Fica claro, assim, que o meu currículo profissional soma uma estada em Tete (Moçambique) e que essa cidade e arredores fazem parte dos trilhos da minha vida, quando eu era ainda jovem e, com essa idade, firme e resoluto, enfrentava o presente e o futuro, fosse qual fosse o clima físico, político e/ou humano/desumano.
Um dia, nesses meus afazeres, desloquei-me à pequena localidade de Boroma, sita 25 quilómetros a norte da cidade, na margem do Zambeze. Fui reparar o telefone da Missão Jesuíta que ali existia e dava formação académica e profissional aos seus alunos. Estive dentro da carpintaria e assisti ao trabalho dos futuros profissionais da arte de carpinteirar, lá, naquele fim do mundo.
E, ao ver aqueles alunos, naquela Missão Religiosa, agarrados à serra e à plaina, lembrei-me imediatamente do aprendiz de carpinteiro que, em tempos remotos, lá para as bandas da Galileia, rejeitou a profissão do pai José para seguir a que todo o mundo cristão conhece. Trocou a enxó e o formão pela PALAVRA e esta chegou aos confins do Globo Terrestre levada pelos seus seguidores. Aqui, a Boroma, a Tete, como a tantos outros sítios das Índias, das Américas e das Áfricas. É que onde chegava uma espada de conquista e descoberta, chegava também uma cruz. E onde se levantava uma feitoria, com armazéns de paliçada ou de alvenaria de barro ou de pedra, digamos, onde se erguia uma fortaleza, para resguardo do ouro, marfim, escravos e outras mercancias que ali se juntavam para o chamado «resgate» comercial, estava dentro das muralhas ou fora delas uma igreja. Quem havia de dizê-lo? As malhas que o comércio das coisas e das ideias tece!
Vem isto a propósito de me ter chegado, agora, via Facebook, uma fotografia que, com a devida vénia, copiei da página «Picadas de Tete», «postada» ali por uma senhora que foi residente naquela cidade, de seu nome Lina Maria Zagalo Neves que diz ter sido tirada pelo seu pai, por volta de 1961/62. A mesma foto, noutro ângulo, foi postada também por Vitor Pedro. Refiro isto para acrescentar que, daqui para a frente (dada a dificuldade na identificação do autor) todas as vezes que publicar uma foto relacionada com Tete não identificada, direi apenas que ela consta do álbum "PICADAS DE TETE".
Nessa fotografia está presente uma locomóvel a vapor (já fora de uso), equipamento com o qual me cruzei em 1952, apenas com 12 anos de idade, nos arrozais do Mondego, arredores de Coimbra, mais propriamente em Taveiro, Alfarelos, onde, pela primeira vez, vi uma máquina dessas a debulhar arroz. Tinha ido de comboio, de Viseu, «pouca-terra-pouca-terra-pouca-terra, huu...huu...», puxado por uma máquina a vapor, até à cidade dos estudantes, não para fazer um curso superior, nem incorporado nalguma tuna académica, mas como elemento de um «rancho» de trabalho rogado nas terras da Beira Alta, para o plantio do arroz. Em vez de debruçar-me sobre livros, debruçado estava sobre a terra lavrada e alagada, trabalho de Sol a Sol. Mulheres, homens e crianças em linha, lado a lado, todos metidos até aos joelhos naquelas «lagunas» (autênticas piscinas) ladeadas por «motas» (tapumes de terra mais elevados) curvados, com dois dedos apenas, em posição de recuo, introduzíamos o pé da planta (tipo cebolinho) naquela lama que parecia manteiga. Os meus dedos, ingénuos e sem malícia, só muito mais tarde, perdida a ingenuidade e absorvida a malícia, metidos em zona húmida e aveludada, tiveram sensação semelhante, não em ato de trabalho e sacrifício, mas em ato preliminar de gozo, prazer e vida. Não digo onde, nem é preciso. Toda a pessoa adulta, vivida, culta e desinibida percebe a analogia e se não percebe é porque não gozou os mistérios da vida, os seus prazeres e despazeres. Estórias que não são para aqui chamadas.
Por agora, metido no arrozal, direi que a dor de costas era o menos. Praga severa e incomodativa eram as sanguessugas que, dobradas sobre si próprias, extremidades unidas, depois de escolherem o sítio da refeição, ferravam a boca nas nossas pernas e toca de encher o bandulho. Quando sentíamos a picadela já elas estavam gordas como alheiras de Mirandela e arrancá-las da manjedoura só à força de unhas e de jeito. Às vezes ofereciam tal resistência que, bem ferradas, o sangue sugado esguichava pelo traseiro, tingia-nos as mãos, e elas ficavam convertidas em fitas elásticas esticadas, dispostas a darem luta até ao fim, pois pela vida lutavam. E a vida custa a todos. Até a essas «bichas» que eram usadas para sangrias, ainda no meu tempo de criança.
Olha o bicheiro" era a expressão usada pelos adultos ameaçando a criança traquina e desobediente. E ele passava com uma lata às costas, a correr as ruas da aldeia, com o velho e gasto pregão: "quem quer bichas!!!"
Experiências de vida. Vejam ao que me levou uma locomóvel a vapor! É que, deixando os arrozais, crescendo, tornando-me adulto e indo para Moçambique e de Moçambique retornado, na vida me vim a cruzar novamente com tais equipamentos nas terras do Alentejo, quando levava a cabo um trabalho universitário sobre a maquinaria agrícola e industrial do país. Deste país onde a civilização chegou tarde e, consequentemente, chegaram tarde as tecnologias industriais que, nos campos, do norte e do sul, substituíssem a enxada e/ou a charrua ancestrais.
Querem a prova? Eis uma foto tirada no «Monte dos Poços», arredores de Aljustrel, que pertencia a José António Martins Saturnino (autor da foto), um tio da minha esposa, Mafalda Lança, natural de Castro Verde. Tirada no ano de 1942, nela vemos exatamente uma locomóvel a vapor em laboração, cuja força motriz estava a ser aplicada a uma debulhadora de trigo.
Entusiasmado com o trabalho realizado sobre o material saído da Revolução Industrial e conhecedor de que a «máquina a vapor» teve utilizações várias no país, logo que deixei o Alentejo e cheguei a Castro Daire, segui a peugada de algumas que debitavam a sua força nas serrações e em lagares de azeite. Delas escrevi a história no meu livro «Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura», produto final do trabalho de «investigação aplicada» que levei a cabo durante a licença sabática que, para tal fim, me foi concedida pelo Ministério da Educação.
Uma dessas máquinas, cedida, a meu pedido, pelo proprietário da «Serração Moderna dos Casais», sita nos Casais de D. Inês, freguesia de Mões, António Luís de Almeida (hoje falecido) e filhos, foi restaurada pelo Executivo de Castro Daire e colocada no Jardim Público da vila com uma placa de latão onde se lê «HOMENAGEM AOS EMPRESÁRIOS» e mais informes históricos sobre a Sua origem e funções.
Ela lá permanece como património histórico concelhio. Hoje toda a gente enche a boca com a descoberta, divulgação e preservação do nosso património histórico, construído, natural, material e imaterial. Mas antes de tais conceitos salivarem a boca de quem tanto os usa, aproveitando-se de dinheiros comunitários atribuídos a PROGRAMAS POMPOSOS, ditos de DESENVOLVIMENTO LOCAL/REGIONAL, muito antes disso, dizia eu, por imperativo profissional, por gosto e exercício de cidadania (sem gastar um escudo do erário público) gastava as solas das botas a correr a serra, a descer ribeiros e rios, a inventariar os elementos que, ativos ou fora de uso, eram ou estavam prestes a tornarem-se peças da ARQUEOLOGIA INDUSTRIAL. Tudo foi posto em livro esgotado há muito. Ele é um dos mais consultados na Biblioteca Municipal e na Biblioteca do Agrupamento de Escolas de Castro Daire. Houvesse, em todos estes anos passados, mais sensibilidade para a HISTÓRIA e para a CULTURA por parte dos vereadores do respetivo PELOURO do Município, e esse livro, tal como outros de interesse concelhio, estaria reeditado há muito para proveito coletivo. Há falta, porém, de uma bitola séria de valores e de prioridades vai-se investindo o «graveto» público em fogueiras cujas chamas históricas, literárias e culturais duvidoso é que aqueçam o concelho e o façam dar um salto qualitativo em frente rumo a um futuro melhor, mais esclarecido e culto. Em poucas palavras: um futuro onde a bitola da submissão, do oportunismo e da mediocridade seja substituida pela bitola do MÉRITO.
É um registo que deixo para os vindouros. Eles, nesse tempo do porvir, libertos da espuma interesseira dos tempos atuais, ávidos do TER e não do SER, melhor ajuizarão da razão destas minhas palavras e preocupações.