Trilhos Serranos

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terça, 13 dezembro 2016 13:08

DESCOLONIZAÇÃO V

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MESINHA DE CENTRO

Era uma peça de arte feita em pau preto, estilo indo-português. Tampo inteiriço, oitavado, na parte superior tinha desenhos em alto relevo lavrados por anónimo mas exímio artista no manejo da goiva, do formão e das ferramentas cortantes afins. 

Na parte inferior tinha um rebordo saliente para encaixar e para manter firmes as oito faces laterais rendilhadas. Cada uma tinha cerca de 50 centímetros de altura e 20 de largura. Eram faces articuladas e, retirado que fosse o tampo, elas dobravam-se sobre si próprias, assumindo uma forma plana de fácil acomodação e transporte.

Os desenhos das oito faces eram feitos em recorte vazado,  o que fazia de cada uma  um retângulo rendilhado que só visto. Colocada que fosse em cima de uma mesa de sala de estar com uma luz dentro, esses desenhos projetavam-se em sombra em tudo o que estivesse em redor. Obra artisticamente inteligente. Nessa posição, girando nós em torno dela, tínhamos um movimentado jogo de luz e sombra, formas e figuras diversas, consoante a nossa postura e tamanho. Protagonista desse jogo, só uma pessoa desprovida de sensibilidade artística se não interrogava: «quem terá sido o autor desta maravilha?»

Comprei-a a um senhor indiano que, descrente da independência de Moçambique, resolveu deixar  Lourenço Marques e fazer de Londres a sua nova morada, antecipado e seguido por muitos outros seus irmãos de raça, de credo e de cultura. 

Acorri ao aviso de «VENDA DE RECHEIO DE CASA» e encontrei um senhor de meia idade, sentado num cadeirão, pronto a receber quem chegasse interessado na aquisição dos móveis e bibelôs que recheavam a sua sala de estar. Sei lá se a sua vida inteira. Gente abastada. Estou ainda a vê-lo de olhar triste. O branco do seus olhos, a contrastar com a sua tez natural,  fixou-se nos meus no ato do negócio e transmitiram-me uma dose de piedade e desalento que ainda hoje me ferem a alma. Num só instante, numa simples troca de olhares se fundia o desalento dele e a minha confiança. Se fundia a tristeza de quem parte e a esperança de quem fica. O custoso desapego de quem vende e o ânimo confiante de quem compra. Vendia sem regateio nem comentários. Aceitei o preço (ao desbarato) e a MESINHA DE CENTRO, aquela singular obra de arte, num ápice, mudou de proprietário e de moradia. As sombras do rendilhado das suas oitos faces laterais passaram a projetar-se nas quatro paredes da minha sala e dos meus móveis. Passou a ser encanto meu, o encanto da minha mulher e de todas as visitas lá da casa. Mas, nesse jogo de luz e sombra, esteve  sempre presente em mim aquele olhar desalentado de quem vendeu, de quem teve e deixou de ter, o jogo entre o TER e o SER e a sobrevivência do SER ao TER.

É que também nós deixámos Lourenço Marques. Regressámos ao «puto» sem contribuirmos para o volume de contentores que se alinhavam e amontoavam no Cais Gorjão, abarrotados com mobílias de estilo, novinhas em folha, feitas em umbila, pau preto e pau rosa. Peles de leopardo e dentes de marfim, trabalhados e em bruto. Muitos deles expedidos por ex-administradores de distrito e de militares em fim de comissão. Uma, duas e três. Outros tantos com os tarecos usados e gastos em casa de gente humilde que punha a salvo o que podia. Quantos deles apodreceram no Cais de Lisboa, à beira do Tejo, sem terem chegado ao destino?

Não fizemos isso. Uma colega da universidade chamada ROSA, visita frequente da minha casa, foi a proprietária que se seguiu da MESINHA DE CENTRO. Oferecemos-lha a pensar no artista anónimo que a lavrou. Aquela peça, para nós, dada a inteligência e arte  incorporadas, não era um produto de mercancia, tal como de mercancia não eram, nem são os nossos afetos. E eu não quis transmitir à nossa amiga o olhar de piedade e desalento que o senhor indiano me transmitiu, a mim, no ato de desfazer-se dela. Nunca mais nos vimos. Será que ela, essa nossa amiga, por lá ficou, ou também abandonou os ares do Índico? Lá ou cá, onde quer que se encontre, se, ocasionalmente, esbarrar com esta tábua de navio naufragado  perdido no «mare magnum» da Internet, saberá que ainda hoje não esqueci, nem uma, nem outra. Nós somos MEMÓRIA e esta sobrevive sempre à MATÉRIA. 

Naqueles tempos, de mar político encrespado, nem uma foto lhe tirei. E na Internet, a imagem que encontrei disponível de tampo mais parecido na forma, mas claramente de figuras diferentes e sem as faces articuladas de apoio, foi a que se segue.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.