O MUNDO DE ONTEM
Lavrado numa pedra retangular, dois furos paralelos abertos interiormente na vertical, integrado num dos lados de uma poça, assente ao alto, vários nomes encontrei para designar a mesma coisa. E que coisa é essa? Nada menos do que uma peça utilizada no nosso sistema de rega tradicional, cuja cantaria incorpora, em si própria, muita imaginação, inteligência e arte humanas.
Sempre foi assim, dito pelos sábios: “as dificuldades aguçam o engenho”. E talvez por isso, “engenho” tenha sido o nome mais colado nessa peça, ainda que também outros tenha. Muitos foram os meus informantes camponeses a chamarem-lhe isso mesmo. Outros, porém, batizaram-na de “pedra poçanheira”, “pedra de registo” “pedra de tubos”, “pedra-sifão” e até “assobiador”, nome que lhe adviria do ar a escapar-se do “respiro” situado no topo, na recrava onde os dois furos gémeos, um no interior e outro fora, marcavam encontro e, por vezes, era necessário “sangrar”. Todos tinham conhecimento do seu uso, dos seus efeitos práticos, mas sobre as leis da física implicadas no seu funcionamento, nem pensar.
Como e por que nasceu essa obra de arte?
A falta de água corrente suficiente para regar os campos, hortas e hortejos, obrigou o homem a estancá-la, a empoçá-la, às vezes, não muito longe das nascentes, até mesmo à boca das minas que esventravam a terra de encontro às nascentes. A intenção era poder, de seguida, fazer uso desse precioso líquido em volume e quantidade bastantes, satisfazendo os objetivos perseguidos.
Reconhecida essa necessidade e posta em prática a represa da água, impunha-se ao agricultor a obrigação de calcular o tempo que levaria a encher a poça, a represa, o tanque, fosse o que fosse, em terra batida ou pedra casada, selada com barro, lama, ou qualquer argamassa improvisada, por forma a não se desperdiçar uma gota que fosse.
E tal cuidado levava-o a ter de ir abrir uma poça às tantas da noite, a qualquer hora do dia, digamos fora de horas, ou mesmo suspender outras tarefas para fazer isso. Uma chatice. Vinha mesmo a calhar a descoberta e a aplicação prática de um “engenho” que libertasse o camponês dessa obrigação. Um “engenho” que, feito com a matéria-prima à mão de semear, v.g. a pedra (a tubagem plástica e similares eram invenções do porvir), instalado que fosse, dispensava o proprietário dessa tarefa: esvaziar automaticamente a represa depois de cheia e, sem perder gota, a poça continuar a encher-se, a esvaziar-se e a regar o mesmo terreno, ou terreno diferente. Bastava para tal que previamente se encaminhasse o água para outro espaço através de regos e talhadouros abertos a preceito em lameiro ou terra de semeadura.
Eureka!
Eis senão quando, algures no tempo, sem patente registada em cartório notarial, um qualquer “engenheiro” ligado ao campo e à agricultura, imaginou uma pedra com dois furos paralelos abertos na vertical ligados, no topo, através de uma recrava e uma tampa. Um deles ficaria mergulhado no interior do reservatório, junto ao fundo, e o outro ficaria da parte exterior com a boca de saída, o bocanheiro, a um nível mais baixo da boca do seu irmão gémeo, no interior do tanque.
Assente que a pedra fosse no local escolhido, os dois furos unidos no topo com uma tampa assente numa recrava lavrada a preceito, os torrões, arrancados no lameiro vizinho, faziam o resto: uniam e fechavam hermeticamente os dois furos. Feito isso, eles estavam prontos a desempenharem a função para que foram concebidos.
A água estancada começava a avolumar-se na poça e à medida que ia subindo no seu interior, no interior do furo mergulhado subia igualmente. Quando atingia o topo, a única escapatória que tinha era a boca do seu irmão gémeo com ligação ao exterior. Unidos por este abraço líquido, expulso que fosse totalmente o ar, irmanados estavam para cumprirem a sua função: a água começava a esguichar no bocanheiro exterior da poça até ela se esvaziar de todo. Findo isso, o processo repetia-se automaticamente. Um descanso. O lavrador estava liberto dessa tarefa. Dormia descansado. Um mistério. O único cuidado a ter era “entarroar” bem a ligação do topo, por forma a não entrar ou sair ali pitada de ar. O resto ficava por conta da natureza, da pressão atmosférica e força da gravidade.
Mas nenhum dos meus informantes, mãos calejadas, semianalfabetos, anos seguidos a fazer uso desse “engenho”, desse “poçanheiro” sabiam dos inventos e teorias hidrostáticas de Arquimedes, de Leonardo de Vinci, de Pascal e outros. E o DR. GOOGLE, o maior sábio do nosso tempo, neste século XXI, é pouco eloquente sobre este “engenho”. E no Youtube eu não encontrei qualquer exemplificação ou descrição do seu funcionamento. Creio até que fui eu a romper as portas daquele castelo com os vídeos que ali alojei sobre tal matéria com vista a contribuir para o conhecimento do mundo rural, das suas artes, trabalhos e manhas..
Fi-lo porque eu me lembrava muito bem dele, colocado numa poça do meu padrinho, João Caixeiro, em Cujó, no sítio do Mancão, onde tinha um lameiro. Ía para ali com o meu primo Zé Caixeiro, alguns anos mais velho do que eu (já faleceu) e ficava fascinado quando a água começava a jorrar para fora da poça sem qualquer intervenção humana. A poça a esvaziar-se pelo bocanheiro, a água a mudar de sítio e a rastejar como cobra pelo rego adiante. Era, para mim, um mistério.
E mistério continua a ser para alguns dos meus informantes de todas as idades. Sabem todos da sua existência, conhecem-no, sabem que esvazia tanques, minas e poças, mas ignoram as leis do seu funcionamento. Nem lhes exijo que saibam. Grato lhes estou eu bastante pelas informações dadas. Este meu trabalho também é deles. Ele responde ao meu fascínio infantil e lança alguma luz sobre um “engenho”, sobre o “poçanheiro” que tão usado foi no sistema de rega nos nossos campos. Não era peça que qualquer cabaneiro possuísse. Era cara pela arte e custo incorporados. Hoje está remetida ao esquecimento e fora de uso. Não passa de um um DOCUMENTO HISTÓRICO digno de museu. Como hino à sua vida e às vidas camponesas que serviu, eu aqui divulgo as suas fotografias, a sua descrição e o seu funcionamento. Era um dever meu fazê-lo. E também os links dos vídeos que fiz e alojei no Youtube.