Trilhos Serranos

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sábado, 06 junho 2015 14:50

TIPOGRAFIA - PRELO RESTAURADO

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POSFÁCIO-OLHAR E VER

Dos muitos prelos cujas fotografias estão disponíveis na Internet, do prelo mais simples ao prelo mais sofisticado, do prelo restaurado e embelezado com cores douradas, ao prelo moribundo e enferrujado,  do prelo que atravessou a linha do tempo intacto, tal como foi concebido pelo seu criador, presumo eu,  ao prelo que se apresenta amputado, qual soldado regressado das fileiras da guerra sem alguns membros, em todos, independentemente do seu estado e aparência, eu vi centenas de obras de arte, nas vertentes funcionais, ornamentais e decorativas. Eles me transportaram não apenas ao tempo de Gutenberg, ao tempo dos enciclopedistas, do iluminismo, ao tempo da Revolução Industrial, ao império do ferro e da metalurgia, mas também à Antiguidade Clássica através dos elementos artísticos, literários e míticos que incorporam.

1-prelo.capa frenteDe resto qual o escritor, historiador, arquiteto, escultor e poeta que deixou de revisitar as artes grega e romana desde o século XVI com o dito Renascimento e depois com o Neoclassicismo que verdadeiramente só terminou no princípio do século XX?

Formado em HISTÓRIA, não sou capaz de olhar para qualquer artefacto humano do passado, seja monumento arquitetónico cuja beleza e estilo o fizeram entrar nos Anais da Literatura e das Artes, seja o arado de pau radial celta, tosco e simples, com técnica incorporada bastante para o granjeio do pão, pendurado no alpendre do camponês serrano, seja uma enxada ferrugenta e gasta com sinais evidentes de ter cavado muitos campos e hortas, talhado muitos regos de água,  seja o fole de ferreiro e a bigorna da tenda onde ela foi forjada, seja um lápis, uma ardósia, um aparo de aço nas mãos de uma criança a aprender a primeiras letras, ou nas mãos de um escritor de renome com mil obras publicadas. Uma pintura nas mais diversas técnicas e expressões.  Tudo e todas as  ferramentas de trabalho, de  recreio ou cultura, sou incapaz, como dizia, de olhar para qualquer monumento desses, a exalarem trabalho, vontade, imaginação e criatividade humanas, sem os ver rodeados das pessoas que os conceberam, que os fabricaram e que os usufruíram.
No caso vertente dos prelos, pasmo a admirar não apenas a função para que foram construídos, mas também o seu aspeto físico, estrutura sólida, ornamentada com elementos de efeitos estéticos, diversos entre si, equilibrados, bem capazes de despertarem no homem comum, de tosca sensibilidade, o sentido do belo e de elevaram o seu rústico pensamento à compreensão do trinómio que entrelaça a «indústria, técnica e cultura».

Eles, os prelos, aí estão fora de moda, no estado que acima descrevi. Outras técnicas de impressão lhes sucederam e lhes deram a merecida reforma depois de tantos anos a imprimir e a divulgar ideias, saberes e artes. Tiveram o seu tempo de vida na longa, evolutiva e interminável jornada humana.
Todos nós podemos vê-los, admirá-los, contemplá-los, ter perante eles uma atitude de admiração, de respeito, de consideração, de comiseração, senão até de desprezo, remetendo-os, sem mais reparo, ao estatuto de «ferro velho».  Muitos perguntarão para quê recuperá-los, restaurá-los, gastar dinheiro do erário público com essas velharias, se elas já nada têm de préstimo no presente e muito menos no futuro.
Pois é. Eles, não obstante o nobre serviço que prestaram à Humanidade, à sua evolução, à relação entre povos e gentes diferentes, que imprimiram histórias de conquistas, de formação de impérios e suas quedas, que imprimiram  pronunciamentos de guerra e acordos de paz, são hoje o objeto dos nossos olhares, dos nossos gostos, das nossas diferentes considerações, apreciações e/ou depreciações. São o que são. Mas quem é que no nosso tempo, neste século XXI, neste tempo de lufa-lufa, tempo em que tudo se mede à escala de milhões, tempo em que as distâncias encurtaram por força da velocidade em que são percorridas, tempo das novas tecnologias em que, num instante «copy/paste», se  transpõem milhares de páginas escritas sem necessidade de papel, de tinta e tinteiros, neste tempo, dizia eu, quem se dá ao cuidado de parar frente a um prelo, observá-lo, olhar em redor e ver a quantidade de «tipos» que abarrotam os caixotins? quem é capaz de pensar, um instante que seja, na paciência e na perícia dos tipógrafos, na sua vista apurada e mão firme em busca da letra adequada ao texto em composição?  Hoje, com um computador na frente, desliza-se o cursor no monitor, escolhe-se umas das dezenas de "fontes" disponíveis e num segundo temos no texto a "letra" que queremos.

2- prlo-FLORÃO-PRELO

É isso. Mas  voltemos ao tempo dos tipógrafos e aos "tipos" que manipulavam. Eis a peça: no topo, como remate cimeiro e último, o característico «florão» identitário de todas os prelos Albion, aquele arranjo vegetalista, em diálogo estético com o arranjo que reveste as «patas de leão na base, arranjo  esse formado por dois capitéis de bases contrapostas, bem próximos do estilo coríntio. Ambos a lembrarem um pináculo das catedrais que se levantam por esse mundo afora. E a parte superior semelhante à boca de um castiçal donde sobressai uma chama minúscula burilada em aço, ali, no ponto cimeiro, onde mundo pula e avança, onde o sonho do criador, materializado artisticamente na cabeça de um parafuso de aço, se esvai e se projeta no etéreo espaço sem fim. Ali, naquela pequenina azeitona, naquela pequenina bolota, naquela polida amêndoa, naquela hirta chama de luzerna, simultaneamente se espelha, se saboreia, se eterniza e brilha a cuidada arte do técnico, a gigantesca sensibilidade do artista e do poeta.
       À robustez,  força e peso que ele  colocou na base do prelo agarrado ao chão, naquelas patorras de um leão, o artista contrapôs a leveza e a fragilidade da chama de uma luzerna que fura o ar e  penetra no espaço a iluminar o mundo. Aquela minúscula peça de aço, pelo tamanho que tem e função que desempenha,  é bem o último verso de um soneto saído dos tornos e dos fornos da Fundição de Massarelos, em 1855.

Logo a seguir, bem visíveis, a rematarem as duas colunas laterais da sua estrutura, aqueles círculos concêntricos,  de múltiplos significados simbólicos, são autênticos olhos de coruja, ave noturna que, desde a Antiguidade Clássica, simboliza a sabedoria. Desde a deusa grega Atena e a deusa romana Minerva, nomes posteriormente adotados por inúmeras tipografias e livrarias. E o que se espera de um prelo tipográfico senão a conceção e divulgação de conhecimentos e saberes por via da leitura de livros, revistas e jornais nele impressos? O saber deixou de estar fechado nos conventos, somente ao alcance dos copistas e bibliotecários. As letras, sacras e profanas, em vez de manuscritas, passariam a correr mundo impressas em «tipos» soltos de Gutenberg.
Na base quatro patas de leão, devidamente espaçadas, evidenciam a robustez e força do prelo, pronto a romper caminho e abrir clareiras na selva do analfabetismo.

Um prelo. Uma peça de ferro fundido. Um romance. Um poema. É isso. Esta minha particular forma de olhar o mundo, de ler os documentos históricos e ouvir os seus protagonistas, mestres e aprendizes,  impôs-me a obrigação de prestar-lhes esta homenagem por escrito, aqui mesmo, no livro que se reporta ao seu historial de vida.
3 - PRELO olhoE foi com essa intenção que, espraiando os olhos por todo o equipamento, deixei de olhar aquela pequena chama de luzerna espetada no espaço sem fim e, numa postura estática, fixei os olhos no topo frontal do veio, ao centro, que suspende a platina do prelo.  E foi nessa minha postura contemplativa, sem arredar os olhos daqueles círculos concêntricos (ver foto ao lado) que, num instante epifânio, eu vi esse topo de veio transformar-se num olho humano e, cruzados os olhares, numa pergunta «quem olha quem?», ele devolver-me  um terno agradecimento pelo restauro, pelas cores e vida repostas, depois de tantos anos moribundo, cego, surdo e mudo.

Claro que o leitor inteligente, informado e culto, que acaba de ler este meu devaneio poético, sabe bem que se não deu qualquer epifania no sentido genuíno do termo. E certo também de que, levando eu muito a sério estas coisas da História, a decisão de colocar um olho naquele lugar frontal do prelo, mais não é do que um sinal evidente e vidente da HOMENAGEM que faço a todos os tipógrafos do mundo. Eles que, debruçados sobre os caixotins, frente a centenas de «tipos» de diferentes tamanhos, em caixa alta e em caixa baixa, filetes de diversos traços, zincogravuras, imprimiram a alegria e a dor, a prosa e a poesia, o canto e o choro, notícias e publicidade; eles que foram humilhados pela CENSURA imposta pelos mentores da moral e da ética, eles que lidaram com pessoas criativas, esbanjadoras de imaginação e criatividade, não enjeitariam, seguramente, o adereço decorativo que, em HOMENAGEM  sua, o responsável pela orientação histórica e arqueológica do restauro, se deu ao cuidado de fazer e pespegar num sítio que todos os leitores deste livro possam ver e criticar. No meu entendimento é uma forma de manter vivos no futuro, ainda que somente em fotografias, esses OLHOS DE ÁGUIA, esses OLHOS DE CORUJA, vista apurada, mão firme de todos aqueles que tipógrafos foram e que em prelos grandes e pequenos trabalharam. E também daqueles cidadãos que, de grandes ou pequenas ideias, de rasteiro ou elevado pensamento, de curta ou larga visão, manejando hábil ou toscamente a pena,  lhes forneceram os conteúdos de trabalho e deixaram a sua peugada no mundo. Isso no tempo em que somente se escrevia e lia à luz da vela ou a luz do Sol.

Definido o objetivo e escolhido o lugar onde seria posto o objeto desta minha  HOMENAGEM  simbólica, impunha-se saber a que estilo ou escola pictórica devia obedecer o objeto pintado. Não foi difícil a escolha. O prelo vive da «impressão» e  «impressão» lembra «impressionismo», a pintura surgida no  século XIX, o mesmo século que viu sair das fábricas de fundição prelos sem conta, em todo o mundo.  Era o estilo que  vinha mesmo a calhar. E ciente de que a arte impressionista deixou para trás o rigor do desenho, caracterizando-se por linhas e contornos pouco nítidos, eu, sem receio de vir a ser confundido com Monet, Van Gogh e outros artistas da mesma escola, por "olheiros" que distinguem muito bem Miguel Ângelo de Picasso, e sabem que a Capela Sistina não está nos grafitis que alegram e dão vida às paredes mortas das nossas vilas e cidades, agarrei-me aos pincéis, à paleta e às bisnagas de tinta acrílica compradas no Bazar Chinês da esquina mais próxima, e toca a produzir o ornamento desejado. Dado como pronto, graças às novas tecnologias de escrita e de impressão, hoje existentes, fácil me foi inseri-lo, numa fotografia do prelo, tal qual se vê. 

prelo.Gutemberg

Era uma HOMENAGEM que se impunha. A minha sensibilidade e o meu entendimento da relação que  faço entre passado, presente e futuro, a isso me obrigavam. E que melhor meio podia eu usar, nesta amplitude semântica e temporal,  senão deixar no rosto do prelo restaurado duas marcas pictóricas distintas: a primeira, (destoante, embora com o seu estilo de marca) correspondente ao seu tempo de fabrico, no século XIX; a segunda, feita em computador, correspondente,  ao seu tempo de restauro, no século XXI.

 

Restaurado, colocado à disposição do público, creio ser legítimo não rematar este trabalho com uma foto dos volumes de jornais encadernados e empilhados na minha biblioteca que foram impressos neste prelo, entre 1898 e 1960, aproximadamente. Este livro, com o título «Castro Daire, Imprensa Local, 1890-1960», tal como outros que publiquei anteriormente, evidenciam o pouco que sei do muito que li nas suas páginas.  As sinalefas amarelas que sobressaem do seu corpo servem de referência aos assuntos lidos e estudados, nomeadamente  as soluções políticas nacionais e locais que opunham regeneradores, progressistas, republicanos e socialistas, em tempos de Monarquia e de República. A polémica levantada em torno da «Lei da Separação da Igreja do Estado», com os seus arautos «pró e contra» em «O Castrense», «A União» e o «Echos do Paiva».

Jornais, grande parte deles, saídos do prelo agora restaurado. E nisto assenta o incalculável valor histórico da peça, cuja peugada persigo desde 1984. E reporto-me somente ao valor histórico. Não me refiro sequer aos preços impensáveis que atingem peças similares nos leilões nas casas da especialidade. Veja-se, por exemplo, aquele que foi fabricado em 1891, muito depois do nosso, que é de 1855, que foi vendido pela leiloeira Christies, em Nova York, em Dezembro de 2013, pela bonita soma de 233.000 dólares.
E mais não digo. O património histórico-cultural não se avalia em dólares ou em euros. A homenagem a todos esses nossos antepassados e o respeito por esse património prossegue noutro espaço público, que não somente nestas páginas escritas.

Nota: cf. meu livro «Castro Daire, Imprensa Local, 1890-1960», ed. pela Câmara Municipal em 2015.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.