Trilhos Serranos

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domingo, 01 maio 2016 13:11

MERGULHO NA IDADE MÉDIA

Escrito por 

 

PEDAGOGIA

De há uns anos a esta parte, tornou-se moda, em Portugal, mergulhar na Idade Média em diversas localidades do país com a realização das já famigeradas  "Feiras Medievais", atempadamente divulgadas, quer através de cartazes e rádios locais,  quer através de órgãos de comunicação social de mais ampla difusão. 

Há muitos anos, estava tal moda somente no seu estado embrionário, corri à cidade de Viseu, ao Largo da Sé, onde tinha lugar um desses eventos.

Passei-me por ali com muito gosto, apesar de fazer isso mais numa postura de aprendizagem do que numa postura de entretenimento, ainda que, em simultâneo, pudesse fazer, como fiz, as duas coisas.

 Professor de História, diplomado pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, mesmo que a matéria da Idade Média me tivesse sido administrada, na Universidade de Lourenço Marques, pelo saudoso (e sempre lembrado) PROFESSOR HUMBERTO BAQUERO MORENO (hoje falecido),  mergulhei naquele mar de gente, de produtos, de gostos, de animais e de técnicas com o cuidado de descortinar até que ponto se fundiam ali o TEMPO e o ESPAÇO, até que ponto o PRESENTE paria ali o PASSADO, até que ponto se conciliavam ali, com o rigor possível, a matéria investigada, compendiada, «estudada», «vista» e, até, vejam só,  «vivida».

Não fiquei agradado. Não colei ao evento e abandonei o recinto convicto de que não era esse o caminho para ensinar e aprender HISTÓRIA, esta disciplina que tanta falta faz na estruturação do pensamento e à elucidação do caracter evolutivo do ser humano, dos engenhos saídos da sua inteligência e imaginação na luta pela sobrevivência, no eterno combate e convívio com a mãe natureza.

Mas a moda pegou. Já são muitos os concelhos onde se realizam Feiras Medievais. Os adereços nem sequer são difíceis de arranjar, num país que, a bem dizer, manteve até «ontem» as características desse tempo cronologicamente distante, mas realmente estendido até à vida dos meus avós, dos meus pais e de mim próprio.

E que rica experiência esta. Estudar nos liceus e nas universidades a Idade Média, aquele tempo que se convencionou ser o que decorre do século V ao século XV e ter a sorte ou o azar de ser um pergaminho vivo e falante desse tempo "historicamente" distante, pergaminho que não saiu das sábias mãos de um monge copista, mas da escrivaninha usada pelos camponeses, pagadores de dízimas e de foros, que eram os meus progenitores.

Na Feira Medieval de Viseu, estava um ferreiro com a sua tenda e em vez do velho fole de cabedal, em forma de guitarra sem braço, colocado na horizontal, de dupla folha, a soprar e a avivar o carvão incandescente, que punha o ferro ao rubro, para fazer enxadas e ferraduras, como acontecia nas forjas de Cujó, onde, mangas arregaçadas, afeito ao pesado trabalho, tantas vezes, ainda jovem, ajudei a moldar o ferro à força de martelo e malho contra a safra presa num cepo de madeira, na Feira de Viseu, dizia, estava  uma ventoinha de ferro, de manivela, em forma de caracol, um daqueles artefactos saídos das fundições da Revolução Industrial. Lapso imperdoável cometido pelos organizadores. Coisa anacrónica. Mas estava lá. E quem tal viu numa Feira Medieval, nada sabendo de HISTÓRIA, trôpego a deslocar-se no fio do tempo, convencido ficou que «era assim mesmo, o trabalho e a técnica usados».

FEIRA-1-REDZOutra Feira Medieval conheço eu onde, para lá dos adereços campesinos, todos feitos e em uso na minha juventude, desde a utilização dos animais de carga e de tração, ao vestuário e ferramentas, afluem comerciantes com bugigangas chinesas compradas no bazar mais próximo, postas à venda nas bancas montadas ao lado das pretensas bancas medievais.

Nessa feira, sem qualquer explicação pedagógica, misturam-se tempos e produtos. Não há indicação dos diferentes tempos históricos. Mas para o ENTRETENIMENTO e atração turística, tanto faz. O que é preciso é "chamar gente", pois o evento destina-se a dinamizar o comércio num fim de semana e não a ENSINAR/APRENDER história.

Um dia, deambulando por entre os muitos visitantes, fingi ignorar a que se devia o evento e interpelei um deles. Respondeu-me, de pronto, que era uma Feira Medieval. Insisti, querendo saber a que tempo histórico correspondia essa designação e a resposta foi elucidativa: «foi lá p´ra trás, há muito tempo».

Mais uns passos adiante, insisti junto de outro: «olhe, não sou de cá. Dizem que é uma Feira Medieval, mas não sei explicar-lhe»..FEIRA-3- TAMANCOS-REDZ

Eu também não lhe expliquei e nem fiz mais perguntas. Estava esclarecido. Uma frustração para um profissional do ofício que queimou as pestanas a ler crónicas, estudos e ensaios.

Aquele «ajuntamento» de pessoas, naquele largo, onde não faltavam fardos de palha, tavernas, bancos corridos de madeira, mesas avinhadas, artesanato vário, tamancos (os velhos resistentes turtetanos) tendas coloridas, desfile de burros e cavalos, simulacros de justas e de torneios, saltimbancos, palhaços, pífaros, flautas, encantadores de serpentes, pedintes, leprosos, tendas mouras e dançarinas mouriscas, corpos coleantes, turbantes, tudo não passava de um arremedo de história,  bastante rico de ENTRETENIMENTO, mas pobre e vazio de ENSINAMENTO,  ou de incentivo ao gosto pela disciplina mais formativa que integra os currículos escolares, disciplina cada vez mais desprestigiada e, por esta via, mais esvaziada se sentido.

Que pena!

Um dia os organizadores desta feira (um dos quais meu colega) convidaram-me para ir lá ter uma "conversa" sobre o tema,  a fim das pessoas se inteirarem do significado do evento. Louvei a iniciativa, mas conhecendo bem o meio e as apetências da generalidade dos visitantes, alertei-os para o risco de terem a sala vazia, pois se havia eventos onde o ENTRETENIMENTO ganhava à HISTÓRIA, aquele era um deles. Frente a frente tínhamos entre eles  uma autêntica JUSTA MEDIEVAL, sabendo "a priori" qual dos dois saía vencedor.

Insistiram e eu fui. Há hora marcada, com a ajuda de uma ex-aluna minha do Ciclo Preparatório  (já, então, na universidade) que se prestou a fazer uso de um computador e projetar num écran as imagens que antecipadamente eu tinha selecionado, comecei a "conversa"  frente a meia dúzia de interessados. Eles estavam ali, julgo eu, mais dispostos a agradar aos organizadores, de quem eram familiares e amigos, do que dispostos a aprender história.

Traquejado a ler nos rostos e nos olhos da plateia o entusiasmo revelado pela matéria exposta, meti mil anos de história em três quartos de hora e ...ala porta fora, que se faz tarde.

O largo fervilhava de gente. Sentado nas tascas, esvaziando tigelas de barro vermelho a imitar vasilhame medieval, estava o mundo. O mundo inteiro. O tintol esguichava das torneiras esvaziando os barris de carvalho de aduelas cintadas com aros de ferro, provindos de tanoeiro industrial moderno. Os pregões soavam rua abaixo a anunciar as mercadorias, o mel, as ervinhas para chás diversos,  e as pessoas acotovelavam-se nas passagens mais estreitas. Numa das mesas, chapéus de palha de aba larga na cabeça, quatro fabianos, calças e coletes de burel, liam o livro de 40 folhas, que o mesmo é dizer, jogavam a sueca ou bisca samarreira, como diria Aquilino Ribeiro se os meus olhos fossem os dele.

Vaivem-RedzNum dos lados da rua vi alguns moinhos caseiros de granito. Desde o mais antigo, mó de vaivém, tipo lavadouro inclinado, ao lado do moinho de mó circular, movida à força de braço, mão firme no manípulo que nela se espeta na vertical. Uns e outros vêm da pré-história, atravessaram a Idade Média e chegaram ao meu tempo em plena laboração. Serviam para «arreloar» um «surmil» de milho e com o «ralão» fazer uma panela de «carolas» em substituição de uma panela de arroz, que esse era produto para comida  de fidalgos. Hoje, os moinhos caseiros que restam nas aldeias, ainda rodam, mas para proveito das galinhas.

Numa das esplanadas em frente do restaurante, os dentes dos comensais trincham costeletas de porco. Mãos colocadas nas extremidades, costeleta atravessada na boca, qual gaita de beiços em dias de festança e romaria, a  dentuça vai pondo a nu o osso atirado para os cães que rondam por perto.. Isto sim, numa atitude tipicamente medieval para não dizer pré-histórica. Só que as costeletas foram preparadas, prontas a comer, em grelhadores elétricos.

Entro e dirijo-me ao WC. A louça de porcelana e o papel higiénico disponível, mostram-me que, em menos de meio século, a história deu um salto descomunal. Ainda que algumas aldeias do concelho estejam privadas do saneamento básico, e o camponês não tenha abandonado de vez o velho hábito do Pai Adão, que é pôr-se de cócoras e servir-se de uma pedra após a necessidade fisiológica cumprida, aquele equipamento e o respetivo papel higiénico, prontos a serem usados pelos visitantes, são a prova de como a Idade Média, qual emplastro colocado sobre uma chaga do organismo social, se vai descolando muito  lentamente da vida campesina, e ali, naquela Feira Medieval, não podiam deixar de estar presentes  os artefactos trazidos e exigidos pela civilização. Assentei que é impossível voltar atrás no tempo. Que a  HISTÓRIA não é uma paródia e que comboios deste género não levam, efetivamente, à IDADE MÉDIA. Mas respondem à  velocidade, á superficialidade  e à necessidade dos tempos que vivemos. 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.