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domingo, 24 maio 2015 09:36

TETE . NÓ GÓRDIO (1-4)

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TETE - NÓ GÓRDIO (1)

Prometi voltar a esta página para dar continuação à matéria histórica relacionada com Tete, matéria tratada. em 1950,  por Manuel Simões Alberto, na revista «Moçambique, Documentário Trimestral, 1950, nº 63, (pp 89 a 100), cujo autor segui de perto. Disse que iria basear-me nos mesmos factos e nas mesmas personagens, mas agora, segundo o meu estilo de escrita e conhecimentos advindos de outras fontes e saberes. E que aquilo que eu escreveria teria por título «O Nó Górdio», por tal expressão ser muito conhecida pelos membros e leitores da página «Picadas de Tete"

Convém, pois, começar pela razão dessa minha opção. Porquê intitular «Nó Górdio» ao conjunto de «registos» que preparei para aqui deixar? Respondo; não só pela razão apontada, mas também por mais algumas que passo a explicar. 

Para além dos membros que marcam presença nas «Picadas de Tete», a expressão «Nó Górdio» é conhecida por toda e qualquer pessoa que tenha deixado a enxada do campo, a rabiça do arado, a aguilhada de lavrador e, em consequência, tenha passado pelos bancos do liceu. Nos livros liceais aprendeu a saber que Alexandre Magno foi rei da Macedónia. Aprendeu que numa das guerras por ele travadas e comandadas e se teve a ver com a desligação do «nó górdio», com vista à conquista do império persa. E, paradoxalmente, ali aprendeu também que tal «NÓ» se liga a um «carro de bois», coisa que todos os portugueses, pastores e lavradores, enquanto foram só isso, enquanto não tiveram acesso aos estudos, jamais imaginariam que a cabeçalha de um carro de bois esteve ligada, por lenda, à queda de um império. Quando eu estudei isso, pensei logo no «tamoeiro», aquela peça de cabedal que prende a cabeçalha do carro ao jugo das cavas, peça através da qual se processa a tração do «automóvel» puxado a «sangue».

Pois foi assim, segundo reza a lenda. Sendo esse «nó» impossível de desatar, Alexandre Magno não esteve com salamaleques, nem a gastou muito tempo, nem fósforo cerebral a estudar o modo de desatá-lo. Ripou da espada e... záz!, cortou o nagalho, desfez o «nó górdio» e a Pérsia ficou ao seu alcance. 

Ora há quem veja nesta atitude de Alexandre Magno, o ato inteligente de resolver um problema da maneira mais fácil. E há quem veja  nesse mesmo ato uma trapaça de todo o tamanho e, por conseguinte, falta de «jogo limpo».

Esclarecido que fica isto, devo acrescentar que não é pretensão minha fazer «jogo sujo» ao escolher este «rótulo» para a «embalagem» que aqui vou deixar. Esse «rótulo» só tem de comum, com estes meus «registos», o facto de se relacionar com a resolução de uma dificuldade e, no distrito de Tete, ter sido usada essa expressão, durante a Guerra Colonial. E veremos que dificuldades e «nós górdios» não faltaram nas conquistas de Alexandre Magno, como não faltaram nas conquistas e descobertas dos Portugueses e de outros conquistadores e exploradores por esse mundo fora, a quem a ciência muito deve.  E, às vezes, nem sempre a fazer «jogo limpo». 

Mas «jogo limpo» julgo fazer quando digo a todos aqueles que me «cantam o choradinho da queda do império português» que deviam primeiro «cantar-me o hino da sua formação», isto é, ao falarem da Descolonização deviam primeiro falar da Colonização. Isto é «jogo limpo».

TETE - NÓ GÓRDIO (2)

O conteúdo do presente registo não é o que estava na calha. Mas os comentários feitos ao «post» anterior, nomeadamente aquele que assinou o amigo, António Guerra, cito:

«Bem visto e explicado, hoje vejo o mundo assim, mas com 20 anos quando me enviaram para Moçambique vindo da província sem qualquer conhecimento, pensava que estava a defender uma boa causa, o que não verdade»

Pois, lido este e os restantes comentários, tive de alterar o plano já delineado e, passe-se a expressão, botar mão na matéria que estava reservada para mais tarde. Fiz o que era meu costume fazer nas aulas quando, com a lição muito bem planificada, um aluno levantava a mão perguntava algo de interessante, mas fora do plano. E então de duas, uma, ou ele ficava sem resposta, ou eu mudava de estratégia e conduzia a aula no sentido que a pergunta feita sugeriu. De resto, creio que, qualquer militar encarregado de uma determinada tarefa, muito bem planificada nos gabinetes, teria de alterar tudo face a uma emboscada inesperada. Os «nós górdios», enquanto dificuldades, encontram-se aos pontapés em toda a caminha humana, quer lhe chamemos isso ou outra coisa.

 
Face, pois, ao comentário acima referido, que tresanda a verdade e sinceridade, eu jamais deixaria em branco um testemunho desses nestes meus registos. Da minha aldeia morreram três ou quatro, dos tais que deixaram a rabiça do arado, a aguilhada do lavrador e foram parar à matas africanas, em nome de Portugal e do Império. E todos aqueles que se viram envolvidos nessa Guerra Colonial, ignorantes dos liames da História, bem podem orgulhar-se da farda que vestiram e dos combates que travaram. Faziam-no em nome de valores e convencidos que estavam a defender o solo pátrio. Gente simples e honesta chamada às fileiras, cumpria o seu dever. Mas para os meus amigos, com assento nesta página, a muitos anos de distância, melhor avaliarem a vossa postura, a vossa dignidade, o vosso patriotismo, o vosso saber ou a vossa ignorância, o respeito que todos nós por vós temos (mesmo aqueles que persistem em ignorar HISTÓRIA, é que trago a capítulo, por antecipação, a matéria que só viria, cronologicamente, mais tarde. Destina-se a estabelecer uma analogia, entre os convictos e honestos combatentes que vocês foram na «descolonização» e os soldados que a «colonização» fizeram. Comparem e orgulhem-se das vossas pessoas, das vossas fardas e das vossas atitudes. E, depois disso, digam-me cá, honestamente e sem «burrice»: o que tinham vocês a ver com as TROPAS dos tempos idos?. Socorro-me das palavras do General Justino Teixeira Botelho, referindo-se às nossas tropas coloniais no século XVIII. Leiam bem e matutem melhor:

«As tropas em Moçambique eram constituídas na sua maioria por degredados da metrópole, do Brasil e da Índia (....) o regimento é composto de homens perversos e que não perdem os maus costumes que trazem (...) Todos os anos, à chegada das naus da metrópole a vila de Moçambique via o seu cais pejado por uma leva de degredados, às vezes em número superior a cem, maltrapilhos, rancorosos, insubordinados; uns profissionais do crime, outros, homens a quem a fatalidade turvara o entendimento e lançara na senda da desgraça. Havia de tudo naquela vaga humana que o mar arremessava à praia: vadios conhecidos das alfurjas de Lisboa, salteadores, perigosos, ladrões, assassinos, soldados e marujos incorrigíveis e até infelizes de boa índole que a miséria pervertera (...) Esses homens, recrutados entre gente desmoralizada e roída de vícios, não podiam dar senão péssimos soldados, qualquer que seja o especto sob o qual os consideremos (...) homens tais, a quem o laço de uma forte disciplina não unia e, demais, gastos pelo vício e pelos rigores do clima africano, não suportavam as fadigas de uma campanha. Às primeiras marchas as febres prostravam-nos e inutilizavam-nos para qualquer esforço.


Foi o reconhecimento desta inferioridade que levou os governadores de Moçambique a pedirem que a guarnição da Capitania fosse reforçada com sipais da Índia. O indiano, alegavam eles, é mais resistente do que o europeu e suporta melhor do que ele as fadigas de uma campanha no sertão, embora prolongada" (General José Justino Teixeira Botelho, «História Militar e Política dos Portugueses em Moçambique», 1934, pp. 445-448) 
(continua).

TETE - NÓ GÓRDIO (3)

Retomando o fio à meada, isto. é, retomando a «picada» da qual me desviei  por ter de falar na qualidade do nosso exército «colonial», do século XVIII (ao fim e ao cabo, interromper o passo com esta  espécie de minas que sempre se deparam a quem estuda o passado)  aquele que construiu os alicerces do império (matutaram bem na sua constituição? Gente fixe era aquela!) tendo, embora, presente que o nosso objetivo é RECONTAR  a viagem que o astrónomo e matemático FRANCISCO JOSÉ DE LA-CERDA E ALMEIDA, fez de TETE ao reino de Muata Cazembe, com vista a ligar aquela parte oriental da África à parte ocidental, apesar da viagem ter o caracter CIENTÍFICO, dizia eu,  não dispensou a  colaboração de militares, seguramente soldados do quilate que o General Teixeira Botelho nos mostrou e cujo retrato eu vos deixei no post anterior, visando, com isso, ajudar a desatar o «nó cego» (ou será «nó górdio»?) que enleia os conhecimentos e sentimentos de muita boa gente, direi melhor, muita gente boa que se recusa a reconhecer as evidências, que se recusa a ver o desenrolar dos acontecimentos históricos e o caracter dos protagonistas dos factos ocorridos no passado remoto ou no passado próximo.

Vejamos, pois, mesmo antes de conhecermos os pormenores da expedição e o seu resultado, a carta que, após a malograda viagem, da qual falarei no próximo post, o Governador de Tete, seu sucessor no cargo, mandou ao Governador-Geral de Moçambique, a propósito dos gastos com as tropas que acompanharam o explorador.. Atualizei a ortografia e coloquei as abreviaturas por extenso, para melhor se compreender:  

«Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,

Dou parte a Vª Exª que, recolhendo-se a tropa do Interior da África e da Corte do Rei Cazembe, a 18 do mês de outubro próximo passado, me requereu lhe mandasse satisfazer os soldos que se lhe estavam a dever do seu vencimento, de que informando me eu  do Comandante da mesma Expedição o Padre João Pinto, ordenei ao Feitor da Fazenda Real se liquidasse a sua conta pelos Livros da Recebedoria da Expedição, o que tendo-se executado, acho dever-se liquidamente à mesma Tropa treze mil nove centos vinte e seis panos, e um terço; V. Exª será servido determinar sobre este particular o que for justo.

Deus Guarde a V. Exª., Tete, 15 de Janeiro de 1800

Jerónimo Pereira».

Veremos as dificuldades que o explorador Francisco de Lacerda encontrou no sentido de levar a cabo uma determinação régia. Convém ter presente que nos fins do século XVIII a Europa foi varrida pelos ares da CIÊNCIA e, por conseguinte, os portugueses fizeram questão de não ficarem para trás nas DESCOBERTAS dos ignotos sertões do globo, das Áfricas e Américas, a fim de metê-los no Mapa-Mundi a favor do conhecimento e enriquecimento humanos. 

TETE - NÓ GÓRDIO (4)

Estamos em Tete. É o ano de 1798. Nesta esta  povoação perdida no sertão africano, feita de palhotas de caniço cobertas de capim e  algumas delas revestidas de barro que não resistia à força das primeiras chuvadas,  encontrava-se um paulista de origem portuguesa, formado na Universidade de Coimbra, com traquejo de explorador nos sertões brasileiros. 

Acompanhado da esposa e de uma filha, criança ainda, chegou Zambeze acima, com o cargo de Capitão-Mor dos Rios de Sena e com a incumbência régia de fazer a travessia, por terra, de Tete a Angola, (ida e volta), atravessando territórios governados por múltiplos e poderosos reis e régulos nativos organizados numa hierarquia de vassalagens, de impostos e de obediências. 

Atravessar quele território africano, com destino a Angola, de Tete a Muata Cazembe,  não era tarefa de pequena monta.. Realizá-la, não por um aventureiro armado em explorador,   mas o académico formado em matemáticas na Universidade de Coimbra, de seu nome e título Dr. Francisco José de La Cerda e Almeida. Foi ele que se dispôs a levar por diante aquela tarefa régia e nela «morrer ou deixar fama», se fosse preciso, o que de facto aconteceu.

Atravessar todo aquele território africano, dominado hierarquicamente por múltiplos reis e régulos,  era um NÓ GÓRDIO difícil de desatar, mas um «de La-Cerda», ainda que nascido em S. Paulo, de famílias portuguesas, com o apelido que foi herdado das mais nobres e ilustres famílias castelhanas, formado em Matemática pela Universidade de Coimbra, não iria esvaziar de nobreza e ilustração a árvore genealógica de que ele era uma pernada viçosa, cheia de vida e de coragem.

O primeiro contratempo aos seus intentos foi ficar viúvo inesperadamente. Em Abril de 1798 a gadanha da morte ceifou-lhe a esposa, deixando-o com uma filha, criança ainda,  nos braços e ele a braços com a azáfama ligada à organização de uma expedição científica, a fim de trazer à luz do mundo europeu e académico o conhecimento de  territórios e reinos ignotos no coração da África. 

Expedição científica, digo bem, ainda que ela não excluísse o comércio e tráfego de ouro, marfim e escravos, que ajudasse a sustentá-la. De resto, era essa vertente comercial que propunha o Coronel de Milícias de Manica Jerónimo Pereira que, não contrariando a vontade de Sua Majestade, sobrepunha o interesse comercial da expedição ao interesse científico. O académico não ouviu tais conselhos e do malogro da expedição viria a ser acusando depois pelo Coronel de Milícias em ofídios dirigidos ao Governador-Geral de Moçambique.

Na perspetiva deste Coronel de Milícias, a viagem far-se-ia com menor custo para a Fazenda Pública, reduzida a um pequeno grupo de homens disfarçados de mercadores, negociando com os senhores das terras, conhecendo e anotando o trajeto. Uma expedição de cariz puramente científico, implicava outros meios, mais finança, mais gente e, consequentemente, levantaria suspeita nos reis e régulos, obstando, por isso mesmo, a que ela chegasse a bom termo. E, de facto, não chegou, como veremos a seu tempo.  

Viúvo, colocado imprevistamente naquela situação e rodeado destas más-vontades quanto aos seus desígnios, advindas de pessoas influentes no meio, não se deixou fraquejar. Não desistiu de levar a cabo a tarefa de que estava incumbido. O Capitão-Mor dos Rios de Sena, prosseguiu na organização da expedição, ignorando completamente (porque não era bruxo) que, tendo-lhe a gadanha da morte levado a mulher naquela caldeira africana, essa mesma gadanha lhe ceifaria a sua vida, mal ele chegasse ao Reino de Cazembe, cerca de 1300 quilómetros andados África dentro. 

Mas isso são coisas do porvir. Por ora, o explorador, disposto a levar por diante a sua missão científica e deixar no anais da História e da Geografia um NÓ GÓRDIO por si desenlaçado em nome de Sua Majestade, o Rei de Portugal,  outro NÓ GÓRDIO tinha ele de desenlaçar, antes de se meter a caminho.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.