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segunda, 05 junho 2017 12:13

ALEGORIAS BÍBLICAS OCULTADAS AO PÚBLICO, CERCA DE 250 ANOS (II)

Escrito por 

HISTÓRIA VIVA

SEGUNDA PARTE

PAINEL DA ESQUERDA

Na I PARTE deste trabalho vimos o painel esquerdo no seu todo, bem como  o enquadramento e distribuição dos elementos nele inclusos. Façamos agora um pequeno esforço no sentido de percebermos essa distribuição e a postura de cada uma das figuras em relação ao motivo principal e central que ali os reuniu: «a entrega das chaves do reino dos céus" a Pedro(Mateus, 16:15-20).

 Conversa-PormenorAnimemos todos estes personagens com o sopro da vida, da razão, desejos e sentimentos. Fixemos os seus rostos, aspeto etário, jeitos e trejeitos saídos da mente do artista que os congeminou e distribuiu no espaço do painel. Façamos deles seres humanos. Ouçamos a sua voz.  Perscrutemos o que pensam e sentem. Feito isso, à lupa da hermenêutica interpretativa,  não tardaremos a descobrir que nem todos os discípulos se concentram no motivo que os levou ali. Do lado esquerdo do painel vemos três discípulos em inaudível murmúrio, aparentemente desinteressados do ato principal da reunião. Que dirão eles? O que se vê de costas para nós, está de posse da palavra e é visivelmente escutado pelos dois companheiros próximos. Mais afastado destes três, à direita, visível entre os restantes cinco discípulos que concentram os seus olhares na «entrega das chaves» está mais um deles de olhar fixo neste trio, cujo olhos parecem estar mais interessados em ouvir o que ali se murmura do que em ver o que realmente se passa entre Jesus e Pedro

O artista dispondo assim, tal qual fez, os discípulos no painel, teve a intenção clara de mostrar não haver consenso entre eles no que respeita à escolha feita.  Só cinco deles, através dos seus olhares, parecem dar a sua anuência à "entrega das chaves" a Pedro.  Pelo que, feita esta leitura (não sei honestamente se foi essa a ideia do artista ou é somente a minha) ficamos a saber que ao século das luzes chegaram os ecos do Concílio de Niceia, feito no dia 20 de maio de 325, o primeiro Concílio realizado com o objectivo de "unificar" a Igreja, que tão necessário era a Constantino, desde que, no ano anterior, vencera Licínio e unificara o Império. Império unido, Igreja unida. E a paz no mundo era certa. Enganou-se. 

A história registou, de então para cá, um sem número de guerras, de heresias e cismas na Igreja. Mas, de momento, quem se viu em bolandas na defesa dos princípios cristológicos definidos e aprovados, em Niceia, foi o grande orador Atanásio, sempre de língua afiada e cortante contra as "heresias" que proliferavam como cogumelos. Por isso lhe foi colada a expressão "Athanasius contra mundum, expressão que chegaria até nós e se aplica, com propriedade,  a toda e qualquer pessoa que, acreditando no que estuda, no que sabe e no que pensa, não receia prosseguir sozinha nos trilhos do seu destino. Adiante.

Ao centro do painel, como não podia deixar de ser, vemos o motivo central do encontro de todos eles: Pedro de joelhos, em  atitude de submissão e reverência, recebe as "chaves dos reinos dos céus" que Jesus lhe entrega com a mão direita. Enquanto isso, numa atitude visivelmente intimista,  um discípulo, de aparência feminina, enlaça Jesus por detrás, de olhos fixos no seu rosto, como que segredando-lhe algo muito pessoal ao ouvido. E não hesito em afirmar que este é o Jesus histórico, o Jesus humano, capaz de ouvir, de amar e de ser amado, pois amor se lê no olhar da alma gentil que lhe fixa o rosto, enquanto o puxa para si com o braço esquerdo, numa postura clara de afastá-lo do discípulo que, solitário, está separado dos restantes, junto à árvore. Simbólica e significativa composição esta, feita pelo artista que concebeu o painel: Jesus Judashumanamente abraçado sem os raios de luz a saírem-lhe da cabeça (semelhante ao que veremos lá mais adiante, no painel da direita)  e um discípulo separado dos demais, junto a uma árvore. Premonitória e histórica é a aproximação que une estas três personagens, por razões diferentes.

Olhando o painel no seu todo e dito isto,  o discípulo solitário,   desinteressado que se mostra, também ele, da «entrega das chaves», bem pode ser  Judas.  Colocado de perfil, ele parece cruzar o seu olhar, por detrás dos ombros de Jesus, com a figura que o abraça.  Sente-se só ou não aprova aquele abraço e aquele pronunciado segredo?

Alegoria a preencher uma ampla paisagem da natureza, tão adequada ao tema bíblico tratado, focando tempos remotos, nós,  vendo, ouvindo, lendo e cheirando, sentimos estarem ali os vapores políticos e culturais do Seculo XVIII. Do «Século das Luzes»  daquela corrente de pensamento e acção  que abrange o período com  início em 1650 e cultivado entre artistas e pensadores, até cerca de 1790-1800, anos em que se  iniciou a chamada corrente «contra iluminista». E esta, como indica a designação, visou reverter as mudanças sociais, políticas, filosóficas e religiosas ligadas ao período anterior. E curiosa coincidência esta, se aproximarmos as  as datas.. Atribuindo eu os painéis ao pensamento e arte de  um artista «iluminado», de um  artista «esclarecido», os mesmos  painéis tenham sido retirados dos olhos do mundo em 1776, ocultados que foram com o cadeiral ali encostado nesse ano. O «obscurantismo» histórico que girou em torno da sua feitura e arrematação (não sabemos, ao cento, quem os fez, quem os encomendou e quando ali foram postos) culminava com o seu desaparecimento secular. Mas, agora descobertos (estamos em 2017) vemos neles a força dos  impulsos éticos e o claro desejo que têm os artistas (escultores, escritores, poetas, pintores e ceramistas) de, com a sua arte, contribuírem para a dignidade da vida humana numa sociedade mais igualitária e mais justa. 

Nesse entendimento não hesito em sublinhar a intimidade e a ternura expressas nos gestos da figura que enlaça Jesus pelas costas. De aspeto feminino inegável, o braço e a mão esquerda a puxarem Jesus para si e a mão Chaves-1adireita semiaberta, dedo apontado a Pedro, emprestam significado ao que diz a tradição gnóstica sobre Maria  Madalena e suas relações pouco amistosas com Pedro. Temos hoje bibliografia e narrativas abundantes sobre isso, seja em livros, seja em vídeos. Já não é segredo para ninguém que Maria Madalena não era a mulher que, durante séculos,  foi posta no pelourinho catequético, dita prostituta. Antes pelo contrário. Ela, nos primórdios do Cristianismo, foi a «apóstola preferida entre os apóstolos». 

Nada disso, dir-me-ão os exegetas e biblistas encartados que, por força de o serem, sublinharam e  impuseram a divindade de Jesus e desumanamente o expurgaram de sua natural humanidade. Já falei do Concílio de Niceia e eu me lembro agora  do trabalho ele me deu para satisfazer as exigências do meu professor de HISTÓRIA DE ARTE, de seu nome, Mendes Atanásio, formado na credenciada Universidade de Lovaina. Há professores que marcam por nos levarem a ler o que outros são incapazess de fazer ou estão proibidos de fazê-lo. Ele fazia jus ao seu nome: Atanásio, como ja referi acima.

E não me fico por aqui. O artista, fazendo justiça ao «Século das Luzes», à emancipação da crítica e livre pensamento, associando aquele olhar ternurento e feminino ao gesto do seu braço direito estendido, mão semiaberta e dedo apontado a Pedro, parece ter colocado na sua boca a magoada pergunta: «Mestre, porquê ele e não eu?» Um indecifrável mistério posto disfarçadamente nas imagens pelo criador, tal como misteriosa é toda a vida de Jesus, posta nos Evangelhos, a começar pelo seu nascimento.

Dizem os cânones que «Deus escreve direito por linhas tortas». Quem nisso acredita e tal apregoa em defesa de tudo o que é sagrado, e porque «insondáveis são os desígnios do Senhor»,  bem pode interrogar-se sobre quem, ao longo dos tempos, inspirou e iluminou os escritores, escribas, pensadores, poetas, artistas plásticos e estudiosos das Sagradas Letras  e das Letras Profanas por forma a manterem viva, no tempo e no espaço, na escrita e na arte, a tradição gnóstica que sublinha a importância e a  presença que Maria Madalena teve na vida de Jesus. Mais do que ela, somente a sua mãe, Maria. Ambas, lado alado, afogadas em lágrimas e dor, ouviram o seu último suspiro e a frase lancinante que Mateus (27:46) e Marcos (15:34) registaram:

- Eli, Elí, lama sabactani?

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.