«Duas bicas com carrancas esculpidas? eis a «Fonte das Carrancas». Por cima dela, um templo? eis a «Capela das Carrancas». Ao lado dela, uma casa brasonada? eis o «Palacete das Carrancas». Enfim. Eis a força e o valor da água. O templo perdeu o nome do orago. O palacete perdeu o nome dos proprietários. Tal é a importância das fontes. Esta secou. As minas donde brotava a água, na encosta do Calvário, pela força do urbanismo e do imobiliário, entupiram-se. As águas sumiram-se nos alicerces dos prédios que ali foram construídos. Tempos idos. HISTÓRIA NOSSA.
Quem sabe algo disto? Quem sabe que o dono do palacete foi Bispo, que teve nome de batismo, e, da mesma família, Luís Malheiro Peixoto de Lemos Melo e Vasconcelos, foi Barão e Capitão-mor de Castro Daire, menino que nasceu em 1811 e o título recebeu em 1840? Quem sabe disto, afinal, sem recurso a qualquer sebenta? Quem conhece a família Pinto Basto e a família Lacerda Pinto, cujos nomes e rasto, agora, em geral, o vulgo, ignora? Sabem-no os estudiosos, os historiadores metidos nas andanças das leituras e da investigação, que, com estudo, alguma felicidade e sorte, para aquém das sepulturas deles, conhecedores são de que só as Carrancas se livraram da garras da morte, único nome que identifica a trindade: fonte, palacete e templo. Obras feitas no século XVIII, inacabadas no princípio do século XX, chegados os princípios do século XXI, eis que o escadório, com estilo e com gosto, mostra finalmente o genuíno rosto. Mas retornemos ao que escrevi e publiquei há tempos, aquando do repuxo posto no Largo, defronte à fonte:
"Um repuxo luminoso ali mesmo a meia dúzia de metros de um fontanário histórico, que, paradoxalmente, ficou no escuro, seco e sem vida. Um fontanário de carrancas a fazer carrancas a tal serviço. Um fontanário que, recolhido no seu nicho, se interroga como é que estas coisas acontecem em Castro Daire.
O observador crítico que por ali passe, com olhos de ver e de sentir, que leve em conta a história e a arquitetura envolvente, logo se solidariza com as carrancas e não pode deixar também de fazer carrancas ao que vê e sente. Um observador crítico que por ali passe, pára, olha e pensa. O observador crítico deixa-se levar pela ideia peregrina de ver um fontanário histórico recuperado, ativado, arrancado à morte que lhe foi dada pelo progresso, por força da mudança operada no abastecimento de água ao domicílio. Um observador crítico, mesmo sem ser Abílio, faz contas e não pode deixar de pensar que com o mesmo dinheiro (ou talvez menos) e com o mesmo sistema (o sistema aplicado no repuxo) se podia ter feito algo melhor, algo diferente e mais atrativo, algo que revertesse a favor do património e da sensibilidade que os nossos autarcas e récnicos municipais parece não terem para estas coisas dao património, da cultura e do desenvolvimento.
Passe por lá, caro leitor. Passe pelo Largo das Carrancas e faça a sua leitura crítica ao trabalho realizado. Feche os olhos e de olhos fechados veja o que não vê com os olhos abertos: um fontanário de duas carrancas a jorrarem abundantemente água para um tanque e uma cortina de água transparente, a cair de cima, uma simples película, colocada na embocadura do nicho, vedando a entrada ao tanque e às bicas.Tudo artisticamente iluminado!
O quadro que acaba de ver de olhos fechados, não é um simples e vulgar repuxo colocado num largo. É a recuperação de uma peça histórica que estava morta e ressuscitou; é uma peça histórica que jorra atração, poesia e luz sobre o visitante que não se contenta em ver coisas sem alma, que não se contenta em ver simplesmente “coisas”. Visitante que, dando sentido à história e às palavras, se extasia em frente de uma verdadeira, autêntica e poética “fonte luminosa”. Um quadro assim, com o passado e o presente acasalados - o passado exibindo a sua arte, a sua arquitetura, a sua história e o presente exibindo as suas técnicas, a sua engenharia, o seu sentido estético, de desenvolvimento e de respeito pelo património - um quadro assim, dizia, é, no presente, o espelho do futuro. O futuro que espera Castro Daire. Um futuro diferente, inovador e não um futuro acomodado à rotina, às ideias feitas importadas».
CONCLUSÃO
O abade Carlos Caria teve uma oportuna e excelente ideia. Quem viu, como eu vi, aquele escadório e adro ao abandono, quem viu ali, escadas acima, escadas abaixo, um quelho com lixo e excrementos, como o Portugal velho de antigamente, sem saneamento básico, só pode louvar a iniciativa. Infelizmente não vi a "Fonte das Carrancas» a jorrarem água para o tanque. Mesmo com essa lacuna, ao terminar este meu olhar sobre o nosso património e a nossa história, quero repetir o louvor, aproveitando para sublinhar, aqui e agora, a minha anuência pública à sua iniciativa. Dispensável certamente. Mas faço-o por imperativo de consciência, por dever cívico e de ofício. Sempre estive do lado da meritocracia e contra a mediocridade. E mostro como um clérigo, no exercício do seu múnus (zelando pelos bens materiais que estão sob a sua alçada) e um cidadão, socialista, republicano e laico, também no exercício do seu múnus - Historiador - têm ambos de comum a sensibilidade para a defesa e preservação do nosso património histórico. É que, agindo assim, ninguém pode negar que o nosso procedimento esvazia de sentido a expressão latina «argumentum ad populum» que, nos tempos da democracia em que vivemos (sobretudo através da URNA facebookiana) tende a confundir a quantidade com a qualidade e, de caminho, falaciosamente, tende a convencer os ingénuos de que é verdadeira e válida a opinião que colhe o amém de um certo número de pessoas que, em uníssono, berram a mesma coisa. Mesmo que tais berros não tenham fundamento substantivo com respaldo na experiência da vida, nem esteja escrito nos compêndios da HISTÓRIA da CIÊNCIA e da ARTE.
E volto às CARRANCAS que deram o nome à Fonte, ao Templo e ao Palacete. Nome genuíno, mais repulsivo do que atrativo, mas muito escolhido para ornamentar fontes e chafarizes, em tempos idos. Quisessem, numa atitude conjugada, o Executivo Municipal e o Abade Carlos Caria (ou outro que o substituirá) e tudo mudaria. Era só transpor para a Fonte o sistema automático aplicado ao «repuxo», deixando livre este espaço para nele se colocar uma estátua ou busto, do Bispo obreiro, ou do Barão e Capitão-Mor de Castro Daire, proprietário e herdeiro de tudo isto. Isso feito, por força e significado da escultura ali posta, em homenagem à história local, à religião, à política, e à cultura, lembrando aqueles senhores, desaparecido o lago, o tempo se encarregaria de fazer esquecer os nomes anteriores. Sim! Pois foram esses senhores e tantos outros com nome de batismo, de antes e depois deles, tanta Maria e tento Zé, sem nome na HISTÓRIA, que fizeram e mantiveram de pé, dignos de memória, este pedacinho de Portugal em que vivemos.
Eis o contributo e as razões da aderência à mudança de um incréu, que aqui deixa à laia de profecia. Eu, que não ando à caça de votos, que não vergo a cerviz para ser simpático, que não molho os dedos na pia da água benta, que não gatinho nas escaleiras de Peter até ao patamar da incompetência, que não aspiro à governança da municipalidade, que não sacrifico a qualidade à quantidade, que não vejo no número de "likes" a justificação das minhas opiniões, tudo isto escrevi e disse unicamente no exercício da minha cidadania. Ciente embora que, Infelizmente, há tanta gente, tanto Manel, tanto João, tanto Pedro, tanto Paulo e tanto Zé que não sabem o que isso é. Sem caráter, membros sociais numa hierarquia de continências, de vénias e de conveniências pessoais, de compadrios e clientelas, só dizem e fazem o que lhes é útil, o que está em linha e a favor da «vidinha» que levam: eles e elas.