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segunda, 19 fevereiro 2018 13:49

CASTRO DAIRE - ESCADÓRIO DA CAPELA DAS CARRANCAS (1)

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HISTÓRIA VIVA

PRIMEIRA PARTE

Fixar os olhos numa construção pública ou privada feita com material lítico (ponte, palacete, corrimão e balaustrada de varanda ou escadório de imponente solar vilão, de majestoso templo citadino, ou de simples escaleiras e varandas de modesta habitação rural campesina) não implica que o  observador   saiba o que é "partir pedra" durante a vida.

 

Escadório-A.desconhecidoNão é obrigatório que ele saiba o que são ponteiros, guilhos, marra e mais ferramentas indispensáveis para dividir um penedo bruto em fatias e destas, o artista, com jeito, manejo e força de picos, cinzéis, maceta, régua, esquadro e compasso,  possa lavrar as padieiras (torças) e ombreiras de portas e janelas, os modilhões e as cornijas onde assentam os telhados, geralmente salientes e distintas das paredes que, de picada grossa, de alvenaria, preenchem os panos, os alçados, as fachadas, dessas mesmas construções. Mas se o observador não é obrigado a saber isso, obrigado é a estudar a matéria, a fazer o trabalho de casa, se sobre o assunto se dispõe a opinar, a mandar bitytes, pois neste tempo de tantas opiniões (ainda bem que vivemos neste tempo)  quem tal não fizer, corre, seguramente, o risco de cair no ridículo, já que opiniões sem fundamento volvem logo   "opiniães" no critério de quem repudia tudo o que trepa nas escaleiras das nossas instituições e nelas deixa o carimbo identificador do "princípio de Peter" , que é o carimbo da imcompetência em tudo o que dizem e fazem. Vista do Calvário - Cópia

Vem isto a propósito do ESCADÓRIO DA CAPELA DAS CARRANCAS, em Castro Daire, que, recentemente, deu que falar nas redes sociais, este espaço de comunicação  mais democrático que se conhece na atualidade. Um espaço onde toda a  gente opina, alardeando preocupações (e ainda bem) com o nosso património histórico edificado, natural e imaterial. Só que, nessas preocupações,  «porque sim e porque não, porque vai e porque torna"» em vez de exporem  conhecimentos sobre o assunto, mostram é uma flagrante falta de saber e de bom senso.

LARGO-2007-REDZ

O abade Carlos Caria, atento ao passado, aos documentos,  à história e à fotografia, não se deixou intimidar com as "discordâncias"   dos  "diáconos" que botam faladura neste púlpito do mundo e resolveu abrir a gramática antiga e ordenar que as paredes de alvenaria enquadradas nas molduras de cantaria lavrada a cinzel,  fossem argamassadas e pintadas de branco, por forma a estabelecer uma sintaxe de relacionamento estético, de harmonia e de contraste, entre o branco dos alçados do templo, da cantaria dos seus cunhais e cornijas, com o branco dos painéis do escadório, dando, assim, o destaque merecido à restante obra lítica lavrada, v.g. os balaústres, lanternas, corrimãos e demais cantaria saliente, colocada de encosto ou em redondo.

Sintaxe essa de embelezamento e de fácil leitura semântica para quem disto tem conhecimentos básicos.. Embelezamento e leitura que não serão dificultadas quando as árvores plantadas no adro entre os dois ciprestes, tomarem corpo e copa. Duas japoneiras e duas magnólias.  Elas serão podadas a tempo e horas, por forma a jamais ocultarem o templo que o escaravelho vermelho permitiu desafogar, secando as duas palmeiras que ali existiam. Há males que vêm por bem.

Não falo nos obstáculos burocráticos que toda a obra implica, pois esses são conhecidos de longa data. Basta ver as páginas que sobre isso escrevi no meu livro "Mosteiro da Ermida" e recentemente no meu site www.trilhos-serranos.pt

Aguilar-2005-REDSem avença nem a pedido de ninguém, acompanhei, fotografei e filmei as obras, como aqui deixo prova. Não me foi solicitada opinião prévia, nem posterior. Nem tinha que ser. Mas, atento que sempre estou à nossa História, ao nosso património edificado, à sua destruição (lembro o moinho do Casal, de cubo vertical, único no concelho, junto à estrada de Reriz, de que fiz vídeo, que foi deitado abaixo, sem apelo nem agravo) melhoramento e preservação, tal como louvei o trabalho que este Abade fez relativamente aos painéis de azulejos escondidos, cerca de 250 anos, atrás do coro baixo da Capela-Mor da Igreja Matriz,  o faço agora em relação a estas obras do ESCADÓRIO

Carrancas-2010-RedLouvor  insuspeito e, se calhar, até incómodo para ele próprio. Pois ninguém me vê na missa, não passei pelo seminário, não fui catequista, não canto no coro, não sou sacristão, nem sacrista, nem aos domingos,   leio a epístola, em tom gregoriano. Respeito quem tal faz e assim é, mas sinto-me confortável à distância,  com esta compostura e decoro cívico,  longe do hissope. Não corro o risco das suas gotículas molharem a roupa que visto. Mas impõe-me a consciência e o dever de ofício de deixar aqui este registo, com a certeza de que o nosso património ficou mais rico, mais bem tratado e mais conforme a arquitetura civil e religiosa de tempos idos, cujos mestres-de-obras e pedreiros botavam mão ao  granito e ao xisto, material lítico da regiãoE, para tornar qualquer obra mais barata, revestiam com argamassa (barro e cal) os panos de alvenaria feitos com pedras toscas ou materiais mais pobres. E é sabido que, na nossa arquitetura rural, as paredes, nuas ou revestidas, espelham bem os  teres   haveres  dos seus proprietários.

Grijó-2004E, a propósito da necessidade de esconder algo imperfeito,  tem aqui cabimento o diálogo havido, em tempos idos, entre um médico e um calceteiro. O médico, em cima da sua montada ia visitar um doente e ao  passar por um calceteiro este perguntou-lhe: «então para onde vai o colega?»  Surpreendido o médico ripostou: "colegas? como assim? Eu sou médico e você é calceteiro". «Pois, por isso mesmo é que somos colegas». E, olhando o clínico com ares de provocação, pôs umas pazadas de terra em cima das pedras que acabava de assentar e concluiu: «ora veja, os seus erros e os meus a terra os cobre"». 

Mutatis mutandis, alçados de pedra tosca, argamassados e pintados de branco não faltam nas nossas construções. Basta ver, ao lado, o Palacete, ao qual pertencia a capela, o escadório e a fonte, cujas carrancas, a jorrarem água abundantemente, para um tanque, batizaram e deram nome à fonte, à capela e ao palacete. Basta ver as IGREJA MATRIZcornijas, ombreiras de portas e janelas feitas em cantaria saliente e as fachadas rebocadas e pintadas de branco. O mesmo nos Paços do Concelho. O mesmo no solar dos Mendonças. O mesmo no solar dos Aguilares. O mesmo no velho Hospital da Misericórdia. O mesmo nas antigas Escolas Conde Ferreira e  António Serrado. O mesmo noutras construções particulares. É só olhar e ver... e chega.

Perdão. Não chega. O mesmo na   Igreja Matriz.  Quando esta escondia os defeitos da alvenaria dos seus alçados e somente exibia a perfeição da cantaria. O mesmo com outras ermidas sitas nos topos dos montes. O mesmo na Casa Brasonada do Grijó, de requintada cantaria nas ombreiras das portas e janelas das fachadas, mas estas, caído o reboco que as cobria, deixaram nuas a miséria e a pobreza irregular do xisto que lhe dava corpo. Nobre, a bem dizer, ficou apenas o granito lavrado em barroco declarado. Sinais dos tempos idos e destes tempos que vivemos, tempos de tantas e tão livres "opiniães",  que, se calhar, perdi uma boa oportunidade para estar calado.

 (Continua)

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.