Quem pisa estes trilhos-serranos fica ciente da relatividade das coisas e de quanto vagaroso era o “tempo” em tempos idos e quanto ele, esse personagem, indispensável companheiro do historiador, estugou o passo em tempos próximos. O tempo, o espaço e as coisas. As atividades, as ferramentas e os utensílios. Já falei no “sombreiro” e/ou “guarda-sol”, nomes que resistiram séculos (quantas gerações?) a esgueirar-se, na linguagem corrente, por entre os pingos da chuva, mesmo que usados para proteger de chuva e não do sol. E dei o exemplo daqueles dois amigos - conversa a que assisti, neste ano de 2019 - quando um emprestou ao outro o seu “sombreiro” para ele se abrigar da chuva que caía copiosamente.
Questão do nome, do referente e sua função. E a função a batizar, a dar o nome ao objeto designado. O caso flagrante foi o “Zic-Zac” utilizado pelo artífice itinerante que, de tralha e múltiplas profissões à costas, visitava esporadicamente, as aldeias disposto a “compor louça, guarda-sois e penicos, zic-zac”. Andarilho, calcorreador de montes e vales, pedia meças a alguns académicos de Coimbra, no respeitante ao conhecimento de geografia física, hidrográfica e humana. E colo aqui o «fac-simile» do texto que o meu amigo António Martinho Santos Teixeira, natural de Cujó, com 72 anos neste ano de 2019, escreveu, respondendo por «Messenger» a uma pergunta minha, visando confirmar as tarefas deste artífice. Ele, atento ao mundo de ontem e de hoje, não só identificou as funções do CANTÉS, mas esclareceu, e bem, o sítio onde ele, esporadicamente, montava a sua oficina. Ora vejam a reprodução da pergunta e da resposta na imagem do lado esquerdo.
Já mostrei que, em Cotelo, povoação que pertence à freguesia de Gosende, concelho de Castro Daire, diferentemente do que sucedia em Cujó, o pregão anunciador da chegada do artífice àquela aldeia era “compor louça, gurarda-sois, zac-zum”, excluindo, portanto, os “penicos” e substituindo “zic-zac” por “zac-zum”, termo este que, semelhantemente ao primeiro, não deixam de encontrar balanço e balouço na cantilena que, também ela, tal como toda a gente serrana, curtida por calores, frios, neves e codos de gélidas invernias, se repercurtiu, em eco, por estas encostas do Montemuro, na sua vertente paivota. Eis duas versões diferentes, mas aproximadas:
Menina dos caracóis
Não vá com qualquer um
Proceda sem que se saiba
Venha comigo p’rá Paiva
Compor louça e guarda-sóis
Zac-zum, Zac-zum.
Menina dos caracóis
Não difame o seu nome
Nem se ponha ao ataque.
Faça de mim seu home
Não importa que se saiba
Venha comigo p’rá Paiva
Compor louça, guarda-sois
E penicos, Zic-zac...zic-zac.
E outras composições cujos versos, mudando embora as palavras e a sequência, ecoaram tempos e serra fora, graças à sua evidente conotação erótica : “zic-zac-zac-zum”. E não se pense que tal conotação se ligava somente a esta ferramenta de perfuração. Outras ilustram esta crónica que gozavam de igual fama e malícia.
Assim, e apesar desta pesquisa me trazer à evidência variações diferentes e ampliadas daquela que me ficou na memória desde menino (aproximam-se os meus 80 anos de vida) nomeadamente, “zic-zac” e não “zac-zum” optei por manter, e usar em título, o nome que me foi “brocado” na mente, enquanto ouvia e via em ação o engenhoso utensílio usado para abrir furos em pratos, malgas, penicos e panelas de barro, somente rachadas ou já escaqueiradas de todo.
Nessa minha idade de inocência, o gesto do artífice e a sonoridade rotativa do “pião” não tinham para mim ponta de malícia, maldade ou outras artimanhas humanas, próprias dos adultos. E se eu recuperei esse artefacto histórico na minha oficina usando um “pião”, neste meu trabalho de campo, um ancião, de 96 anos de idade, neste ano de 2019, não se lembrando do nome do objecto e da cantilena paivota, com sorriso malicioso bastante, fez o gesto com dois dedos: “assim, ao lado de um fuso com maçaroca que rodava...zac-zum, zac-zum”.
Boa analogia esta com a “maçaroca”, dada a forma ovoide do pedaço de madeira que, no torcer e distorcer das correias ou dos fios enrolados na vareta central, com dois dedos apenas, acima e abaixo, à força humana e da inércia, o artífice, com engenho e arte, no momento certo lhe dava rotação nos dois sentidos.
Em CUJÓ, como já disse, na minha longínqua meninice e juventude, o milagreiro itinerante que dos cacos refazia obra inteira (tarefa hoje muito ligada aos especialistas de restauro, encarregados de reconstituir artefactos arqueológicos encontrados em campos de estudo) esse milagreiro, dizia, de tralha às costas, tapasse ele, com estanho, um furo indesejável numa vasilha de lata, fizesse ele um funil novo de folha flandres, ou pusesse uns agrafes em louça rachada ou partida, era designado por CANTÉS, nome que retive na memória e mantive na crónica anterior, não só porque me encantava a melopeia do pregão “compor louça, guarda-sóis e penicos, zic-zac”, mas também porque encantado ficava a ver e ouvir aquela ferramenta em ação manipulada por esse artífice de tanto saber: o cantés. E sabendo o que sei hoje, mais digo quanto desencantado estou no mundo que me conduziu à situação de “inocência perdida”.
Os vídeos que fiz sobre o assunto são ilustrativos do que escrevo e digo. Na arte de perfurar peças frágeis e quebradiças, da verruma ao “Zic-zac” vai um salto de gigante. E quem muito bem sabia disso era ele, o CANTÉS, nome e profissão sobre as quais já discorri na crónica precedente.
Profissão não dicionarizada, aglutinadora dos múltiplos saberes práticos (ele era o latoeiro, ele era o louceiro, ele era o cosedor de pratos, malgas e penicos, ele o era funileiro, ele era o remédio dos guarda-sóis doentes, ele era tudo) talvez estas minhas reflexões venham a ser um contributo para a sua entrada nos dicionários, e bem assim o “zic-zac”, a ferramenta que ele usava e integrava o pregão da sua chegada, não com a conotação erótica que o povo veio a dar-lhe, colando-o à “menina dos caracóis”, mas antes como rótulo publicitário e diferenciador da tecnologia que deixara para trás a arcaica verruma e de cujo uso resultava melhor serviço, mais garantia e mais segurança.
Especulação minha? Não. Quem viu, como eu vi, os tipógrafos fazerem questão de deixarem em letra redonda, no rosto de alguns jornais: “Typographia a Vapor, Casa Moderna, S. Pedro do Sul”, entenderá que anunciar as tecnologias de ponta usadas nos serviços prestados, não são andaços dos tempos atuais, amplamente difundidos pela televisão. O empresário ou profissional inteligente, analfabeto que fosse, em tempos idos, sempre usou processos publicitários para atrair a clientela. Um pregão oral, cantado, gritado, berrado, falado, rimado ou não, é isso mesmo. E anunciar, de forma tosca ou elaborada, a posse e uso do “zic-zac” ou “zac-zum”, na arte de furar algo sensível e quebradiço, era anunciar a tecnologia de ponta (literalmente de ponta) e garantia de melhor serviço. O resultado da sua manipulação já estava a léguas do resultado saído da prestimosa e arcaica verruma
vídeo:
https://youtu.be/gnqMC177zv0