periferia abalam para o Terreiro do Paço prestes se põem a cantar os “heróis do mar” e a esquecer os “heróis da terra”. Os que, contra ventos, calores e codos, mantiveram este pedaço de Portugal de pé, mesmo sabendo que as rodas do “combóio da civilização” faiscavam, lá longe, nos carris citadinos. Um país a duas velocidades. O da “máquina a vapor” e o da “mula de almocreve”.