Vejamos agora alguns pormenores: o barco está situado no lado esquerdo, onde não passa despercebida a figura de um «jovem remador», quiçá o discípulo mais novo do grupo. Não é seguramente um capricho do artista, como também não é ele dar destaque aquela figura que se encontra na proa do barco, mão direita agarrada ao pano e a esquerda estendida em direção a Jesus e Pedro. São notórias as parecenças desta figura com aquela que, no painel anterior, «abraça Jesus». Aqui as figuras centrais são Jesus e Pedro. A figura de Jesus, a caminhar sobre as águas, difere, todavia, daquela que, no painel da esquerda, "entrega as chaves do céu". Nesta, a cabeça, ainda que colocada na mesma posição angular da anterior, irradia luz, diferentemente daquela outra. Pedro esbraceja e luta contra as ondas do mar, como resulta do versículo bíblico, mas Cristo não lhe "estende o braço" como disse Mateus. Assim: «E logo Jesus, estendendeu-lhe a mão, o tomou e lhe disse: Homem de pouca fé, porque duvidades?» (Mateus, 14:31) Pois. E mais uma vez aqui descortino o pensamento "iluminista" do artista. Ele não era peco no seu múnus. Conhecia de cor e salteado o versículo bíblico. Como todos os artistas do seu tempo, estava apetrechado com as ferramentas mentais da época. E vai daí, aproveitou a alegoria bíblica para, fugindo à letra de Mateus, criticar, de forma artisticamente inteligente, os caminhos que a Igreja tomou desde os primórdios. Entre o Jesus humano, histórico, posto no primeiro painel, abraçado por uma figura de aspeto feminino, e o Cristo a caminhar sobre as águas posto no segundo, cabeça resplandecente, passaram 18 séculos de Cristianismo. A pobreza e a humildade que Jesus pregou, vestido de túnica de linho e de sandálias nos pés, volveu riqueza, opulência e luxúria. Ele que, em Jerusalém, pusera o templo de pantanas contra os cambistas e vendedores de pombas brancas, cujo sangue os peregrinos usavam no sacrifício da purificação, enriquecendo os vendilhões e os sacerdotes, o que via ele, o artista, passados 18 séculos de história? Muito ouro, muita acumulação de
bens terrenos, muita ganância. Tudo o que Jesus combateu. E pondo Pedro a afundar-se nas águas (com o medo chapado no rosto) e Cristo a apontar o dedo indicador ao Céu, não precisou de legendar: «Pedro, sobre ti edifiquei a minha igreja e vê como ela se afunda contigo. Razão tinha Maria Madalena ao perguntar-me "porque não ela, em vez de ti", quando te fiz a entrega das chaves do reino dos céus».
Painel colocado defronte à porta da sacristia que dá acesso à capela-mor, era esse o quadro dramático que o presbítero via todas as vezes que por ali entrava no exercício do seu múnus. Ver Pedro a naufragar, ele, o símbolo da Igreja, o representante de Deus na terra, era uma imagem degradante e incomodativa que afrontava os tempos e os hábitos. Aquela vestimenta simples de Jesus, aquelas túnicas simples dos apóstolos, feitas de linho e de lã por mãos simples, destoavam clamorosamente das dalmáticas e casulas acetinadas bordadas a fio de ouro e prata que ele, presbítero, envergava todas as vezes que entrava na capela-mor para ofício religioso, missa, casamento ou velório, naquele templo majestoso, cujos altares, todos eles, eram adornados com a recurvada e abundante talha dourada barroca, repleta de imagens soberbas de anjinhos e de santos. Aquele dedo de Jesus apontado ao céu, naquela serenidade divina, deslizando com leveza sobre as ondas do mar, tal como fazem os "gerris lacustris" nos pegos mansos dos rios, não era um simples gesto, um simples aviso, uma simples chamada de atenção, um simples capricho de iluminado artista. Daquele dedo, apontado ao céu, saía tão simplesmente uma sentença condenatória de 18 séculos de Cristianismo.e de História. E quem se afundava ali, com Cristo à sua frente sem lhe prestar ajuda, como disse Mateus, não era o Pedro apóstolo, o pescador, o «homem de pouca fé» . Era o primeiro bispo de Roma, era a Igreja toda sob o peso dos séculos, da sua riqueza e da sua opulência.
Interpretação abusiva, gritarão todos os que por estas bandas são formados nas Sagradas Letras. E também aqueles que até exibem publicamente títulos académicos de formação em arte. Pois sim, senhores, seja como queiram. Mas se não é como eu interpreto, aqui lhes deixo o repto: expliquem aquela postura e aqueles gestos de Cristo, não condizentes com Mateus. E expliquem também, muito devagarinho para eu entender (se acharem necessário façam-me um desenho, como se eu fosse menino de catequese) a ocultação dos painéis aos olhos do mundo, remetidos que foram ao silêncio das catacumbas e à escuridão de noites seculares. Sim, quem me dá essa explicação?
É isso. Aqueles painéis, com as suas alegorias bíblicas, eram ambos, na verdade, pouco canónicos. Eles tresandavam a artes e saberes antigos, religiosos e profanos. E, pior ainda, incorporavam disfarçadamente a tradição gnóstica que tanto trabalho deu e dá à Igreja para a apagar da face da Terra. Não. Não podia ser. Na primeira oportunidade esses painéis evaporar-se-iam. E evaporaram. Mas a verdade é como o azeite. Vem sempre à superfície. Mesmo que trazida pelo bicho da madeira, aquele verme pequenino sem alma...rap...que rap...rap...que rap... que, noite e dia, sem misericórdia, roeu o cadeiral que, intencionalmente, serviu da campa tumular a tão vivas e azuladas almas.
Mas do mal, o menos. As térmitas, ao contrário dos homens (como é bem visível) não roeram os azulejos. E vistos hoje à luz dos tempos novos, destes tempos mais apostólicos e menos clericais, como bem deseja e adverte o PAPA FRANCISCO (a vivia voz, do Céu para a Terra, digo eu, pois fê-lo dentro do avião, quando regressava ao Vaticano, depois de visitar Fátima, analogia que não posso deixar de fazer com a advertência que Jesus fez a Pedro, apontando da Terra para o Céu) reabilitada e reconhecida que está a importância que Maria Madalena teve nos primórdios do Cristianismo (se calhar num dos «núcleos pré-nacionais reunidos em torno da ermida ereta em honra do Salvador», aqui, em Castro Daire, já que tais painéis «ressuscitaram», houve que conciliar a coexistência da morte com a vida. Foi o que LOUVAVELMENTE (com letra maiúscula) fez, neste ano da graça de 2017, o REVERENDÍSSIMO ABADE CARLOS JOSÉ GOMES CARIA e toda a equipa que, atualmente, na Diocese de Lamego, tem a seu cargo a salvaguarda, preservação e divulgação da arte sacra diocesana. Por isso e à semelhança dos registos que, em benefício da informação histórica, ficaram lavrados nas torças das portas da Igreja relativos às obras feitas pelo Abade JOÃO DE MOURA DE ANDRADE, no SÉCULO XVIII, impõe-se que, em prol da informação histórica, o mesmo se faça, sobre tão importante descoberta, disponibilizada aos olhos mundo, a partir de agora. Aqui deixo a sugestão e a legendagem possível.
Valorizando, por igual, os painéis de azulejo e o majestoso cadeiral, posta à prova a cultura, inteligência e tolerância humanas, traduzidas na aceitação das diferentes interpretações semânticas e históricas que toda a obra de arte comporta e, bem assim, o uso das técnicas necessárias e disponíveis, tratadas que foram devidamente as madeiras do cadeiral retirado para restauro, eis que, regressado a penates depois de restaurado, será encostado novamente às paredes desempenhando as funções para que foi concebido. Mas agora, milagrosamente, a poder deslizar sobre rodinhas para o centro da capela-mor e retroceder ao ponto de partida, todas as vezes que se entender necessário ler Mateus fora da Bíblia. Os versículos de Mateus, artisticamente vertidos em IMAGENS - canónicas e gnósticas - ali ficarão em azulejos de padrão pombalino. E, ao lado do cadeiral, de ambos os lados, uma foto dos paineis. Logo veremos como fica, já que este registo precede os «acabamentos».
O concelho de Castro Daire está mais rico, culturalmente falando. E eu, por imperativo de profissão e de cidadania, assumindo a postura de notário público e raso, impus-me lavrar este registo, com a certeza de que os factos que nele reporto e as interpretações que deles faço, são, não só, da minha inteira responsabilidade, mas também têm por garantia exclusiva a minha formação em HISTÓRIA e a minha consciência liberta de todos os ensinamentos catequéticos, livre de quaisquer obediências institucionais, doutrinais ou rituais que sejam.
NOTA:
A propósito destes painéis, por falta minha de formação específica na área do AZULEJO, recorri, via email, o senhor Dr. João Pedro Monteiro, Técnico Superior Museu Nacional do Azulejo, que, face às fotografias que lhe remeti, bem como lida a primeira parte do texto que publiquei no meu site, ele dignou-se solicita e rapidamente, informar-me, com as reservas decorrentes da sua observação indireta, que se trata de uma obra da primeira metade do século XVIII, do chamado "Ciclo dos Mestres" (...) que pertenciam à "oficina dos Oliveiras Bernardes, muito provavelmente do próprio António de Oliveira Bernardes, falecido em 1732.» E mais informou que o "estilo neoclássico" só se impõe pela década de 1790. Até lá predomina o "rocaille" que coincide com a padronagem "pombalina".