Fiquei, de facto, perplexo e tinha razão para isso. Então não é que, tendo ele conhecimento de um extenso e pormenorizado «contrato de arrematação» das referidas pinturas, assinado pelos oficiais da Câmara e pelo mestre pintor Diogo Magina, resolve simplesmente ignorá-lo, relegar um documento autêntico que informa categoricamente sobre tudo o que se relaciona com os quadros em questão - materiais, medidas, custo, tempo de execução, pintor, etc - para dar voz ao trecho vago e impreciso, se calhar não documentado, inserto numa monografia?
Ora, foi face a essa omissão e a essa estranha atitude de investigador que fiz chegar ao «Campaniço» (nº 40 Janeiro/Fevereiro de 1998) a minha surpresa, repondo ali novamente o texto do contrato, terminando as minhas considerações dizendo «haver razões que a razão não entende». E por aí me fiquei.
Acabo agora de receber o «Campaniço» (nº 41 Janeiro/Fevereiro 99) e não tendo sido meu propósito alimentar qualquer polémica sobre o assunto, eis que leio na primeira página: «POLÉMICA - Quadros da Igreja dos Remédios, quem foi o autor? Alves da Costa rebate Abílio de Carvalho».
Alves da Costa rebate quem? Pensei que Alves da Costa viria carrear novas provas, novos documentos e argumentos ou, então, dizer que por qualquer razão lhe escapou o «contrato de arrematação» que não era obrigado a ler tudo o que se publicava no «Castra Castrorum» em que ele e eu colaborávamos e que, face ao seu conhecimento tardio embora, emendava a mão. Mas depois disso o que vejo eu? Isto:
1 - Escalpelizando agora o documento e sem dizer porque o omitiu no seu livro, ele continua a «admitir a hipótese de ter sido o pintor Diogo de Sousa (...) o autor da obra em discussão».
2 - Acrescenta: «quanto mais releio o contrato de arrematação entre os oficiais da Câmara de Castro Verde e Diogo Magina, mais me convenço da possível confirmação da minha hipótese...»
3 - Formula hipóteses (muitas) a partir da leitura do «contrato de arrematação» e, com a gentileza e fidalguia de trato que o caracteriza, aconselha-me a «não aceitar dogmaticamente o que o documento parece documentar, mas indagar o que, não estando explícito, está implicitamente nas entrelinhas».
Portanto a Sul, nada de novo. Nada que possa alimentar a polémica anunciada na 1ª página do «Campaniço». Por isso as minhas considerações sobre os quadros que retratam alguns passos da batalha de Ourique, terminam aqui. É que eu tenho outras batalhas a travar por estas bandas de Castro Daire. E em Castro Daire, como em Castro Verde, já todos perceberam, desde o simples leitor, estudioso ou professor, se calhar muitos dos meus ex-alunos e ex-alunas de que a História se faz com documentos. E quando o teor dos mesmos tem a consistência daquele que eu reputo de fidedigno - o contrato de arrematação das pinturas - não há dúvidas, hipóteses e convicções que sustentem o contrário do que nele consta.
E, já agora, porque Alves da Costa me aconselha a «não aceitar dogmaticamente o que o documento objectivamente parece documentar, mas indagar o que, não estando explícito, está implicitamente nas entrelinhas», sugerindo que eu trato com ligeireza o teor dos documentos e deles tiro conclusões apressadas, deixo aqui, ressalvando alguma dose de imodéstia, mas a tal sou obrigado, o modo como o Professor Doutor Carvalho Homem da Universidade de Coimbra (que não conheço pessoalmente) depois de analisar os trabalhos que publiquei, vê o meu relacionamento com os documentos e com a História:
«(...) o senhor Dr. Abílio pereira de Carvalho revela-nos uma tão grande maturidade heurística e hermenêutica, um tão acendrado amor à sua Região, um tão feliz espírito de síntese histórica, uma postura tão digna de investigador sério, que apenas deverei instar a gente moça de Castro Daire a aproveitar o melhor possível os seus préstimos e a sua destreza científica».(Gazeta da Beira» (nº 178 de 21 de Julho de 1992)
Pois é. Tal como se espreme uma esponja até ela deitar a última gota, também eu faço mil perguntas aos documentos. Formulo mil hipóteses, cotejo informações conexas e só depois adianto as minhas conclusões. Foi o que fiz relativamente às pinturas em apreço.
A dúvida metódica faz sucumbir a dúvida pirrónica.
Mas já que o meu amigo Alves da Costa me aconselhou a ler com mais cuidado os documentos, deixe-me dar-lhe a prova de que faço isso mesmo, de que nem vírgulas e pontos finais escapam à minha observação quando se trata de cotejar informações, de dar sentido às coisas, de, enfim, reconstituir a História:
Já reparou que substituindo o «ponto final» que se segue a Magina no texto que transcreveu da monografia por um «que relativo», o sentido da frase era totalmente alterado e ficava de acordo com o teor do «contrato de arrematação»? Ora veja: «Diogo de Sousa, natural de Loulé, pintor que foi mestre de Diogo Magina [que] fez as pinturas da Igreja de Castro Verde».
Sendo assim, por que razão hei-de eu aceitar dogmaticamente o texto inserto numa monografia (texto já impresso), vago, impreciso e, se calhar, sem apoio documental, sem contrapor a hipótese verosímil de ele próprio estar mal redigido e/ou mal pontuado?
Pense nisso, caro amigo. Não aceite dogmaticamente o teor desse excerto e procure junto do autor, se lhe for possível, a que documento original teve acesso, qual é a fundamentação da sua asserção ou se, de facto, há ali um ponto final a mais e um pronome relativo a menos. E olhe que, até prova documental em contrário que invalide ou torne apócrifo o «contrato de arrematação» das pinturas (contrato que o meu amigo omitiu no seu livro e este é que é, para mim, o pomo da questão) feito entre os oficiais da Câmara e Diogo Magina, mantenho que foi este o autor dos quadros pendurados na Igreja dos Remédios.
Sem qualquer dogma. Pois sou, visceralmente, contra todo o tipo de dogmas. (Cf. «Campaniço» nº 42 de Março/Abril de 1999)
Nota: O Dr. Alves da Costa, no número do «Campaniço» onde exponho as razões supra, insiste em manter a sua tese, sublinhando o «papel de apontamentos feitos por Luís António Pereira e apresentados ao letrado Doutor Ouvidor», como se eles se reportassem a um «risco» prévio dos quadros feito por Diogo de Sousa. Na minha óptica esse «papel de apontamentos» mais não é do que o registo das cenas históricas que deveriam figurar na obra que Diogo Magina arrematou. Só isso.
NOTA: migrado do meu velho site hoje mesmo para este novo.