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sexta, 28 agosto 2015 17:21

NOMES, APELIDOS E TOPÓNIMOS NO FEMININO

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O meu apelido CARVALHO foi herdado do meu pai, Salvador de Carvalho, que, por sua vez o herdou da minha avó, sua mãe, Florinda de Carvalho. O mesmo sucedeu com outros tios meus e uma dessas tias, cujo nome de registo era MARIA DE CARVALHO, conhecida se tornou em toda a aldeia por "TIA CARVALHA".

Carvalha-1Menino ainda, fora das reflexões onomásticas e toponímicas, habituei-me com naturalidade, a ouvir chamar MORGADAS às mulheres dos MORGADOS, RAMALHAS, às dos RAMALHOS, FERREIRAS à dos FERREIROS, CAIXEIRAS à dos CAIXEIROS, MOLEIRAS às dos MOLEIROS, PINTAS às dos PINTOS e GRILAS às DOS GRILOS, etc., etc,.  por aí afora, em consonância com  o que se aprendia nas gramáticas da quarta classe sobre o gênero feminino e masculino das palavras e respectiva concordância.

A partir dessa vivência infantil, sem qualquer explicação adulta ou encontrada nos livros, assentei que a linguagem popular, independentemente das regras gramaticais eruditas, se encarregava de tornar FEMININOS os nomes MASCULINOS desde que eles fossem aplicados às mulheres, às fêmeas, tal como ao burro correspondia a burra. E até nas árvores. O CARVALHO era esguio, alto, de pouco fruto e a CARVALHA era aquela árvore frondosa que dava sombra para um regimento e paria bolotas para alimentar uma vara de porcos.

Cresci, andei por fora, estudei a categoria morfológica das palavras, ampliei os conhecimentos sobre a língua escrita e falada, estudei o Latim e as suas declinações, tornei-me professor, andei por muitos lados e acabei por fixar-me em Fareja. Nesta aldeia vim a conhecer os CARDOSOS e as CARDOSAS, outra vez, no trato oral e popular,  o MASCULINO a virar FEMININO com a naturalidade com que o Sol rompe no horizonte todas as manhãs.

Ora, como uma coisa natural e óbvia não precisa de explicação, nem merece que se perca tempo a refletir sobre ela, fiquei-me acomodado nesse axioma até ao dia em que procedi à leitura de dois testamentos feitos nos meados do século XIX, relativos a duas pessoas da Póvoa do Montemuro. Tratava-se de dois irmãos, um homem e uma mulher. Ele, de seu nome, José Duarte TRULHO e ela, Luisa Duarte TRULHA.

Essa realidade escrita, em testamento, fez-me remontar à minha infância, ao apelido feminino por que era conhecida a minha tia e pôs-me a pensar e a refletir sobre a facilidade que revestia a conversão dos apelidos masculinos em femininos, tanto na oralidade como na escrita, e também sobre certos topónimos femininos, eventualmente de origem onomástica ou vice-versa. Por exemplo em Cujó havia dois sítios designados nas matrizes prediais rústicas, um, por CARVALHOS e outro por VALE DE CARVALHO.

Conhecedor do regime histórico de "emprazamento" das terras, feitos por escrituras públicas onde figuravam os nomes dos senhorios directos das propriedades e dos enfiteutas que se obrigavam a pagar o foro anual, emprazamentos que eram feitos por TRÊS VIDAS, sendo que as duas primeiras vidas eram constituídas pelo casal de enfiteutas  do "prazo" e a terceira por um dos seus descendentes ou pessoa por eles indicada ou nomeada, fácil me foi admitir que se o marido falecesse primeiro, natural era que o "prazo", passando legalmente para a esposa, viesse a ser conhecido pelo seu apelido e não pelo apelido do marido. Daí as casas e terras das CARDOSAS, DAS TRULHAS, DAS CARVALHAS, das CAIXEIRAS, das MOLEIRAS e por aí fora, etc., etc.

E mais uma vez me acomodei, durante anos, neste raciocínio, sem interesse algum em meter-me na floresta toponímica.

Mas eis que ao esbarrar com explicação dada pelo autor do artigo que consta na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, sobre o topónimo CUJÓ, de pronto discordei dessa explicação e, alertado pelo ensaio de Moisés Espírito Santo deixou anexo ao seu livro, "Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa seguido de Ensaio sobre Toponímia Antiga", de quanto aleatória é tal "ciência", atrevi-me a sugerir étimo latino diferente do apresentado por aquele autor, incorrendo, seguramente no mesmo erro em que ele incorreu, procurando ambos radicar o topónimo no étimo latino, ainda que alertado para o facto de poder não ser assim.

Mas não é esse o assunto das minhas presentes reflexões. Arrumada a questão de Cujó, já publicada, há anos, no meu site, com o aval do estudioso latinista, Francisco Cristóvão Ricardo, voltei aos topónimos pelo facto de, recentemente, me terem afirmado, sem qualquer reserva,  que a povoação das MONTEIRAS, freguesia de Castro Daire, deve o seu nome ao "monteiro-mor" que ali residiu, fazendo fé num "documento existente na Torre do Tombo", como me foi dito.

Mostrei a minha ignorância sobre tal documento e o mais que sabia era que o topónimo "monteiras", a propósito de algumas herdades ali existentes foreiras ao Rei, aparece referido frequentemente nas Inquirições de D. Afonso III (1258), na seguinte expressão escrita: "in loco dicitur monteiras".Carvalha-2

Daí que, de acordo com as realidades acima expostas no que respeita à conversão dos apelidos masculinos em femininos, não me parece disparate afirmar que as terras regalengas foreiras ao rei, emprazadas que tenham sido a um enfiteuta de nome MONTEIRO, passassem, por via sucessória, à mulher e, a partir daí, figurassem nos documentos no FEMININO, tal como bem pode ter acontecido com a vizinha povoação das CARVALHAS.

Faço este registo, ciente da dose especulativa que o enroupa, mas necessário era que o fizesse por contraponto a muitos estudiosos teóricos que, sem colocarem os pés no terreno, sem sujarem as botas na lama do campo e dos caminhos das aldeias, quantas vezes pintalgados de bosta de vaca e caganitas de ovelhas, longe do POVO e do seu linguajar, tudo fazem para encontrar nos livros, nos velhos manuscritos, no étimo latino, a explicação para toda a floresta de palavras que constituem o nosso léxico. Questão essa hoje mais que questionável como muito bem explicou Moisés Espírito Santo no ensaio que, sobre a matéria, deixou no livro acima citado. 

E, a este propósito,  não resisto a transpor para aqui que ele sugere aos especialistas a aplicação da «constelação local» dos nomes para a explicação da toponímia.  E exemplifica que "o nome de rio de Lamas", terras de regadio, exclui a explicação "Rivulus Merdaram", expressão adoptada pelos latinistas, agarrados que estavam ao étimo, fazendo crer que «Lamas procede daquele termo». (Moisés Espírito Santo, «Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa seguido de Ensaio sobre Toponímia Antiga (1988), Lisboa: Assírio & Alvim, Colecção Lusitânia nº1, 1988:271) 

Abílio/agosto/2015

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.