Convém, pois, começar pela razão dessa minha opção. Porquê intitular «Nó Górdio» ao conjunto de «registos» que preparei para aqui deixar? Respondo; não só pela razão apontada, mas também por mais algumas que passo a explicar.
Para além dos membros que marcam presença nas «Picadas de Tete», a expressão «Nó Górdio» é conhecida por toda e qualquer pessoa que tenha deixado a enxada do campo, a rabiça do arado, a aguilhada de lavrador e, em consequência, tenha passado pelos bancos do liceu. Nos livros liceais aprendeu a saber que Alexandre Magno foi rei da Macedónia. Aprendeu que numa das guerras por ele travadas e comandadas e se teve a ver com a desligação do «nó górdio», com vista à conquista do império persa. E, paradoxalmente, ali aprendeu também que tal «NÓ» se liga a um «carro de bois», coisa que todos os portugueses, pastores e lavradores, enquanto foram só isso, enquanto não tiveram acesso aos estudos, jamais imaginariam que a cabeçalha de um carro de bois esteve ligada, por lenda, à queda de um império. Quando eu estudei isso, pensei logo no «tamoeiro», aquela peça de cabedal que prende a cabeçalha do carro ao jugo das cavas, peça através da qual se processa a tração do «automóvel» puxado a «sangue».
Pois foi assim, segundo reza a lenda. Sendo esse «nó» impossível de desatar, Alexandre Magno não esteve com salamaleques, nem a gastou muito tempo, nem fósforo cerebral a estudar o modo de desatá-lo. Ripou da espada e... záz!, cortou o nagalho, desfez o «nó górdio» e a Pérsia ficou ao seu alcance.
Ora há quem veja nesta atitude de Alexandre Magno, o ato inteligente de resolver um problema da maneira mais fácil. E há quem veja nesse mesmo ato uma trapaça de todo o tamanho e, por conseguinte, falta de «jogo limpo».
Esclarecido que fica isto, devo acrescentar que não é pretensão minha fazer «jogo sujo» ao escolher este «rótulo» para a «embalagem» que aqui vou deixar. Esse «rótulo» só tem de comum, com estes meus «registos», o facto de se relacionar com a resolução de uma dificuldade e, no distrito de Tete, ter sido usada essa expressão, durante a Guerra Colonial. E veremos que dificuldades e «nós górdios» não faltaram nas conquistas de Alexandre Magno, como não faltaram nas conquistas e descobertas dos Portugueses e de outros conquistadores e exploradores por esse mundo fora, a quem a ciência muito deve. E, às vezes, nem sempre a fazer «jogo limpo».
Mas «jogo limpo» julgo fazer quando digo a todos aqueles que me «cantam o choradinho da queda do império português» que deviam primeiro «cantar-me o hino da sua formação», isto é, ao falarem da Descolonização deviam primeiro falar da Colonização. Isto é «jogo limpo».
TETE - NÓ GÓRDIO (2)
O conteúdo do presente registo não é o que estava na calha. Mas os comentários feitos ao «post» anterior, nomeadamente aquele que assinou o amigo, António Guerra, cito:
«Bem visto e explicado, hoje vejo o mundo assim, mas com 20 anos quando me enviaram para Moçambique vindo da província sem qualquer conhecimento, pensava que estava a defender uma boa causa, o que não verdade»
Pois, lido este e os restantes comentários, tive de alterar o plano já delineado e, passe-se a expressão, botar mão na matéria que estava reservada para mais tarde. Fiz o que era meu costume fazer nas aulas quando, com a lição muito bem planificada, um aluno levantava a mão perguntava algo de interessante, mas fora do plano. E então de duas, uma, ou ele ficava sem resposta, ou eu mudava de estratégia e conduzia a aula no sentido que a pergunta feita sugeriu. De resto, creio que, qualquer militar encarregado de uma determinada tarefa, muito bem planificada nos gabinetes, teria de alterar tudo face a uma emboscada inesperada. Os «nós górdios», enquanto dificuldades, encontram-se aos pontapés em toda a caminha humana, quer lhe chamemos isso ou outra coisa.
Face, pois, ao comentário acima referido, que tresanda a verdade e sinceridade, eu jamais deixaria em branco um testemunho desses nestes meus registos. Da minha aldeia morreram três ou quatro, dos tais que deixaram a rabiça do arado, a aguilhada do lavrador e foram parar à matas africanas, em nome de Portugal e do Império. E todos aqueles que se viram envolvidos nessa Guerra Colonial, ignorantes dos liames da História, bem podem orgulhar-se da farda que vestiram e dos combates que travaram. Faziam-no em nome de valores e convencidos que estavam a defender o solo pátrio. Gente simples e honesta chamada às fileiras, cumpria o seu dever. Mas para os meus amigos, com assento nesta página, a muitos anos de distância, melhor avaliarem a vossa postura, a vossa dignidade, o vosso patriotismo, o vosso saber ou a vossa ignorância, o respeito que todos nós por vós temos (mesmo aqueles que persistem em ignorar HISTÓRIA, é que trago a capítulo, por antecipação, a matéria que só viria, cronologicamente, mais tarde. Destina-se a estabelecer uma analogia, entre os convictos e honestos combatentes que vocês foram na «descolonização» e os soldados que a «colonização» fizeram. Comparem e orgulhem-se das vossas pessoas, das vossas fardas e das vossas atitudes. E, depois disso, digam-me cá, honestamente e sem «burrice»: o que tinham vocês a ver com as TROPAS dos tempos idos?. Socorro-me das palavras do General Justino Teixeira Botelho, referindo-se às nossas tropas coloniais no século XVIII. Leiam bem e matutem melhor:
«As tropas em Moçambique eram constituídas na sua maioria por degredados da metrópole, do Brasil e da Índia (....) o regimento é composto de homens perversos e que não perdem os maus costumes que trazem (...) Todos os anos, à chegada das naus da metrópole a vila de Moçambique via o seu cais pejado por uma leva de degredados, às vezes em número superior a cem, maltrapilhos, rancorosos, insubordinados; uns profissionais do crime, outros, homens a quem a fatalidade turvara o entendimento e lançara na senda da desgraça. Havia de tudo naquela vaga humana que o mar arremessava à praia: vadios conhecidos das alfurjas de Lisboa, salteadores, perigosos, ladrões, assassinos, soldados e marujos incorrigíveis e até infelizes de boa índole que a miséria pervertera (...) Esses homens, recrutados entre gente desmoralizada e roída de vícios, não podiam dar senão péssimos soldados, qualquer que seja o especto sob o qual os consideremos (...) homens tais, a quem o laço de uma forte disciplina não unia e, demais, gastos pelo vício e pelos rigores do clima africano, não suportavam as fadigas de uma campanha. Às primeiras marchas as febres prostravam-nos e inutilizavam-nos para qualquer esforço.
Foi o reconhecimento desta inferioridade que levou os governadores de Moçambique a pedirem que a guarnição da Capitania fosse reforçada com sipais da Índia. O indiano, alegavam eles, é mais resistente do que o europeu e suporta melhor do que ele as fadigas de uma campanha no sertão, embora prolongada" (General José Justino Teixeira Botelho, «História Militar e Política dos Portugueses em Moçambique», 1934, pp. 445-448)
(continua).
TETE - NÓ GÓRDIO (3)
Retomando o fio à meada, isto. é, retomando a «picada» da qual me desviei por ter de falar na qualidade do nosso exército «colonial», do século XVIII (ao fim e ao cabo, interromper o passo com esta espécie de minas que sempre se deparam a quem estuda o passado) aquele que construiu os alicerces do império (matutaram bem na sua constituição? Gente fixe era aquela!) tendo, embora, presente que o nosso objetivo é RECONTAR a viagem que o astrónomo e matemático FRANCISCO JOSÉ DE LA-CERDA E ALMEIDA, fez de TETE ao reino de Muata Cazembe, com vista a ligar aquela parte oriental da África à parte ocidental, apesar da viagem ter o caracter CIENTÍFICO, dizia eu, não dispensou a colaboração de militares, seguramente soldados do quilate que o General Teixeira Botelho nos mostrou e cujo retrato eu vos deixei no post anterior, visando, com isso, ajudar a desatar o «nó cego» (ou será «nó górdio»?) que enleia os conhecimentos e sentimentos de muita boa gente, direi melhor, muita gente boa que se recusa a reconhecer as evidências, que se recusa a ver o desenrolar dos acontecimentos históricos e o caracter dos protagonistas dos factos ocorridos no passado remoto ou no passado próximo.
Vejamos, pois, mesmo antes de conhecermos os pormenores da expedição e o seu resultado, a carta que, após a malograda viagem, da qual falarei no próximo post, o Governador de Tete, seu sucessor no cargo, mandou ao Governador-Geral de Moçambique, a propósito dos gastos com as tropas que acompanharam o explorador.. Atualizei a ortografia e coloquei as abreviaturas por extenso, para melhor se compreender:
«Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,
Dou parte a Vª Exª que, recolhendo-se a tropa do Interior da África e da Corte do Rei Cazembe, a 18 do mês de outubro próximo passado, me requereu lhe mandasse satisfazer os soldos que se lhe estavam a dever do seu vencimento, de que informando me eu do Comandante da mesma Expedição o Padre João Pinto, ordenei ao Feitor da Fazenda Real se liquidasse a sua conta pelos Livros da Recebedoria da Expedição, o que tendo-se executado, acho dever-se liquidamente à mesma Tropa treze mil nove centos vinte e seis panos, e um terço; V. Exª será servido determinar sobre este particular o que for justo.
Deus Guarde a V. Exª., Tete, 15 de Janeiro de 1800
Jerónimo Pereira».
Veremos as dificuldades que o explorador Francisco de Lacerda encontrou no sentido de levar a cabo uma determinação régia. Convém ter presente que nos fins do século XVIII a Europa foi varrida pelos ares da CIÊNCIA e, por conseguinte, os portugueses fizeram questão de não ficarem para trás nas DESCOBERTAS dos ignotos sertões do globo, das Áfricas e Américas, a fim de metê-los no Mapa-Mundi a favor do conhecimento e enriquecimento humanos.
TETE - NÓ GÓRDIO (4)
Estamos em Tete. É o ano de 1798. Nesta esta povoação perdida no sertão africano, feita de palhotas de caniço cobertas de capim e algumas delas revestidas de barro que não resistia à força das primeiras chuvadas, encontrava-se um paulista de origem portuguesa, formado na Universidade de Coimbra, com traquejo de explorador nos sertões brasileiros.
Acompanhado da esposa e de uma filha, criança ainda, chegou Zambeze acima, com o cargo de Capitão-Mor dos Rios de Sena e com a incumbência régia de fazer a travessia, por terra, de Tete a Angola, (ida e volta), atravessando territórios governados por múltiplos e poderosos reis e régulos nativos organizados numa hierarquia de vassalagens, de impostos e de obediências.
Atravessar quele território africano, com destino a Angola, de Tete a Muata Cazembe, não era tarefa de pequena monta.. Realizá-la, não por um aventureiro armado em explorador, mas o académico formado em matemáticas na Universidade de Coimbra, de seu nome e título Dr. Francisco José de La Cerda e Almeida. Foi ele que se dispôs a levar por diante aquela tarefa régia e nela «morrer ou deixar fama», se fosse preciso, o que de facto aconteceu.
Atravessar todo aquele território africano, dominado hierarquicamente por múltiplos reis e régulos, era um NÓ GÓRDIO difícil de desatar, mas um «de La-Cerda», ainda que nascido em S. Paulo, de famílias portuguesas, com o apelido que foi herdado das mais nobres e ilustres famílias castelhanas, formado em Matemática pela Universidade de Coimbra, não iria esvaziar de nobreza e ilustração a árvore genealógica de que ele era uma pernada viçosa, cheia de vida e de coragem.
O primeiro contratempo aos seus intentos foi ficar viúvo inesperadamente. Em Abril de 1798 a gadanha da morte ceifou-lhe a esposa, deixando-o com uma filha, criança ainda, nos braços e ele a braços com a azáfama ligada à organização de uma expedição científica, a fim de trazer à luz do mundo europeu e académico o conhecimento de territórios e reinos ignotos no coração da África.
Expedição científica, digo bem, ainda que ela não excluísse o comércio e tráfego de ouro, marfim e escravos, que ajudasse a sustentá-la. De resto, era essa vertente comercial que propunha o Coronel de Milícias de Manica Jerónimo Pereira que, não contrariando a vontade de Sua Majestade, sobrepunha o interesse comercial da expedição ao interesse científico. O académico não ouviu tais conselhos e do malogro da expedição viria a ser acusando depois pelo Coronel de Milícias em ofídios dirigidos ao Governador-Geral de Moçambique.
Na perspetiva deste Coronel de Milícias, a viagem far-se-ia com menor custo para a Fazenda Pública, reduzida a um pequeno grupo de homens disfarçados de mercadores, negociando com os senhores das terras, conhecendo e anotando o trajeto. Uma expedição de cariz puramente científico, implicava outros meios, mais finança, mais gente e, consequentemente, levantaria suspeita nos reis e régulos, obstando, por isso mesmo, a que ela chegasse a bom termo. E, de facto, não chegou, como veremos a seu tempo.
Viúvo, colocado imprevistamente naquela situação e rodeado destas más-vontades quanto aos seus desígnios, advindas de pessoas influentes no meio, não se deixou fraquejar. Não desistiu de levar a cabo a tarefa de que estava incumbido. O Capitão-Mor dos Rios de Sena, prosseguiu na organização da expedição, ignorando completamente (porque não era bruxo) que, tendo-lhe a gadanha da morte levado a mulher naquela caldeira africana, essa mesma gadanha lhe ceifaria a sua vida, mal ele chegasse ao Reino de Cazembe, cerca de 1300 quilómetros andados África dentro.
Mas isso são coisas do porvir. Por ora, o explorador, disposto a levar por diante a sua missão científica e deixar no anais da História e da Geografia um NÓ GÓRDIO por si desenlaçado em nome de Sua Majestade, o Rei de Portugal, outro NÓ GÓRDIO tinha ele de desenlaçar, antes de se meter a caminho.