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terça, 28 maio 2013 20:39

POLITICA E JUSTIÇA

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Mas o capitão miguelista, Manuel de Freitas Pinto e Sousa, antes de morrer no cerco do Porto a bater-se pelo seu rei, tinha outra batalha pela frente. Em Março de 1831, ufano do posto militar com que ilustra o seu nome - capitão do Batalhão dos Voluntários Realistas de Castro Daire -   passou uma procuração a José Joaquim Correia, de Sanfins, para ser válida «em qualquer juízo ou tribunal deste Reino (...) especialmente no Juízo Ordinário do Concelho de Sanfins (...)  numa causa de Libelo sobre bens de Raiz que juntamente com nossa Mãe e sogra D. Teresa de Sousa e outros de Passos de Souzelo do mesmo concelho vai mover contra Manuel Joaquim Lopes de Sozello e Mulher».

 

Podemos adiantar desde já, como tudo indica, tratar-se de outra batalha entre miguelista e liberais travada nos tribunais, que o capitão não vai ver terminada. É que, a folhas 45 do processo lê-se: «Diz D. Joana Júlia de Madureira, da freguesia de Sozelo deste concelho (de Sanfins) que na causa de libelo de raiz que contende com D. Tereza de Souza, de Passos da mesma freguesia e com seu genro, o Capitão de Voluntários do Batalhão Realista de Castro Daire, António de Freitas, é este falecido na presente campanha e como se ignoram seus herdeiros por isso se deve proceder nos respectivos autos».

Na origem da questão estava o facto de Francisco Pinto de Assis ter casado contra a vontade dos pais, com uma senhora de Além Douro «que não era de menor condição».

Família de relações cortadas, Francisco de Assis vivia numa casa alugada e ao precisar de algumas madeiras para arranjar um forno, aproveitou a ausência do pai, que tinha ido à feira de S. Martinho, e foi às suas propriedades cortar um pinheiro. Logo que o pai regressou da feira, a mãe atiçou o marido contra o filho. O pai carregou uma espingarda, procurou o filho por todos os lados e no recontro dos dois, foi o pai que acabou morto. Estávamos em 1827. Um dos juízes da terra era, na altura, Manuel Joaquim Lopes, o que lhe tinha comprado as terras, caracterizado nos autos como "homem fino e sagaz, muito amigo do parricida". Como não prendeu de imediato o seu amigo por, alegadamente, conhecer as circunstâncias que rodearam o crime - na contestação o advogado   de  Manuel  Joaquim  Lopes diz que a mãe foi a principal

culpada por atiçar o pai contra o filho - Francisco de Assis foge dali para os confins do Reino até que foi preso em Ovar,  devido à feroz perseguição que lhe foi movida pela mãe «para encobrir o crime que ela tinha cometido»(sic).

No caso das terras, as autoras do processo alegavam terem sido vendidas/compradas depois do parricídio com documentes «antedatados», na previsão de que a escritura de doação seria tornada nula e os bens em causa voltariam à posse dos doadores. Os réus alegavam o contrário, que não senhor, que o pagamento da sisa e laudémio estavam registados «em livros rubricados e numerados» onde se não podia fazer tal tramóia. Chegado ao fim, a sentença é proferida a favor das autoras, na ausência de Manuel Joaquim Lopes, que não pôde apresentar testemunhas de defesa, porque estas,  «Manuel de Sousa de Vilela e filhos se achavam na cidade do Porto em defesa da Nação». Ele próprio, Manuel Joaquim Lopes, como diz o seu advogado, «foi um dos mais perseguidos pela denominada Rebelião de 1828, sendo preso e conduzido à cadeia de Canavezes e dai removido para outra de Vila Boa do Bispo, aonde esteve encarcerado quase dois anos, sendo solto no dia 20 de Abril passado (ano de 1834), dia em que no dito Concelho foi restaurado o feliz governo da Nossa Excelsa Soberana, a Senhora D. Maria Segunda».

São as palavras do seu advogado de defesa logo após a reabertura do processo feita a requerimento do interessado no dia 23 de Julho de 1834. Nesse requerimento o ex-juiz alega que a sua ausência se deveu ao facto de ter estado preso nas cadeias «pelo crime de ser afecto ao governo da Rainha, Senhora D. Maria Segunda» razão por que não pudera defender-se e, por isso, pedia agora «o visto dos autos para os competentes embargos»..

O processo, truncado como está (parte das folhas, à falta de outro papel, foram utilizadas em pacotinhos de sulfato) não permite saber o desfecho da questão. Porém, da leitura dos documentos que restam, conhecido o tempo em que decorreu o processo (as terras foram vendidas a um liberal em 1827. O processo só é colocado no tribunal em 1831. A  sentença é  proferida em 1834, antes da expatriação de D. Miguel e da restauração do Regime Liberal e as circunstâncias que o rodearam (o casamento do filho contra a vontade dos pais, o pai a enfrentar o filho com uma arma e o filho a matar o pai, conhecidas as provas e os argumentos  apresentados por ambas as partes, sabidas as divergências políticas existentes entre elas (um interveniente do processo, através de procuração, era o miguelista e o outro era liberal), observada a instrução do processo, ouvidas as testemunhas e as respostas decoradas e repetitivas dadas a cada um dos artigos, permite concluir-se que um libelo, substantivamente centrado numa questão de bens de raiz, objectivamente relacionado com um drama familiar, foi oportunamente colocado no tribunal, em 1831, por razões políticas.

Mais, quem tiver presente as relações criadas entre amigos e familiares nos tempos efervescentes da Revolução do 25 de Abril de 1974 - amigos contra amigos, irmãos contra irmãos, filhos contra pais - facilmente concluirá que, quando o pai de Francisco de Assis carrega o bacamarte e procura o filho, não vai pedir contas ao seu filho, vai bater-se com um jovem rebelde que não respeitou a tradição da família relativamente ao casamento, o homem que tinha por amigo um juiz, um político confessadamente liberal pronto a bater-se contra o absolutismo. E quando Francisco de Assis matou o pai, não matou o progenitor, matou um miguelista, adversário do seu amigo juiz, um homem agarrado aos princípios e valores da autoridade paternal aristocrática, um chefe de família intransigente para quem afronta com rebeldia os princípios e os valores tradicionais que preconiza e defende.

Em suma, este libelo, alargado ao todo nacional, traduz as querelas da família portuguesa desavinda - miguelistas de um lado e liberais de outro, guerra civil com mortes, perseguições,  oportunismos e também convicções. E foi, certamente, o triunfo do liberalismo e o oportunismo do ex-juz, «fino e sagaz, amigo do parricida», que permitiu reabrir o processo e, consequentemente, podermos, hoje, tirar estas conclusões, ilustrando, ao mesmo tempo, a luta pelo poder e pelos meios de produção com o beneplácito dos tribunais do tempo.

(cf.Abílio Pereira de Carvalho, «Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura», ed. Câmara Municipal de Cstro Daire, 1995, pp 19-26) 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.