De resto qual o escritor, historiador, arquiteto, escultor e poeta que deixou de revisitar as artes grega e romana desde o século XVI com o dito Renascimento e depois com o Neoclassicismo que verdadeiramente só terminou no princípio do século XX?
Formado em HISTÓRIA, não sou capaz de olhar para qualquer artefacto humano do passado, seja monumento arquitetónico cuja beleza e estilo o fizeram entrar nos Anais da Literatura e das Artes, seja o arado de pau radial celta, tosco e simples, com técnica incorporada bastante para o granjeio do pão, pendurado no alpendre do camponês serrano, seja uma enxada ferrugenta e gasta com sinais evidentes de ter cavado muitos campos e hortas, talhado muitos regos de água, seja o fole de ferreiro e a bigorna da tenda onde ela foi forjada, seja um lápis, uma ardósia, um aparo de aço nas mãos de uma criança a aprender a primeiras letras, ou nas mãos de um escritor de renome com mil obras publicadas. Uma pintura nas mais diversas técnicas e expressões. Tudo e todas as ferramentas de trabalho, de recreio ou cultura, sou incapaz, como dizia, de olhar para qualquer monumento desses, a exalarem trabalho, vontade, imaginação e criatividade humanas, sem os ver rodeados das pessoas que os conceberam, que os fabricaram e que os usufruíram.
No caso vertente dos prelos, pasmo a admirar não apenas a função para que foram construídos, mas também o seu aspeto físico, estrutura sólida, ornamentada com elementos de efeitos estéticos, diversos entre si, equilibrados, bem capazes de despertarem no homem comum, de tosca sensibilidade, o sentido do belo e de elevaram o seu rústico pensamento à compreensão do trinómio que entrelaça a «indústria, técnica e cultura».
Eles, os prelos, aí estão fora de moda, no estado que acima descrevi. Outras técnicas de impressão lhes sucederam e lhes deram a merecida reforma depois de tantos anos a imprimir e a divulgar ideias, saberes e artes. Tiveram o seu tempo de vida na longa, evolutiva e interminável jornada humana.
Todos nós podemos vê-los, admirá-los, contemplá-los, ter perante eles uma atitude de admiração, de respeito, de consideração, de comiseração, senão até de desprezo, remetendo-os, sem mais reparo, ao estatuto de «ferro velho». Muitos perguntarão para quê recuperá-los, restaurá-los, gastar dinheiro do erário público com essas velharias, se elas já nada têm de préstimo no presente e muito menos no futuro.
Pois é. Eles, não obstante o nobre serviço que prestaram à Humanidade, à sua evolução, à relação entre povos e gentes diferentes, que imprimiram histórias de conquistas, de formação de impérios e suas quedas, que imprimiram pronunciamentos de guerra e acordos de paz, são hoje o objeto dos nossos olhares, dos nossos gostos, das nossas diferentes considerações, apreciações e/ou depreciações. São o que são. Mas quem é que no nosso tempo, neste século XXI, neste tempo de lufa-lufa, tempo em que tudo se mede à escala de milhões, tempo em que as distâncias encurtaram por força da velocidade em que são percorridas, tempo das novas tecnologias em que, num instante «copy/paste», se transpõem milhares de páginas escritas sem necessidade de papel, de tinta e tinteiros, neste tempo, dizia eu, quem se dá ao cuidado de parar frente a um prelo, observá-lo, olhar em redor e ver a quantidade de «tipos» que abarrotam os caixotins? quem é capaz de pensar, um instante que seja, na paciência e na perícia dos tipógrafos, na sua vista apurada e mão firme em busca da letra adequada ao texto em composição? Hoje, com um computador na frente, desliza-se o cursor no monitor, escolhe-se umas das dezenas de "fontes" disponíveis e num segundo temos no texto a "letra" que queremos.
É isso. Mas voltemos ao tempo dos tipógrafos e aos "tipos" que manipulavam. Eis a peça: no topo, como remate cimeiro e último, o característico «florão» identitário de todas os prelos Albion, aquele arranjo vegetalista, em diálogo estético com o arranjo que reveste as «patas de leão na base, arranjo esse formado por dois capitéis de bases contrapostas, bem próximos do estilo coríntio. Ambos a lembrarem um pináculo das catedrais que se levantam por esse mundo afora. E a parte superior semelhante à boca de um castiçal donde sobressai uma chama minúscula burilada em aço, ali, no ponto cimeiro, onde mundo pula e avança, onde o sonho do criador, materializado artisticamente na cabeça de um parafuso de aço, se esvai e se projeta no etéreo espaço sem fim. Ali, naquela pequenina azeitona, naquela pequenina bolota, naquela polida amêndoa, naquela hirta chama de luzerna, simultaneamente se espelha, se saboreia, se eterniza e brilha a cuidada arte do técnico, a gigantesca sensibilidade do artista e do poeta.
À robustez, força e peso que ele colocou na base do prelo agarrado ao chão, naquelas patorras de um leão, o artista contrapôs a leveza e a fragilidade da chama de uma luzerna que fura o ar e penetra no espaço a iluminar o mundo. Aquela minúscula peça de aço, pelo tamanho que tem e função que desempenha, é bem o último verso de um soneto saído dos tornos e dos fornos da Fundição de Massarelos, em 1855.
Logo a seguir, bem visíveis, a rematarem as duas colunas laterais da sua estrutura, aqueles círculos concêntricos, de múltiplos significados simbólicos, são autênticos olhos de coruja, ave noturna que, desde a Antiguidade Clássica, simboliza a sabedoria. Desde a deusa grega Atena e a deusa romana Minerva, nomes posteriormente adotados por inúmeras tipografias e livrarias. E o que se espera de um prelo tipográfico senão a conceção e divulgação de conhecimentos e saberes por via da leitura de livros, revistas e jornais nele impressos? O saber deixou de estar fechado nos conventos, somente ao alcance dos copistas e bibliotecários. As letras, sacras e profanas, em vez de manuscritas, passariam a correr mundo impressas em «tipos» soltos de Gutenberg.
Na base quatro patas de leão, devidamente espaçadas, evidenciam a robustez e força do prelo, pronto a romper caminho e abrir clareiras na selva do analfabetismo.
Um prelo. Uma peça de ferro fundido. Um romance. Um poema. É isso. Esta minha particular forma de olhar o mundo, de ler os documentos históricos e ouvir os seus protagonistas, mestres e aprendizes, impôs-me a obrigação de prestar-lhes esta homenagem por escrito, aqui mesmo, no livro que se reporta ao seu historial de vida.
E foi com essa intenção que, espraiando os olhos por todo o equipamento, deixei de olhar aquela pequena chama de luzerna espetada no espaço sem fim e, numa postura estática, fixei os olhos no topo frontal do veio, ao centro, que suspende a platina do prelo. E foi nessa minha postura contemplativa, sem arredar os olhos daqueles círculos concêntricos (ver foto ao lado) que, num instante epifânio, eu vi esse topo de veio transformar-se num olho humano e, cruzados os olhares, numa pergunta «quem olha quem?», ele devolver-me um terno agradecimento pelo restauro, pelas cores e vida repostas, depois de tantos anos moribundo, cego, surdo e mudo.
Claro que o leitor inteligente, informado e culto, que acaba de ler este meu devaneio poético, sabe bem que se não deu qualquer epifania no sentido genuíno do termo. E certo também de que, levando eu muito a sério estas coisas da História, a decisão de colocar um olho naquele lugar frontal do prelo, mais não é do que um sinal evidente e vidente da HOMENAGEM que faço a todos os tipógrafos do mundo. Eles que, debruçados sobre os caixotins, frente a centenas de «tipos» de diferentes tamanhos, em caixa alta e em caixa baixa, filetes de diversos traços, zincogravuras, imprimiram a alegria e a dor, a prosa e a poesia, o canto e o choro, notícias e publicidade; eles que foram humilhados pela CENSURA imposta pelos mentores da moral e da ética, eles que lidaram com pessoas criativas, esbanjadoras de imaginação e criatividade, não enjeitariam, seguramente, o adereço decorativo que, em HOMENAGEM sua, o responsável pela orientação histórica e arqueológica do restauro, se deu ao cuidado de fazer e pespegar num sítio que todos os leitores deste livro possam ver e criticar. No meu entendimento é uma forma de manter vivos no futuro, ainda que somente em fotografias, esses OLHOS DE ÁGUIA, esses OLHOS DE CORUJA, vista apurada, mão firme de todos aqueles que tipógrafos foram e que em prelos grandes e pequenos trabalharam. E também daqueles cidadãos que, de grandes ou pequenas ideias, de rasteiro ou elevado pensamento, de curta ou larga visão, manejando hábil ou toscamente a pena, lhes forneceram os conteúdos de trabalho e deixaram a sua peugada no mundo. Isso no tempo em que somente se escrevia e lia à luz da vela ou a luz do Sol.
Definido o objetivo e escolhido o lugar onde seria posto o objeto desta minha HOMENAGEM simbólica, impunha-se saber a que estilo ou escola pictórica devia obedecer o objeto pintado. Não foi difícil a escolha. O prelo vive da «impressão» e «impressão» lembra «impressionismo», a pintura surgida no século XIX, o mesmo século que viu sair das fábricas de fundição prelos sem conta, em todo o mundo. Era o estilo que vinha mesmo a calhar. E ciente de que a arte impressionista deixou para trás o rigor do desenho, caracterizando-se por linhas e contornos pouco nítidos, eu, sem receio de vir a ser confundido com Monet, Van Gogh e outros artistas da mesma escola, por "olheiros" que distinguem muito bem Miguel Ângelo de Picasso, e sabem que a Capela Sistina não está nos grafitis que alegram e dão vida às paredes mortas das nossas vilas e cidades, agarrei-me aos pincéis, à paleta e às bisnagas de tinta acrílica compradas no Bazar Chinês da esquina mais próxima, e toca a produzir o ornamento desejado. Dado como pronto, graças às novas tecnologias de escrita e de impressão, hoje existentes, fácil me foi inseri-lo, numa fotografia do prelo, tal qual se vê.
Era uma HOMENAGEM que se impunha. A minha sensibilidade e o meu entendimento da relação que faço entre passado, presente e futuro, a isso me obrigavam. E que melhor meio podia eu usar, nesta amplitude semântica e temporal, senão deixar no rosto do prelo restaurado duas marcas pictóricas distintas: a primeira, (destoante, embora com o seu estilo de marca) correspondente ao seu tempo de fabrico, no século XIX; a segunda, feita em computador, correspondente, ao seu tempo de restauro, no século XXI.
Restaurado, colocado à disposição do público, creio ser legítimo não rematar este trabalho com uma foto dos volumes de jornais encadernados e empilhados na minha biblioteca que foram impressos neste prelo, entre 1898 e 1960, aproximadamente. Este livro, com o título «Castro Daire, Imprensa Local, 1890-1960», tal como outros que publiquei anteriormente, evidenciam o pouco que sei do muito que li nas suas páginas. As sinalefas amarelas que sobressaem do seu corpo servem de referência aos assuntos lidos e estudados, nomeadamente as soluções políticas nacionais e locais que opunham regeneradores, progressistas, republicanos e socialistas, em tempos de Monarquia e de República. A polémica levantada em torno da «Lei da Separação da Igreja do Estado», com os seus arautos «pró e contra» em «O Castrense», «A União» e o «Echos do Paiva».
Jornais, grande parte deles, saídos do prelo agora restaurado. E nisto assenta o incalculável valor histórico da peça, cuja peugada persigo desde 1984. E reporto-me somente ao valor histórico. Não me refiro sequer aos preços impensáveis que atingem peças similares nos leilões nas casas da especialidade. Veja-se, por exemplo, aquele que foi fabricado em 1891, muito depois do nosso, que é de 1855, que foi vendido pela leiloeira Christies, em Nova York, em Dezembro de 2013, pela bonita soma de 233.000 dólares.
E mais não digo. O património histórico-cultural não se avalia em dólares ou em euros. A homenagem a todos esses nossos antepassados e o respeito por esse património prossegue noutro espaço público, que não somente nestas páginas escritas.
Nota: cf. meu livro «Castro Daire, Imprensa Local, 1890-1960», ed. pela Câmara Municipal em 2015.