TETE - NÓ GÓRDIO (5)
Uma expedição daquela envergadura não se fazia sem mantimentos, sem um número significativo de carregadores, muitos deles escravos fiéis e obedientes como os cães são aos seus donos, ao contrário de outros que se a esgueiravam na primeira oportunidade, abandonando cargas e encargos. Uma expedição dessas, dizia eu, não se fazia sem guias experimentados, conhecedores dos dialetos e costumes, conhecimentos advindos, sabe-se lá como, mas, seguramente, relacionados com o livro do comércio de ouro, marfim, escravos e tudo o mais que, no comércio, relaciona terras e gentes e interesses comuns. E também soldados como já vimos acima.
Metido nessas dificuldades sociais e pessoais, o explorador encontrou a solução numa mulata residente em Tete, de seu nome D. Francisca Josefa de Moura e Menezes, provavelmente filha de um homem indiano e de uma mulher negra. Era uma senhora de muitos teres e haveres, inclusive escravas a minerar ouro nas suas terras de Maxinga, condição social e económica que não a dispensava de ser acossada por credores, como sempre acontece com as pessoas de grandes empreendimentos e negócios.
Tinha essa senhora uma jovem sobrinha, de seu nome Leonarda Octaviano dos Reis Moreira, e a viuvez do senhor «de La-cerda», Capitão-Mor dos Rios de Sena, explorador das Áfricas, depois de o ter sido nos Brasis, veio mesmo a calhar. Acossada pelos credores, ela viu no viúvo daquela categoria o homem indicado para marido da sobrinha que tratava como filha. E ele, viúvo, viu na D. Francisca Josefa a pessoa indicada para tratar da sua filhinha órfã e o apoio logístico para a realização da expedição, nomeadamente o fornecimento de escravos para carregadores e o mais que fosse preciso. Vistas assim as coisas, negócio feito e não se fala mais nisso, à boa maneira portuguesa. Só dela integraram a Expedição sessenta escravos e quarenta escravas. Estas, para além de suportarem os «carregamentos» à cabeça de pé, tinham, seguramente, de suportar o peso dos homens deitadas. E não estranhem os amigos que me acompanham nesta «picada» eu dizê-lo com toda a frieza. Era assim mesmo. Integrar escravas na expedição tinha esses dois objetivos: levar as trochas e evitar que os escravos desertassem por falta de fêmea. Adiante...
O casamento do explorador com a sobrinha da Dona Francisca fez-se de forma secreta de modo a que as autoridades e o público só tivessem conhecimento dele depois do regresso da expedição. E assim foi, só que, o explorador, casado secretamente em segundas núpcias, regressou morto e a jovem casada, de um dia para o outro, jovem se viu viúva, pronta para outro casamento negociado, pois assim o impunham as leis e os interesses do tempo entre governantes e governados. Mas isso são coisas do porvir.
Tudo a postos, comedorias bastantes, escravos e carregadores disponíveis, soldados armados, ala que se faz tarde. Angola era o destino e pelo meio ficava o reino de Muata Cazembe. Até lá, era longa a caminhada.
Se chegassem ao destino, feitos os mapas, nomeados os rios, as montanhas e os reinos, retornar-se-ia a Tete e missão cumprida. O «nó-górdio» desse conhecimento tinha sido desenlaçado pelas mãos, pela espada e pelos conhecimentos de matemática de um senhor «de La-Cerda» ao serviço do Rei de Portugal.
TETE - NÓ GÓRDIO (6)
Os amigos estão a ler-me, ou estão a ver um filme de Indiana Jones? Uma fila de escravos e escravas, de carga levada à cabeça e às costas, alguns deles, como vimos acima cedidos ao pela D. Francisca Josefa. Alguns seriam naturalmente fieis, seguidores dos seus senhores, obedientes aos mandos dos seus amos, tal como cães obedientes e agradecidos ao dono pelas refeições que deles recebem. Mas outros, correndo o risco de serem mortos, não deixariam de aproveitar a primeira esquina de qualquer volumoso imbondeiro e «ó pernas para que vos quero», ou, sem ninguém dar por isso, subirem lestamente o tronco de uma acácia e, como macacos, buscarem refúgio na sua copa florida, por norma morada de cigarras a cantarolarem, dia e noite, aquela cega-rega ensurdecedora que só em territórios tropicais se ouve. Só quem esteve em África tem essa experiência musical no ouvido. Só quem esteve metido nas matas africanas e teve de abrir caminho à catanada, entende o que digo. Só quem sentiu a comichão dada pelo feijão macaco, só quem sentiu os aromas misteriosos penetrarem-lhe narinas dentro, só quem sentiu a garganta irritada com aquele pó fininho vermelho das «picadas», pó mais leve que a farinha triga peneirada para fazer pastéis de Belém, tudo em missão de serviço ou em lazer, mantém vivas sensações que só a morte levará aos que por ali andaram e de lá saíram com vida.
E que levavam essas trochas enroladas nas cabeças das escravas ou nas costas dos escravos? levavam o material científico requerido pelos objetivos da expedição, levavam alimentos e peças para «ofertas» aos reis dos territórios que teriam de atravessar e outras para comércio com os naturais desses povos. Comecemos pelo científico.
O inventário feito por Pedro Nolasco Vieira de Araújo, em 8 de Janeiro de 1800, após a malograda expedição, remetido ao Governador-Geral de Moçambique, por Jerónimo Pereira, que substitui o explorador no cargo de Governador de Tete, identifica as peças que foram levadas e as que se perderam, a saber:
1 Teodolito, com as suas três peças, tudo em latão; 1 óculo grande; 1 óculo pequeno; 1 caixinha com um sextante; 1 agulha de marear; 1 caixinha da agulha de marear; 1 caixinha com pedra de Sevar; dita com estojo; 1 espelho pequeno pregado em tábua; 1 telescópio e uma tampa de óculo; 4 ferrinhos com cabos de pau; 10 parafusos de latão; 1 livro denominado Altas Celestez; 1 relógio grande de algibeira; dois vidos para o mesmo».
E Pedro Nolasco anota ainda nesse relatório as peças que se perderam na «Guerra do Mucongure» da seguinte maneira:
«Equipamentos da Faculdade de Matemática que levou o dito Governador para o interior de África, de que tomei conta para os fazer conduzir: 1 esfera; 1 caixote com óculo grande de observar; os pés do teodolito, que se perderam, na «guerra do Mucongure».
Mas uma expedição ao interior de África não se fazia apenas com instrumentos científicos. Deles falarei no próximo post.
TETE - NÓ GÓRDIO (7)
Volto a perguntar. Os amigos estão a ler-me ou estão a ver um filme de Indiana Jones? Olhem aquela fila de escravos e escravas. Olhem aqueles soldados de armas prontas a mostrarem o seu poder de fogo contra as azagaias. A bala contra a flecha. Olhem o explorador a assentar o teodolito a tomar apontamentos. Olhem-no, circunspecto, de telescópio virado ao céu a registar o mapa celeste. Trochas à cabeça e às costas prenhes de cetim, chitas, linhas, saias de gagaráz, peças de atalá, agrofados, peças de lenços patavarez, toucas tecidas de missanga, , xerins, espelhos pequenos de papel dourado, espelhos de meio palmo. Tremós com molduras douradas, sombrinhas de Damasco, batuas de arame de lavar, copos de prata pequenos, campainhas de metal branco. E ouro, marfim, comedorias, coral falso, chupa-sangue, (sanguessugas), pedras brancas de leite, pedras azuis, bacias de arame, etc. etc.
E o Feitor, responsável pelas contas que devia prestar do material fornecido à conta da Real Fazenda, especifica o destino de um tremó, assim:
«1 tremó que vendy a Fazenda Real por 300 cruzeiros com a condição de ser paga a dita quantia ao Espólio se o Cazembe para quem foi a não recompensasse».
O Cazembe era o Rei do território onde o explorador chegou. E a este respeito os historiadores têm um «nó górdio» a desenlaçar. Para uns o explorador chegou à fala com o senhor do país que o recebeu cordialmente, pois ele, tal como os portugueses, estava interessado na abertura daquela rota conercial. Para outros não chegaram à fala. Concordantes são em dizer que ele morreu ali consumido por febres e que deu ordens ao padre João Pinto para prosseguir a expedição, mas este, em vez disso, resolveu regressar a Tete.
E é na sequência desse regresso que, o agora Governador de Tete, Jerónimo Pereira, Coronel de Milícias no início da expedição, remete a seguinte carta ao Governador-Geral de Moçambique, em cuja redação se vislumbra o despeito e as desinteligências havidas entre estes dois portugueses sobre esse acontecimento histórico. Vou respeitar a grafia da época, já que no momento em que escrevo (maio de 2015) não falta por aí quem se oponha ao «Novo Acordo Ortográfico» e berre em defesa o nosso património linguístico, sendo que esse PARIMÓNIO é o que eles aprenderam na ESCOLA PRIMÁRIA.
«Ilmº e Emº Sr-
Conciderando eu que V.Exª queria ter noticia das fazendas particulares que o Governador Francisco Jozé de La-Cerda e Almeida tivesse levado consigo a bem do seu negocio, como tambem da sua comutassão e outro sim dos instromentos de Sua Magestade que se salvarão e outros se perderão pela sua reversão, juntamente o Espólio do mesmo Governador, ordenei a Pedro Nolasco Vieira de Araujo como procurador do mesmo falecido, me prestasse a clareza de tudo por huma folha inteligivel, em que constase o referido; a qual incluo neste para V. Exª vir ao seu pleno conhecimento.
DEus Guarde a V. Exª Tete, 9 de Janeiro de 1800
Hyeronimo Perª, Gºr.»
Os amigos ficaram cientes? E assim se ia construindo o império e era assim que se escrevia.