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sexta, 06 maio 2016 09:26

CUJÓ - A ORIGEM DOS «FRANCESES» - 1

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CUJÓ - A ORIGEM DOS «FRANCESES» - 1

O historiador quando escalpeliza os testamentos não o faz conduzido pela mão da necrodulia, mas antes ciente de que é através deles que mais seguramente penetra nas profundezas da mente humana, no pensamento escatológico de uma época, do pensar, sentir e agir dos testadores que, às portas da morte, procuram dar sossego às suas almas e comprar o céu espiritual do outro mundo a troco dos bens materiais de que se gozaram neste e não podem levar consigo. Tudo através dos testamenteiros, advogados e tabeliães.

 

Dar o seu conteúdo à estampa, seja por que meio for, indiferentemente do ano, mês, dia e hora ou era em que eles foram lavrados, fechados e lacrados, é fornecer peças indispensáveis à elaboração da história das mentalidades.

 CUJÓ, Testamento de João Pereira de Morais, viúvo, 1850*

  1º PÁGINA TESTAMENTO          «Eu João Pereira de Morais, viúvo, lavrador, morador no lugar de Cujó, freguesia de São Joaninho, julgado e concelho de Castro Daire, achando-me adiantado em anos, determino fazer meu testamento da forma seguinte: quero ser sepultado na capela de Nossa Senhora da Conceição da minha freguesia e ofertado, segundo o uso e costume, que por minha alma se me digam cem missas e mais doze de tenção esmola ordinária e por uma só vez; que aos pobres se distribuam doze alqueires de pão cozido tirados do monte ou de toda a minha meação e será repartido até pão à porta da capela pelo melhor modo e quando meus herdeiros e testamenteiro melhor puder, mas dentro em meio ano.

 Tenho em minha companhia três filhos = Francisco = José = e Maria = e dois casados, fora, que são Josefa e António. E porque os primeiros três me têm servido e aturado devo ter com eles contemplação, por isso, nomeia a meu filho Francisco o Prazo chamado da Parede, foreiro a Tourais, e lhe deixo a belga pegada no dito Prazo e terra da Parede, bem como a espingarda que foi de José Carvalho.  Deixo a meu filho José tapada do Redondel e a minha filha Maria a minha metade da lameira das Forcadas, abaixo e acima do rego, metade da lameira das Fragas e metade do tear e a todos os ditos três filhos = Francisco, José e Maria = deixo a minha metade das casas onde vivo com seus dois quinteiros fechados com uma só porta. Toda a carne de porco, unto e manteiga que houver, deixo a sorte que me compete no pão colhido ou granjeado e ainda pendente aos ditos meus três filhos, Francisco, José e Maria. Deixo a meu filho António a minha metade da lameira das Fragas e a minha metade da leira do Portinho. E deixo a minha filha Josefa a minha metade da leira doChanderão, a de ao pé do caminho e a minha metade da lameira do Sabugueiro, abaixo da levada e aos ditos António e Josefa a minha metade da casa que foi de João da Francisca. Deixo aos ditos três filhos ? Francisco, José e Maria ? a minha sorte que me compete nos carros que existem na casa, tudo em pagamento dos serviços que me têm feito e bem como me tratam e se necessário for lho deixo dentro das forças do meu terço. Declaro que a despesa do bem de alma deve sair dos legados a proporção do que deixo a cada um, exceptuando o Prazo.                  E meu filho Francisco será o meu testamenteiro. E no resto de meus bens instituo por meus universais herdeiros a todos os ditos meus cinco filhos. Declaro que o pão das esmolas, como dito fica, sairá do monte, mas a cargo dos meus três filhos, Francisco, José e Maria. E por verdade pedi ao BacharelMáximo Germano Pereira da Cunha, desta vila que este me escrevesse. Deixo a meu netoFrancisco, comigo assistente, a minha metade da horta das Lameirinhas e assim tenho disposto. E por ser esta a minha vontade roguei ao sobredito escritor que este meu testamento me escrevesse o que fez conforme o seu ditame e por o achar conforme assina comigo em Castro Daire aos trinta e um dias de Agosto de mil oitocentos e cinquenta. Porém, como o dito testador lhe custasse a escrever me pediu para que de seu rogo assinasse o que eu fiz, lugar, dia, mês e ano supra. Máximo Germano Pereira da Cunha».

 

            Seguiu-se, na mesa data, o «Instrumento de Aprovação» feito em Castro Daire, na casa do advogado, onde se deslocou o tabelião Inocêncio Teixeira do Amaral que, na presença do testador, procedeu à validação do testamento perante as testemunhas, Francisco Marques da Cunha,proprietário; António José Ferreira, lavrador; José Lourenço, taverneiro; José Figueiredo, comerciante e José de Almeida, tendeiro, todos moradores na vila e todos assinaram. O advogado assinou a rogo do testador por ele declarar que «não podia escrever em razão dos padecimentos que sofre da mão direita». 

            E segue-se «Deveritatis a Tabelião = Inocêncio Teixeira de Amaral = Eu José da Costa Pinto, Regedor da Paróquia, reconduzido nesta freguesia de São Joaninho, certifico em como no dia dezanove de Fevereiro do ano de mil oitocentos e cinquenta e dois, pelas dez horas da manhã do dito dia, compareceu nas casas e morada do mesmo defunto, me foi apresentado este testamento que achei intacto sem entrelinha, borrão ou veio algum que dúvida fizesse o qual li e restituiu aos herdeiros do defunto e por verdade e para constar passei o presente que assino. São Joaninho, dezanove de Fevereiro de mil oitocentos e cinquenta e dois. O Regedor da freguesia José da Costa Pinto».

Sobrescrito: testamento do testador João Pereira de Morais, viúvo do lugar de Cujó, deste Julgado, fechado, cosido com três pontos de linha preta cobertos de lacre encarnado. Aprovado em trinta e um de Agosto de mil oitocentos e cinquenta por mim tabelião Inocêncio Teixeira de Amaral. E não continha mais nada. Castro Daire, 31 de Março de 1852- eu José Maria Duarte Cerdeira, escrivão da Administração o subscrevi e assinei».

IMG 1653A casa de «dois quinteiros fechados com uma só porta» deixada por João Pereira de Morais aos filhos era habitada em 1950 por António Pereira de Morais, dito António Francês e pelo filho deste, José Pereira de Morais, dito José Francês, a quem comprei o relógio cuja foto ilustra este apontamento. Isso me levou a sugerir que andariam bem os atuais «franceses» de Cujó em buscar na pessoa de João Pereira de Morais o seu ascendente remoto. E digo isto atendendo ao presumível jovem que seria aquando das «Invasões Francesas», levando em conta que, ao tempo do testamento (1850), se dizia de «avançada idade». Ainda que saibamos da existência, em S. Joaninho, do «cirurgião licenciado António Pereira de Morais, casado com Ana de Morais, de Cujó, que vivia em 1785 e batizou um neto em 1798» (Costa, vol. VI: 509)

E convém saber, como sabem todos os que honesta e cientificamente estudam e fazem a História, que alcunhados de «franceses» não eram apenas e só os cidadãos da França que por aí terão ficado, desertando ou não das hostes napoleónicas. Eram também assim apelidados os portugueses «traidores», isto é, o que se puseram ao lado dos franceses. Se todos os que atualmente se orgulham de fazer entroncar neles os seus ascendentes, terão de saber também isto e manter o seu orgulho patriótico. 

Nota: a fantasia que, por via oral, chegou aos nossos dias, de que na origem dos alcunhados «franceses» de Cujó, estaria relacionada com um soldado francês desertor das tropas napoleónicas, aquando das invasões, não passa disso mesmo, de uma fantasia. Por respeito à tradição cheguei a dar-lhe algum eco (mas não crédito) num DVD que fiz sobre CUJÓ E AS SUAS GENTES, mas tudo isso se esvaneceu quando, no decurso das minhas investigações, encontrei uma «estória» semelhante, contada na aldeia da Gralheira. Com efeito, em Cujó, diz-se que um soldado desertor das hostes napoleónicas teria recebido agasalho de «uma pastora debaixo das suas saias e depois escondido na loja dos porcos» despistando os perseguidores. Assim se terá salvado, casado com a salvadora e deixado descendência. Ora esta mesma «estória» encontra-se mais desenvolvida na povoação da Gralheira, na serra do Montemuro, mas ligada às lutas entre Absolutistas e Liberais. Veja-se o que nos diz Carlos de Oliveira Silvestre, no seu livro «Crónicas da Serra», editado em 1999, página 114: «Porém, a mulher conseguiu escondê-lo, uma vez, dentro de uma grande panela de barro, outra debaixo das avantajadas saias que vestia e ainda outra no ninho dos porcos, na loja por debaixo da casa».

De resto, como fica dito, na origem dos «franceses» de Cujó, bem pode estar um português, pois é historicamente ponto assente que de «franceses» eram alcunhados todos os que, em Portugal inteiro, apoiaram Napoleão e as suas tropas.

Abílio Pereira de Carvalho



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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.