Nesse romance histórico, servi-me desse conjunto de «penedos» e aludidas «gravuras» para, no contexto da ficção, junto deles congeminar um lugar de culto ao deus Endovélico, congeminar um arraial de tribos lusitanas, cujas marcas de presença seriam as inscrições votivas ali deixadas. Chamei-lhes «sinais epigráficos feitos a esmo, sem formas definidas, muitas deles círculos irregulares e imperfeitos a prefigurarem o registo pétreo de células vivas, deslizando no fluído de qualquer órgão da Natureza, atirado para ali por cirurgião descuidado». E terminava perguntando: «são coroas? São aves? são plantas? são o quê? São mesmo obra humana, como dizem os arqueólogos, ou serão resultado de um fenómeno natural?
A perguntas não eram gratuitas. Aconteceu que nas deambulações habituais e continuadas que, desde 1983, tenho feito pela serra do Montemuro, pelos montes e outeiros em redor de Castro Daire, numa das minhas prospecções feita na zona da «Fonte da Pedra» encontrei, no rosto de algumas rochas «recentemente» fracturadas, uma profusão de desenhos naturais, algo bizarros, de traço-ocre (fotos 1 e 2), cujas formas, genericamente, tinham uma similitude evidente com os que, muito perto, marcados por sulcos, têm sido considerados «gravuras rupestres».
Constatada a analogia, e face às legítimas interrogações que tais desenhos me suscitaram, reconhecida a minha incapacidade científica para opinar sobre a matéria que pertencia ao império da Geologia, recorri a um especialista dessa área de saber, ao geólogo António Beato Serra, que, depois de se ter deslocado ali comigo, depois de analisar e estudar o fenómeno (foto 3), produziu um esclarecedor «relatório científico». Eis os excertos que interessam ao caso vertente:
«(...) Foi-me solicitado que, enquanto geólogo, emitisse um parecer científico sobre a natureza da origem das formas curvilíneas que se percepcionam nalguns afloramentos graníticos encontrados na região designada por «Fonte da Pedra», localizada entre as aldeias de Picão e Rossão, em plena Serra do Montemuro, no concelho de Castro Daire.
(...)
Fazendo uma breve descrição científica das principais características do mineral Feldspato Potássico, regista-se que a variedade Ortoclase apresenta uma densidade média de 2,5, dureza de 6, clivagem perfeita e a sua cor pode variar desde o incolor ao verde-esmeralda, passando pelo banco, amarelo e cor de carne. A Ortoclase observada nos afloramentos, em estudo, é de cor branca, no entanto nas zonas expostas à oxidação do Ferro, apresenta uma tonalidade vermelho-acastanhado, associada a essa oxidação, que é visível em várias porções de granito que fracturaram do maciço principal, tendo posteriormente oxidado pela exposição ao ar e água. Este mineral, cuja composição química é o de um alumino-silicato de potássio (Si: Al: O: K), reage com a água das chuvas, que se infiltram pelas fissuras do granito, ocorrendo uma hidrólise do mineral, em meio ácido, em que a Ortoclase reage com o Ácido e com a Água, produzindo argila, ácido dissolvido e iões bicarbonato designando-se esta meteorização química por Lixiviação do Feldspato, em que este se transforma num mineral de Argila, designado por ? Montmorilonite.
(...)
«[Quanto à] origem das formas curvilíneas, observadas na superfície dos granitos, salienta-se que os sulcos, que originam estas formas, resultam da desagregação e alteração química da Ortoclase em Mineral de Argila (devido à Lixiviação do Feldspato Potássico e sua transformação em Montmorilonite). No entanto, esta erosão, pode acontecer antes dos minerais de feldspato estarem expostos ao ar e a alteração química e mineralógica, acima descrita, podendo ocorrer dentro das fissuras do granito por reacção do feldspato potássico com as águas ácidas que se infiltraram. Estes acontecimentos geológicos não justificariam totalmente o aparecimento dos sulcos, quando muito, teríamos o mineral de Ortoclase substituído pelo mineral de Argila, mas associados ao facto dos granitos, habitualmente, fracturarem pelos seus planos de diáclase, desagregando-se em blocos menores, expondo, assim, as faces de alteração do interior das antigas fissuras, à acção erosiva do vento e da chuva que arrancam os minerais de argila, juntamente com alguns sedimentos de quartzo e micas e deixando os sulcos que observamos nas superfícies aflorantes e que são responsáveis pelos desenhos curvilíneos, que até parecem ter sido feitos por mão humana».
E pronto. Face às detalhadas e convincentes explicações deste especialista, dissiparam-se-me as dúvidas. Os desenhos e sulcos curvilíneos existentes nas superfícies dos penedos existentes na «Fonte da Pedra», desenhos que «até parecem ser feitos por mão humana» são, tão só, um fenómeno natural. Aqueles, cujas múltiplas e irregulares formas são limitadas por sulcos, e que, à primeira vista, parecem ser produto de mão humana, têm o seu paralelo naqueles outros que se encontram apenas delineados, a traço-ocre, pela mão da natureza (fotos 1 e 2). E alguns destes exibem, já e também, ligeiros sulcos. Vistas assim as coisas, caberá ao escopro erosivo sulcar a obra que, algures no tempo, o pincel natural delineou e, por força do tempo, torná-la igual aquela que, ali ao lado, se propôs desafiar a inteligência e o entendimento humanos.
Face a isto, e posto que a «Fonte da Pedra», sita na serra do Montemuro, deixe de figurar no roteiro das «gravuras rupestres» da Beira Alta por força do presente estudo, não divulgar as suas conclusões, deixando que a História ignore e afirme o que a Geologia, convincentemente nega e explica, era, não só, sonegar este conhecimento à comunidade académica que se tem interessado por encontrar pegadas humanas nestes «trilhos serranos», mas também subtrair à História Local um contributo que, em rigor, nela deve ser incorporado.
De resto, nas veredas da investigação, seja qual for a disciplina e/ou ciência investigadas, seja qual for o suporte de informação e divulgação do saber produzido, quem é que tem a última palavra? E tendo-a, ela não passa de uma etiqueta de garantia e validade sempre transitórias» (in «www.trilhos-serranos.com» de «17-08-2007)
PS-1. Este artigo, por razões de ética académica, foi remetido ao senhor Professor Domingos Cruz, no dia 26-08-2004, através do endereço electrónico
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, do «Centro de Estudos Pré-históricos da Beira Alta».
Estando este texto e a respectiva nota em «rede» desde o mês de Agosto de 2004, no mês de Agosto de 2007 encontrei-me em Castro Daire, com o Professor Domingos Cruz, que, depois de trocarmos impressões sobre o assunto, me disse que concordava comigo. Também ele procedera a novos estudos acompanhado de geólogos e concluiu que o que foi considerado «gravuras rupestres», na «Fonte da Pedra» era apenas o efeito da erosão. Fiquei contente ao ouvir da boca de um «académico» que eu tinha razão. Apreceiei bastante a honestidade deste investigador ao rejeitar «cientificamente» a «ciência feita». Às vezes é-se bem sucedido questionar o «dito e o feito».(in «www.trilhos-serranos.com» de «17-08-2007)
PS-2: Este artigo publicado no «Notícias de Castro Daire» em 2007, tal como no meu velho site «www.trilhos-serranos.com», onde se encontra ainda alojado, foi repescado para aqui, neste ano de 2015, por imperiosa honestidade intelectual. Isto depois de ver nas redes sociais, na página de uma tal «PICOA» (deve ser de Picão) que persiste em chamar-lhe «gravuras rupestres». É um sinal evidente de que há por aí muita gente a OPINAR sobre o que não sabe, não entende, nem faz estudos para saber e entender. Dir-me-ão que se as pessoas de Picão sempre disseram isso, mas elas são as mesmas que sempre disseram que o «sol anda à volta da Terra».
https://youtu.be/WHXqF7Qjiyw
*«Centro de Estudos Pré-históricos», 1999, vol. 7, pp 132.