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terça, 12 fevereiro 2019 15:57

CUJÓ - MATANÇA DO PORCO

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RITUAL DE VIDA E MORTE

Arrancado à loja, sita por debaixo do sobrado que sustenta as camas de dormir ou as caixas de guardar milho ou centeio do proprietário, o cevado chega ao fim da sua vida.

CARRO DE BOISColocada a um canto da loja, a pia de pedra, onde ele meteu mil vezes o focinho para tasquinhar a «labagem», trincar as castanhas bichosas, as bonecas, alguns punhados de milho, centeio ou farinha que ao longo de meses lhe arredondaram o corpo, lhe esticaram a pele e lhe luziram o pelo, ficará propriedade do sucessor, fatalmente condenado ao mesmo destino, se Santo António, solícito e a troco da sua proteção benfazeja, receber uma chouriça, um salpicão, uma cabeça inteira ou só metade dela que, depois de passarem por um leilão, bem podem ir parar às casas de especialidade do Porto, ou de outra zona do país, com o rótulo de "chouriço" ou "orelheira" de Lamego.

Ainda a manhã vai alta e já cá fora está tudo a postos. O carro de bois sem estadulhos, limpo e colocado a jeito, espera a vítima que, àquela hora, dorme ainda e sonha com a saca de bolotas de carvalha de que se tornou dependente, após lhe terem retirado o instinto de arqueólogo, após o terem impossibilitado de revolver o estrume com o arganel punitivo que se lembraram de lhe pôr nas ventas, ainda leitão, antes mesmo de ter assumido a categoria de porco.

Mulheres, homens e crianças, uma família inteira e, às vezes, também vizinhos, participam no sacrifício da carne.

Corrido o ferrolho da porta da loja, a besta, arrancada da cama com força e jeito, é estendida sobre o carro de bois com a cabeça para o lado da cabeçalha, um pouco mais baixa que as chedas. Rápida, uma corda prende-lhe as patas, aperta-lhe, em x e y, o corpo contra o chedeiro, imobiliza-a completamente, não sem contínuos  e  incontidos grunhidos de protesto. 

PORCP-2O facalhão, manufatura dos ferreiros da terra, preparado de véspera numa afiadoira subtraída às rochas das vertentes da serra de S. Macário, por alturas de alguma romaria, deixa-se manejar pelo lado do pescoço até ao coração do animal, que acusa a dor com roncos de revolta e de morte. O sangue jorra em catadupa no alguidar que uma mulher, de cócoras, segura em posição de não deixar perder uma só gota.

Ela sabe, todos sabem, que no aproveitamento desse líquido vermelho, depois de cozido e misturado com batatas, mais alguns torresmos, está o volume da sarrabulhada, essa refeição coletiva da qual tomam parte parentes e amigos. O jorro inicial diminui lentamente e transforma-se num transparente fio de baba. A vida está presa por um  fio.

Os músculos do animal deixam de agitar-se. Chega o último estertor da agonia. Eis um cadáver. A vida assumiu a forma de um pudim líquido pronto a escapulir-se do alguidar, ao menor descuido das mãos que o seguram. Cozido, transformado  em sarrabulho, por quantas mutações não passará ainda no campo de batalha onde se combatem a vida e a morte e onde, os filósofos, metafísicos e dialéticos, que tentam impor a sua lógica na explicação daquilo que as une e as separa, discordam uns dos outros? 
Envolvido nas labaredas das «carquijolas» em chama, o corpo inerte, chamuscado e negro, atira para o ar um cheiro intenso a pelo torrado. Não tardam a entrar em ação os raspadores de pedra, essa herança técnica primitiva, esse elo de  ligação entre a pré-história e o século XX que, utilizada em simultâneo com água quente, logo deixa o monte de carne barbeado, branco e limpo. Para subir ao chambaril só falta meter-lhe no traseiro uma mancheia de colmo que, puxada para fora, logo lhe tira do cólon os retardados e preguiçosos excrementos da última refeição digerida.

porco esticadoPendurado de cabeça para baixo, jarretes bem abertos no chambaril, a faca grande põe à prova a sua qualidade de corte, de cima a baixo, ao longo de todo o ventre. Viscosos, apressam-se a sair o bucho, o novelo volumoso das tripas, o fígado, os bofes, o coração, a bexiga, até ficar só a carcaça despojada de todas as vísceras. Vazia, não há criança que não leve a sério a ameaça de ir parar lá dentro, caso contrarie as regras ensinadas pelos adultos ou se exceda nas suas brincadeiras traquinas.

Vinte e quatro horas passadas, esticado e frio, procede-se ao desmancho. Apeado, estendido de costas no sobrado, cortada a cabeça, arrancados os dois jogos de costelas inteirinhos, tirado o osso da suã, separados os presuntos e as espáduas, fica no chão a manta de carne logo dividida em bandas e neta. Trabalho de homem, logo que sejam escolhidos as febras para o fumeiro, os torresmos para banha e o unto para silenciar os carros de bois ou amaciar o coiro dos tamancos, tudo vai repousar na salgadeira. Absorvido o sal, sai toucinho para os caldos, conduto para merendas, «guitarras» para pendurar no caniço e curar ao fumo de lenha verde.

SALPICÕESOs enchidos, é com as mulheres. Preparadas as carnes em vinha-de-alhos, pitada de tempero que baste, lavadas e fervidas as tripas, é um ror de morcelas e chouriças a entrarem no pau suspenso no caniço, como argolas em varão de cortinado. Os salpicões, pendurados aos pares, compridos e volumosos, pingões, ostentam a forma e a força masculinas, aconchegados às suas parceiras femininas, delicadas, pingonas de sal e sangue. Em separado, assumem, cada qual o seu género, a sua identidade própria. Em conjunto, resguardado de gato ladrão, faminto ou lambisqueiro, é o fumeiro a fazer crescer, mesmo em verde, água na boca a quem já alguma vez provou essa vianda, depois de curada, acompanhada de uma fatia de broa de milho e um copo de palhete.

Consumido com parcimónia, em refeições de campo ou de romaria, não há também visitante que não seja convidado a saborear o pitéu em casa do lavrador que mate. Tenteado o consumo chega ao fim do ano - "foi por ser poupadinho que as carnes do meu porquinho, me chegaram ao entrudinho" - e na loja cevou-se, entretanto, outro animal.

Antes, porém, de entrar na fase encurralada da ceva, cirandou livremente pela aldeia, armado em agente camarário de limpeza. Não há, por certo, povoação camponesa, sem saneamento básico, que não saiba como desfazer-se dos dejetos humanos e outros que tais, sem deles tirar algum proveito. E as palavras «quelho» e «quelha» entraram no léxico português para identificar o sítio onde as populações iam fazer as necessidades matinais e os porcos encontravam lauta mesa. 

Não fossem os porcos agentes de limpeza e, nos quelhos e becos de passagem menos frequente, não faltariam esses efluentes poluidores a ferir, impiedosamente, a vista, a atingir agressivamente a pituitária.

RODA DE CARROMas "o que não mata engorda" e em pleno século XX, pelas manhãs frescas de Dezembro, repete-se o ciclo milenar da matança do porco, neste pequeno rincão do mundo. O cuinhar lancinante dos animais a morrerem pica a memória do estudioso e logo lhe ocorrem séculos da História do Homem sobre a Terra, nas suas relações com a Natureza. Séculos de domesticação, de pastoreio, de resguardo, de trato, de consumo. Séculos de aprendizagem e transmissão de processos primitivos a desafiar a modernidade tecnológica, neste e noutros rituais da vida. A compartimentação temporal da História do Homem não tem aqui sentido. Vários tempos se sobrepõem aqui, em resistente, comprida e duradoura corda de misteres, costumes, crenças no final do século XX. O raspador de pedra coexiste, lado a lado, com a ferramenta de ferro. O arado de pau com a charrua, com o trator. O burro com o automóvel. O moinho de mão com o moinho hidráulico. A reza e a benzedura, com a receita médica. A mezinha caseira com a farmacopeia científica. O analfabeto com o letrado, o burel com o cetim. O linho com o cotim. O tamanco com o sapato. O colmo com a telha. A casa de pedra, com a de tijolo. A madeira, com o alumínio. A taverna, com o café. A fogaça, com a broa de milho. O prato coletivo, com o individual. A alimentação precária quotidiana, com a lauta mesa das festas religiosas. O egoísmo feroz, com o senso comunitário. O microfúndio privado, com o imenso baldio coletivo. O guardanapo de mesa, com as costas da mão. A pressão do indicador e do polegar no nariz (ranho fora) com o lenço de assoar. A água de chafurdo, com a do fontanário e a canalização. O petróleo, com a luz elétrica. A pedra solta e outras dádivas da Natureza, com o papel higiénico. O paninho avoengo com o modess e outros absorventes similares. A filharada que Deus quer, com a pílula preventiva. Enfim, a par da sarrabulhada anual decorrente da matança do porco, o prato social aldeão oferece a qualquer estudioso estoutra sarrabulhada histórico-cultural, e basta termos as papilas minimamente apuradas para de tudo se saborear um pouco numa só garfada.

Do pitéu não pode esquecer-se o saber dos castradores (José, António e Zeferino "Capadores") que, num raio de muitos quilómetros, a pé, a cavalo ou motorizada, corriam as povoações a extrair os testículos dos leitões e os ovários das porcas, numa pré-preparação para a ceva.

NOTA: Texto integral publicado no meu livro, escrito «pro bono»»: «Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva», editado pela Junta da Freguesia em 1993, sem as actuais ilustrações.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.