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sábado, 03 setembro 2016 11:49

CASTRO VERDE - TESTAMENTO - IV

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Mas José Francisco Lampreia não legou aos seus familiares apenas este documento. A República tinha 4 anos de idade e o lavrador, solteiro, presumo que jovem, precavia-se com documentos em defesa dos teres e haveres herdados. Ele sabia que, na Revolução de 1820, os ventos da História tinham desapossado os donos de muitas das suas propriedades e foros, alguns dos quais lhe vieram à herança graças a Cesário Francisco Lampreia de Brito que alguns adquiriu em «hasta pública», na qualidade de  «BENS NACIONAIS» postos à venda nas listas para o efeito elaboradas e publicadas nos termos da lei. Assim o dizem as três «cartas régias» assinadas por D. Carlos.

D. Carlos-1 -RedzPRIMEIRA: 

«Dom Carlos, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, etc. faz saber a todos os que esta carta de pura e irrevogável venda virem que procedendo as diligências necessárias e anúncios e solenidades da lei e estylo, arrematou em hasta pública na repartição de Fazenda do distrito de Beja, em dezassete de outubro de mil oitocentos e noventa e dois, António Jorge,  por sete mil duzentos e vinte reis, na conformidade da lei de vinte e oito de agosto de mil oitocentos sessenta e nove, o foro  número quatro da lista dezanove mil quatrocentos e oitenta que pertencia á Misericórdia de Castro Verde, a saber: concelho de Cast4ro Verde: foro de mil e seiscentos reis com vencimento em trinta e um de dezembro e laudémio de quarentena imposto em nove pés de oliveiras situadas na herdade denominada do Zambujal na freguesia de Castro Verde. Enfiteutas, António Jorge. e tendo o arrematante entregue na Agência do Banco de Portuga em Beja o preço da arrematação em vinte e dois de outubro e na recebedoria do indicado concelho em vinte e três a quantia de seis centos noventa e três reis de contribuição de registo adicionais e selo como  constou dos competentes recibos: hei por bem transmitir-lhe por irrevogável e pura venda todos a posse e domínio que no referido foro tinha a dita corporação para  que o arrematante e seus herdeiros e sucessores o gozem, possuam e desfrutem  como  próprios. Pelo que mando a todos os ministros, justiças e mais  pessoas a quem o conhecimento desta carta haja de pertencer que sendo por mim assignada de chancela e ....também de chancela pelo ministro e secretário de Estado dos negócios da Fazenda, na conformidade do decreto de  vinte e cinco de novembro de mil oitocentos cincoenta e três e competentemente selada e registada nos livros respetivos a cumpram, guardem e e façam inteiramente cumprir e guardem sem dúvida ou embargo algum e que o administrador do concelho de Castro Verde sendo-lhe estes apresentados depois de exaradas as verbas de ficarem anotadas na repartição de fazenda do distrito do assentos relativos ao mesmo foro faça dar  posse d'ele  ao arrematante de que se lavrará auto para a todo o tempo constar a referida venda. Lisboa, vinte e seis de novembro de mil outocentos noventa e dois.

El Rei»

 No rodapé figura a seguinte nota: «Carta de venda do foro imposto em umas oliveiras situadas no concelho de Castro Verde que arrematou António Jorge. Tudo como se declarou».

E no cabeçalho da folha seguinte: «P. na conformidade das instruções de 25 de novembro de 1869", (seguido de assinatura ilegível). E no rodapé da mesma folha:  «Joaquim Mendes Neutel. Pagou  de seu foro cento dezoito setecentos e dois  reis  de emolumentos e adicionais,  mil  cento e  trinta e três reis. (Neutel)».

 

D. Carlos-2 - ReduzSEGUNDA:

 «Dom Carlos, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, etc. fazia saber da arrematação feita em hasta pública no dia vinte e seis de novembro de mil novecentos e três por Cesário Francisco Lampreia de Brito, pela quantia de cento e trinta e nove mil e quinhentos e trinta reis» do foro que pertencia à Junta de paróquia da freguesia da vila  de Entradas, sob o número seis e foi posto à venda na lista vinte e cinco mil quatrocentos e oitenta. a saber: Concelho de Castro Verde - Foro de duzentos vinte e dois litros e nove decilitros de trigo, com laudémio de quarentena e vencimento em quinze de agosto, imposto ba herdade do Laranjo na freguesia de Entradas que se compõe de casas de morada, montado de azinho, terras de semear e pastagem; confronta do norte com a herdada da Samarra, nascente com a da Fonte Santa, sul com a do Chaparral e poente com a do Montel. enfiteuta, Cesário Francisco Lampreia de Brito».

 Cumpridas as formalidades legais de registo, em «conformidade das instruções de 25 de novembro de 1869, Ministério da Fazenda, Direção da Estatística e dos Bens Próprios nacionais» o cerro é que na orelha esquerda do cabeçalho da carta se encontra registada, a letra diferente a seguinte nota:

«Almodovar. Apresentação nº 1 em 31 de Julho de 1916.  O Conservador,  Basílio Junior».

E ao lado as estampilhas fiscais da «REPÚBLICA PORTUGUESA» no valor de 0$09 e 0$01, tendo sobre elas a assinatura de Joaquim José Leiriol e a data de 20 de julho de 1916. 

 D. Carlos-3 - Reduz

TERCEIRA:

 Idem, arrematação feita em seis de setembro de mil novecentos e seis, por «Cesário Francisco Lampreia de Brito, pela quantia de  trezentos e cinco mil reis, na conformidade com a lei de 28 de agosto de 1869 0 seguinte foro que pertencia à Confraria do Santíssimo Sacramento erecta na Igreja Matriz da vila de Entradas e sob o número dezasseis. Foi posto à venda na lista vinte e oito mil novecentos e cinco, a saber: concelho de Castro Verde - Foro de quatrocentos quarenta e cinco litros e oitenta centilitros de trigo, com vencimento a quinze de agosto e laudemio de quarentena imposto na Samarra de Baixo que se compõe de terras de semear e pastagens. ma freguesia de entradas; parte do norte com herdade do Montel e Cachia, nascente com a da Misericórdia e Laranjo; sul e poente com a herdade do Laranjo e Samarra de Cima. enfiphiteuta, Cesario Francisco Lampreia de Brito».

Cumpridas as formalidades do costume, também este documento tem a nota na orelha esquerda do cabeçalho: «Almodovar. Apresentação nº 1 em 31 de julho de 1916. O Conservador, Basílio Junior»

Precavido, José Francisco Lampreia, receoso de que a República, nascida havia 4 anos, viesse a seguir idêntica filosofia e a questionar a posse dessas propriedades e foros, apressou-se a coligir toda a documentação guardada nas escrivaninhas lá da casa relativa aos bens herdados e a fazer dela registo nas repartições competentes.

Nuro-GaloMas o documento mais relevante do lote que me foi doado pela tia GINA (que, para além das ofertas referidas,  tinha por mim uma consideração indescritível, como bem se vi  no trato que tinha comigo durante as longas conversas que desbobinávamos sobre tempos antigos, em sua casa, sentados junto do rebordo da cisterna que tinha nas traseiras da casa, junto ao quintal. Ali tirei a foto ao meu filho em diálogo com um galo garnisé, que aqui anexo com os afetos e carinhos de pai. Tia inteligente, nada abonada de carnes, no rosto sempre um sorriso, muito espirituosa, piada de fino humor, era um gosto ouvi-la. Com uma irmã deficiente a cargo (a Marianita, que Marianita cresceu, envelheceu e morreu) optou por ficar solteira e a ambas conheci a viver sob o mesmo teto, na vila de Castro. Os cuidados prestados à irmã são um exemplo de humanidade que eu nunca deixaria omisso nos  meus escritos. Chegou a hora disso,, agora que falo das terras e das gentes de Castro Verde. E ela sabia que ao passar-me para as mãos aquele TESTAMENTO eu dar-lhe-ia o tratamento e o enquadramento histórico devidos. Mais tarde ou mais cedo, o seu conteúdo levar-me-ia de retorno às terras do «campo branco». Não se enganou.

Nesse testamento encontrei os apelidos «LANÇA, BRITO e GUERREIRO». Não foi necessário recorrer aos nobiliários para chegar às ramificações genealógicas da minha esposa, MARIA MAFALDA DE BRITO MATOS LANÇA, apelidos que transmitimos aos nossos filhos, NURO e VALTER, os quais, que mais não seja, serão sempre os seus elos de ligação ao Alentejo e aos membros da FAMÍLIA que por lá ficaram na labuta pela vida. Deles e também das minhas netas e neto: MAFALDA, MARTA E GUILHERME. 

E folgo de não ter estado sozinho nesta minha incursão ao passado alentejano.  Basta ver o número de visitas que deixaram a marca da sua passagem nesta minha página. Poucos se decidiram "comentar", mas muitos foram os que leram. O Dr. José Guerreiro, fiel às suas RAÍZES e às amizades antigas, apressou-se a partilhar todos os textos. O primo Francisco Matos Brito logo mostrou o seu agrado pelo primeiro texto, classificando-o de «soberbo». Belo adjetivo. Se aquela nossa tia GINA fosse viva orgulhar-se-ia, por certo, dos seus sobrinhos. E creio que posso alargar o juízo a todos os familiares e amigos que deixei em Castro Verde.

E presumo o orgulho que teria nisto a minha esposa, natural daquele concelho, minha companheira de estudo, de docência e de investigação. Falecida prematuramente ela não pôde acompanhar-me nesta viagem a Sã Marcos d'Ataboêra, na companhia do tabelião de «Notas, Público e Raso» João António Figuêra, montado no seu cavalo, atento às lombas e curvas do caminho. Mas se fosse viva, presumo eu, ambos montados na HERMENÊUTICA que não adquirimos na »«Feira do Crasto» mas na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, senhores das rédeas, atentos às linhas, às frases, às palavras, pontos e vírgulas dos documentos herdados da família, faríamos com eles o que era nossa obrigação:  HISTÓRIA. 

Não sou tabelião. Os meus textos não são um TESTAMENTO CERRADO. Bem pelo contrário, são «deixas» abertas ao mundo. Não possuo larga cópia de bens rústicos e urbanos para distribuir, visando o «bem da minha alma e descargo da minha consciência». Não vou deixar missas simples ou trintários delas. Não vou sufragar as almas do Purgatório, nem deixar missas a Santos. Vejam só! Não acredito nesses rituais da morte que alimentam ilusões e gente.  Mas é meu desejo que os documentos e artefactos que me foram doados pela tia GINA, que depositou em mim a confiança que, atualmente,  não merecem certos banqueiros, permaneçam em segurança nos cofres afetivos da FAMÍLIA. E, que diabo, porque acredito que a MEMÓRIA sobrevive à MATÉRIA, em nome da confiança que mereci de gente viva, também tenho o direito a mandar alguma coisa depois da morte

FIM

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.