Eis o que ele no diz:
«(...) No mais alto do monte, em que a vila tem seu assento, estava antigamente um castelo do qual dizem tomou o nome de Castro e por ser lugar alto, a todos os ventos exposto o apelido de Aire, chamando-se vulgarmente Castro d' Daire. E conta-se que passando por aqui el-rei D. Dinis lhe pediram os moradores deste castelo, para fabricarem de sua pedra uma Igreja. E dando-lhe de boa vontade fizeram a que hoje serve de Matriz , enriquecida do presente com Relíquias que nela acharam há poucos anos e com milagres de cada dia por meio do pão que nela se toca e benze a todo o tempo o qual fica isento de corrupção (...)" (1)
Pois bem, face a esta asserção escrita com base na tradição oral, sabendo nós que entre os tempos da governação de D. Dinis e o registo escrito dessa tradição decorreram cerca de 300 anos, convém saber, antes de qualquer especulação, se, passado tanto tempo, a tradição possuía ou não alguma credibilidade para Jorge Cardoso proceder ao seu registo num livro cujo conteúdo se destinava a esclarecer as gentes do futuro.
Para facilitar o raciocínio situemo-nos no ano de 1308, data em que D. Dinis «lembra aos moradores a obrigação de lhe fornecerem anualmente 300 pães, 3 moios de vinho, 6 moios de cevada, uma vaca, 2 porcos, 4 carneiros, 2 cabritos, 23 leitões, 15 galinhas, 50 ovos, 1 alqueire de manteiga e outro de mel, uma réstia de alhos e outra de cebolas, u almude de sal e outro de vinagre, 3 cargas de lenha e ainda um maravedi de cera e pimenta em troca da 'colheita' entregue aos seus procuradores», encargos esses que satisfazendo uma «petição do concelho, aprouve-lhe comutar todos esses foros em 40 libras de dinheiros portugueses velhos a 20 soldos a libra» (2).
Vemos assim que D. Dinis, em 1308, não se tinha esquecido das gentes de Castro Daire, lembrando-lhe os seus deveres de vassalos. Mais: que, face ao desejo manifestado pelos moradores do concelho, todos esses foros, até aí pagos em espécie, passaram a ser pagos em dinheiro.
Assim sendo, e tendo em conta a força da tradição oral numa comunidade analfabeta e rural, mais a típica condição humana de ser numa idade avançada que se reproduz com mais fidelidade o que se aprendeu em criança, considere-se o leitor, natural de Castro Daire e membro dessa comunidade. Considere que em 1308 é uma criança com 10 anos de idade e que, conjuntamente com o seu pai de 40 e o seu avô de 90, viveu esses acontecimentos. Que os membros da sua família eram alguns dos suplicantes que se dirigiram ao rei e, noite após noite, evocavam a benignidade de D. Dinis para com os seus súbditos, comutando-lhe os foros pagos em espécie por dinheiro e autorizando a utilização da pedra do castelo numa igreja. Considere que se tornou, também, pai e avô e com a idade de 90 anos transmitiu ao seu neto, de 10 anos, tudo o que presenciou e viveu, relativamente a esse acontecimento; considere que este seu descendente cresceu, teve filhos e chegando aos 90 fez o mesmo com o seu neto e este procedeu da mesma forma e assim por diante. Depois faça as contas, some as gerações, e verá que se torna claramente verosímil que os seus descendentes, não vivendo diretamente os acontecimentos em 1308, mas sendo do seu conhecimento depositários de geração em geração, bem podem ser incluídos no rol das «fontes orais» de que se serviu Jorge Cardoso no ano de 1666, quando passou a escrito essa tradição.
Não sou a primeira pessoa a interrogar-me sobre este assunto. Pinho Leal, no seu «Portugal Antigo e Moderno», é da opinião que a tradição não teria qualquer fundamento, visto D. Dinis, conhecido como «um incansável construtor de castelos e torres» (3) mais sensibilizado estaria para mandar proceder à reconstrução das muralhas do que autorizar o seu desmantelamento.
Será assim?
(continua)
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