QUANDO A GRATIDÃO TEM CONTEÚDO
Lourenço Marques. Era Dezembro de 1973. Eu tinha ido ao cinema com a minha mulher, Mafalda, e ao regressarmos a casa tropeçamos num embrulho colocado na soleira da porta. Estranhámos o facto, mas vimos imediatamente que entre os liços que apertavam o volume estava um «cartão de visita» de pessoa amiga. Lemos o «cartão», cujo «fac-simile» e conteúdo aqui reproduzo:
«O Guedes pretende manifestar, através desta pequena lembrança e em quadra de sentimento particularmente comunitário, a sua gratidão pela ajuda no êxito encontrado no 1º Ano do Curso de História e contribuir, ainda que modestamente, para o vosso recheio bibliográfico, base de um futuro feliz que, do coração, vos auguro com um abraço amigo».
Natal, Dz, 73»
Tratava-se de uma «prenda de Natal» oferecida por um colega da Universidade, Joaquim Pereira Guedes, (Inspetor na área económica) a quem eu dera preciosa ajuda no 1º Ano do Curso de História. O caso foi que, não podendo ele assistir a todas as aulas, por força das funções que desempenhava, pediu-me para eu lhe fornecer os apontamentos de cada aula e, em véspera de testes, termos um debate «a dois» sobre o matéria a examinar.
Assim fizemos. Chegava o dia do teste e ele, inteligente como era, respondia às perguntas feitas e... venha outro.
Agradecia-me pessoalmente à da sala e assim se foi passando o ano. Mas, um dia, ao fim de uma daquelas «sabatinas» recusou-se a ir fazer o teste, dizendo não se encontrar suficientemente preparado e seguro da matéria. Determinado a desistir, não ia aquele teste e pronto. Iria ao seguinte.
Ora, conhecendo eu as suas capacidades e a forma como ele absorveu a matéria em apreço, retorqui-lhe: «faça como quiser. Se for ao teste, tem duas hipóteses: chumba ou passa. Se não for, a minha ajuda termina aqui mesmo».
Face ao meu desafio e não querendo perder a minha colaboração, ele foi fazer o teste e saiu-se bem. A partir daí a amizade e a confiança reciprocas que já havia entre nós consolidou-se e estou seguro que esta «prenda de natal» se deveu, em grande parte aquele pequeno-grande dilema em que o coloquei. «Ir ou não ir, era a questão».
A prenda era a «Grandeza e Decadência de ROMA», Editora Globo, Rio de Janeiro, 1965, constituída por 5 volumes. E claro que foram todos lidos e ainda hoje consultados. Que maior prova de amizade e de «gratidão» se pode dar a tantos anos de distância?
A «descolonização» afastou pessoas, parentes e amigos. Sabendo-o natural de Britiande, Lamego, um dia, há muitos anos, fui lá procurá-lo. Que sim, senhor. Estava em Lisboa, mas todos os anos, pelo natal, marcava a sua presença na moradia que se diz ter sido habitada por Egas Moniz. Fui ter com ele. Conversámos. Disse-lhe que estava colocado em Castro Daire. De passagem para Lisboa (não havia a A24) que desse sinal de si, para convivermos como outrora. Mas não deu. Nunca deu. Nunca mais o vi. Vá lá saber-se por quê.
Mas eu aqui estou publicamente a agradecer-lhe a «oferta» e a mostrar que não me esqueci dos amigos, que amigos foram, lá no outro hemisfério, em terras de Moçambique, banhadas pelo Índico.