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segunda, 29 outubro 2018 13:20

GENTES DO MONTEMURO

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GENTES DO MONTEMURO

Filho de Anabela Ramos, o batizado livro «Violência e Justiça Em Terras do Montemuro» foi dado à luz neste Ano da Graça de 1998. Tese de mestrado, com prefácio do Professor Doutor António de Oliveira, da Universidade de Coimbra, patrocinado pela Câmara municipal de Castro Daire, Governo civil de Viseu e Ministério da Cultura

A autora, espiolhando o Fundo Judicial de Castro Daire que, desde 1935, jazia inerte no Arquivo Distrital de Viseu, fez uma incursão por terras do Montemuro e arredores, passeando-se 112 anos pelos concelhos de Castro Daire, Vila Nova de Paiva, Cinfães, Rezende, Lamego, Tarouca, Armamar e Lafões. O livro custa  2.900$00 e tem a chancela da «Palimage Editores» de Viseu.

 

 violência-capa-violênciaComecemos por felicitar a autora pela entrada no clube daqueles que deixaram de interessar-se, exclusivamente, pela história de rainhas e princesas, de príncipes e reis, vestidos de brocados e folhos de renda, para se debruçarem sobre a História Local, sobre a vida quotidiana dos camponeses, dos «sem camisa» dos «barrigas ao léu», dos que, cultivando a terra e tosquiando as ovelhas, encontravam no fruto do seu trabalho a forma de encarar a vida, encontravam a matéria-prima,  burel e  linho, para se vestirem. Dos homens humildes do povo que, trabalhando de sol a sol, eram, a par dos «defensores»  e «oratores», os imprescindíveis «pés do Reino».

 Trabalho exaustivo teve a autora para  identificar o alfobre de concelhos que, ao tempo, cobria a área geográfica que hoje constitui o concelho de Castro Daire. Trabalho exaustivo da autora para trazer até nós o aparelho judicial existente, no tempo, ao serviço de governantes e governados. O papel dos seus agentes desde a primeira à última instância. O papel do corregedor, do juiz de fora, do escrivão, do assessor, do juiz ordinário, suas formas e contornos de eleição, das influências e do suborno  a que estavam sujeitos. Da retenção que faziam dos processos quando «os demandados eram pessoas poderosas  ou aí terem parentes ou amigos que por eles se interessam» (1)

Nesta matéria, não obstante ela dizer respeito a todo território nacional, território onde se enquadra naturalmente o espaço em estudo, é um livro de grande interesse para estudiosos e curiosos, amantes de saber quanto o passado se projeta no presente.

Mas deixemos isso e concentremo-nos na matéria que constitui o tutano da obra, o assunto que foi chamado ao título:  «Violência... Em Terras do Montemuro».

Comecemos pelo que diz no prefácio o Professor Doutor António de Oliveira, o padrinho da obra,  orientador desta tese de mestrado. Citando Rui Fernandes que, em 1532, na cidade de Lamego, classificou as gentes montemuranas, o ilustre Professor destaca que estas gentes  «tem falas diferentes das nossas,  falas muito grosseiras»(2)

Esta era uma citação que, de acordo com a matéria em apreço,  tinha de vir à colação, pois havia que mostrar ab initio a diferença entre serranos e citadinos, que a fala dos camponeses era diferente da fala dos urbanos. Mas que «falas diferentes, que falas grosseiras» eram estas notadas por Rui Fernandes, no século XVI, expressão que o catedrático de Coimbra repesca, no século XX,  para começo de um prefácio? Que significado dá Rui Fernandes à palavra  «grosseiro» para classificar o falar dos montemuranos? Não era certamente o significado de  incompreensível pois é o mesmo Rui Fernandes a dizer-nos que, não havendo linho na serra do Montemuro, os seus habitantes  «vêm  a esta feitoria das lonas de El-Rei Nosso Senhor e leva um lavrador uma carga de linho cânhamo que torna a  trazer fiado em dia de mercado a esta cidade que as filhas fiam andando com os gados e levam azeite e sal e pescado e outras coisas para sua mantença». (3)

Ora, se  serranos e os citadinos se entendiam  nos negócios, a  diferença da  «fala» não residia, certamente,  na semântica. Há que decifrar o mistério e Professor de Coimbra vai dar-nos uma ajuda  nisso.

Prevenindo-nos ele de que  «sob este fundo de natureza, agricultura e de pastorícia, reinaria a incultura, no conceito de Frei Agostinho de Santa Maria», (cita este autor para nos dizer, relativamente a Covas do Rio e outras terras de áreas próximas) que  seria um «grande milagre haver ali gente que possa cuidar das coisas do céu,  faltando-lhe na terra o com que a vida se alimenta (...) esta gente sabe muito pouco ou nada (...) apenas falam naquilo que trabalham»  - e continua  aludindo às dificuldades em encontrar -  «quem ali os possa ir doutrinar e quem lhes queira ali assistir para lhes ensinar a doutrina cristã, estando a caridade tão fria» (4).

Aí está. A questão era os montemuranos «nada saberem das coisas do céu», disso saberem «muito pouco ou nada» e só falarem «naquilo que trabalham», com o agravante de não se encontrar alguém  que «ali os possa ir doutrinar...ensinar-lhes a doutrina cristã».

 A questão da «fala diferente, da fala grosseira» era, pois,  uma questão de conteúdo, de cultura, de cultura cristã, no conceito daqueles que, ontem como hoje, se sentiam e sentem predestinados para civilizar o mundo e a torná-lo menos violento, já que a violência e  as suas causas são o assunto da tese de mestrado em construção.

 E em Lamego? Como falavam e o que sabiam os lamecenses desde pequeninos? Que cultura tinham para as suas falas serem tão diferentes das gentes da serra? Rui Fernandes informa-nos « (...) não há moço nem moça, assim das aldeias, como da cidade, como os que andam com o gado no monte que não saibam o pater noster, e ave maria, e o credo, e a salvé regina, e os mandamentos, e a ajudar à missa; em modos que os filhos ensinam os pais e mães (...)» (5)

 Afinal, Rui Fernandes tinha razão para apontar as diferenças de linguagem entre montemuranos e lamecenses. Os autores que vieram depois dele aproveitaram o mote e aí temos João Baptista de Castro, no século XVIII, citado pela autora, a dizer que a serra era  «haspera e da mesma grosseria e rusticidade participa a gente que a habita»  (6) e ela própria a concluir que se tratava de «uma serra pobre e isolada, onde viviam homens toscos e grosseiros».(7)

 Da diferença de fala - fala grosseira - e da serra agreste, passou-se, num ápice, a  «homens  toscos e grosseiros», esses que, sem o polimento cristão, eram cadinhos onde fervia a violência, sempre pronta a transbordar e a cair no caldeirão da justiça. Seria mesmo assim?

Fosse como fosse, as fontes consultadas e citadas pela autora, nesta matéria, interpretadas na linha de que «tosco e grosseiro» é sinónimo de «inculto»,  e «inculto» sinónimo de «violência»  prestaram-se a fornecer a argamassa académica para o título do livro. Mas será que o comportamento das gentes montemuranas destoava, histórica e culturalmente, do comportamento das comunidades camponesas, fossem elas das serras do Montemuro, Estrela, Gerês,  Montesinho ou  Caldeirão?

Ávido por ver a diferença, aberto para receber as achegas históricas que nos levassem a conhecer e a compreender melhor, neste fim de milénio, as gentes do nosso concelho, lemos o livro de um só fôlego. Trazendo à luz do dia 112 anos  (1708-1820)  de História, e abrangendo uma área que engloba o concelho de Castro Daire, com incursões em Vila Nova de Paiva, Cinfães, Rezende, Lamego, Tarouca, Armamar e Lafões, ao analisar o quatro nº II (página 45) que quantifica e tipifica os crimes cometidos em todo esse tempo, logo vimos goradas as expectativas que o título nos suscitou. O rótulo não correspondia ao conteúdo. A serra do Montemuro pariu um rato: apenas 160 querelas e 547 devassas, em 112 anos. A estatística mostrou-nos claramente que as gentes do Montemuro, poderiam ter «falas grosseiras», podiam não saber o «pater noster», como as gentes de Lamego, mas não eram, seguramente, violentas.

O resultado estatístico da investigação, cerca de 1 querela e 4 devassas  por ano, não legitima o título do livro e muito menos a ideia que ele transmite, à partida, das gentes do Montemuro: violentas. Bem pelo contrário, os dados estatísticos da investigação dão, seguramente, razão às afirmações  feitas em 1825, pelo corregedor, citado pela autora, quando chamou a si o livro de querelas de Cabril: «por este andar de querelas, temos livro enquanto durar o mundo. Belo país! Feliz  povo(8).

violência- porta-cravelhoIdem, idem, aspas...quando este corregedor, estando em Pendilhe, disse, nesse mesmo ano de 1825: «vou admirado de não ter havido nenhuma querela  desde 1794, neste concelho».(9) E pese, embora, a autora ter visto ironia em tais afirmações, interpretando-as como cítrica ao funcionamento da Justiça, ela própria, depois de tão laborioso e académico trabalho (trabalho muito importante por provar estatisticamente o carácter pacífico das gentes do Montemuro), é forçada a concluir: «Afinal, até são todos amigos e comem e bebem como irmãos».(10) E ainda que assim não fosse, convém lembrar que estes camponeses viviam no tempo em que a «Estupidez» esse «feio monstro de cruel figura/desgrenhado o cabello, vesgos olhos/disforme ventre, circular semblante/da lugubre caverna onde jazia/bocejando sahio (...)»(11) para assentar arraiais na Universidade de Coimbra, capital que fez do seu Reino.

De resto, entender a História na dialética passado/presente, atentos aos conceitos de mudança e de permanência, conceitos sem os quais a História não tem sentido, nem exerce a sua função formativa, como entender o espírito comunitário e de entreajuda, bem patentes nas comunidades rurais ao longo dos tempos? Como entender a falta de fechaduras nas portas, artefacto que só muito lentamente vai substituindo o histórico cravelho de madeira?

Rusticidade, incultura e quejandos não são, seguramente, sinónimos de violência. Afinal as gentes do Montemuro, nas suas querelas sobre brigas, caminhos, regos beirais, furtos e ofensas pessoais, usando a sachola, a forquilha, a pedra, o estadulho, a palavra, etc. como armas de ataque e de defesa, não diferem de outras comunidades rurais em igual estádio civilizacional. Ontem e hoje. As quezílias entre pessoas que vivem em comunidade são próprias da natureza humana.

 A concluir, diremos que, genericamente, nestes finais do século XX, os habitantes do Montemuro sabem muito «das coisas do céu», «sabem alguma coisa» da cultura institucional e continuam a falar  bem «naquilo  que  trabalham». Alguns continuam a guardar cabras, ovelhas e vacas, a cortar lenha no monte para aquecer o forno, a comer pão de centeio e a ter as suas querelas por causa das águas, regos e caminhos.

 Pelo que fica dito, no que respeita à realidade envolvente, do passado e do presente, tal como no século XVI Rui Fernandes apontou, nós, camponeses, continuamos, com todo o respeito pelas pessoas e pelo trabalho que produziram, a ter uma leitura, um entendimento, uma «fala diferente» dos citadinos, sejam eles de Lamego, de Viseu ou de Coimbra. Sejam eles catedráticos, mestres, ou  tratadores de lonas e bordates.


(1) RAMOS, Anabela - «Violência e Justiça em Terras do Montemuro» pp. 91.

(2) Idem,Idem,  pp. 5.

(3) DIAS, Augusto - »Lamego do Século XVI», pp. 66.

(4) RAMOS, Anabela, «Violência e Justiça em Terras do Montemuro» pp. 5-6

(5)  DIAS, Augusto,« Lamego do Século XVIpp. 36

(6) RAMOS, Anabela «Violência e Justiça em Terras do Montemuro» pp. 25

(7) Idem, idem.

(8) Idem, idem. pp. 33).

(9) Idem, idem,  nota de rodapé

(10 Idem, idem, pp. 116

(11)  «Reino da Estupidez» ms. existente na B.M. de Castro Daire.

(12) BRANCO, Camilo Castelo,  in "Camões", Anno II, nº 72, Porto, Janeiro, 1882, pp. 157

 

NOTA: Alojado no meu velho site «trilhos serranos» no ano de 1998, donde «migou» hoje mesmo para este novo site

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.