quinta, 30 abril 2015 21:19
Escrito por
Abílio Pereira de Carvalho
ARQUEOLOGIA INDUSTRIAL
A grande transformação tecnológica deu-se com a chegada da máquina a vapor, já em meados deste século. A aplicação serôdia desta tecnologia a este ramo de indústria ainda não se apagou na memória de grande parte das pessoas que tem hoje pouco mais de 50 anos de idade. Introduzida fora de horas, chegando tarde e tarde saindo, é até estranho para muitos residentes no concelho que a sua inventariação e estudo seja objecto da arqueologia industrial.Não estando as fábricas imunes à passagem do tempo e, consequentemente, sujeitas à transformação trazida pela modernidade e pela iniciativa e investimento dos empresários, em algumas delas os motores de combustão acabaram por substituir as máquinas a vapor e os motores eléctricos deslocaram, de vez, a tecnologia que os precedeu, utilizada, algumas vezes, de forma conjugada e com funções múltiplas.CASAIS DE DONA INÊSCom o número matricial 1112 na Repartição de Finanças de Castro Daire, a «Serração Moderna dos Casais, Lda», freguesia de Mões, é dada por concluída no ano de 1956.Hoje propriedade do senhor António Luís de Almeida e filhos, a máquina a vapor de marca «Lanz» comprada em Portalegre, foi o equipamento tecnológico «moderno» que adjectivou o nome da firma.No dia 24 de Outubro de 1959 a Direcção Geral dos Combustíveis autorizou a instalação e funcionamento do motor a vapor nº 1153 de marca «Clayton» com a potência de 35 CV. Este motor, segundo o dito certificado, recebia o vapor do gerador de vapor da mesma marca, cujas características técnicas constam no quadro que apresentaremos mais abaixo.Este equipamento a vapor, originário da Inglaterra, não se estreou na fábrica dos Casais de D. Inês, ali, onde viria a ser reformado por força da tecnologia mais avançada, posteriormente introduzida. Em 19 de Julho de 1944 laborava em várias propriedades agrícolas de José Nobre Lança, na freguesia de Panoias, concelho de Ourique, distrito de Beja. Passeando-se por várias propriedades, como diz o certificado que legaliza a sua instalação, vê-se logo que se trata de uma locomóvel, uma daquelas máquinas a vapor que os lavradores alentejanos aplicavam às debulhadoras do trigo.As razões por que o lavrador alentejano se desfez deste equipamento são fáceis de adivinhar: a chegada do tractor - máquina polivalente, utilizada na lavra e mais tarefas ligadas à preparação da terra para a semeadura e facilmente aplicada à debulhadora em tempo próprio - pôs de lado a máquina a vapor. E, segundo os nossos informantes, o empresário beirão, não apenas este, mas também alguns outros, apressaram-se a descobrir o Alentejo (Alto e Baixo) com o intuito de adquirirem ali, por «tuta e meia», a tecnologia que lhes fazia falta para desenvolverem ou implantarem as suas indústrias. Nunca o Alentejo foi tão falado nas Beiras entre empresários. Só quando os "ratinhos" se deslocavam para as ceifas transtaganas. Agora eram aqueles mastodontes de ferro que faziam o circuito inverso. Com quatro rodas por baixo da barriga e duas às carrachoilas, polidas, prontas a receberem as correias de lona e a transmitir a sua força, fosse ao que fosse. A debulha dos trigais do «celeiro de Portugal» ficara para trás. Agora outras tarefas as esperavam.Mas elas não vinham só do Alentejo. O litoral, onde o progresso e o desenvolvimento mais cedo encontraram terreno propício para se fixarem, transferiu também a tecnologia fora de moda e em desuso para o interior.Outra máquina chegou depois, adquirida em segunda mão, ao senhor Moisés Tavares da Silva, dono de uma serração no local da Relva, freguesia de Vila Chã, concelho de Vale de Cambra.A chegada da «Wolf» sugere, desde logo, que a velha «Clayton» chegara ao fim dos seus dias. E no mesmo sentido aponta a correspondência emanada da D.G.C., datada de 2.10.69, onde se pede para aqueles Serviços serem informados do nome e morada do seu hipotético comprador e no caso de ter sido vendida para a sucata, devia a firma requerer o cancelamento da instalação, nos termos da lei.Tinha razão o padrinho da firma dos Casais quando a baptizou de «Serração Moderna».É que nas suas instalações laborava ainda, e também, outra máquina de vapor de marca «Pierre Dumurá». Mas esta tinha uma vida menos esforçada. Não accionava serras. Produzia simplesmente vapor destinado ao aquecimento da «estufa» para secagem de madeiras.Iniciando-se na indústria no já afastado século XVIII, base da chamada Revolução Industrial, a máquina a vapor marcava a sua presença em Castro Daire, nos meados do século XX. Com que orgulho os empresários não exibiriam a tecnologia que, sendo rejeitada noutros sítios por ser considerada obsoleta, por os empresários já terem à mão outros recursos, aparecia aos olhos dos castrenses como tecnonologia de ponta, habituados que estavam a ver na água e nos animais a única força motriz que fazia girar os seus engenhos industriais.Serração «Moderna» se chamava a firma dos Casais, como quase todas as outras suas contemporâneas. O nome é de si significativo. O progresso demora a subir à serra, custa-lhe a penetrar no interior e o que se exibe como prova de modernidade é, paradoxalmente, a prova mais evidente do atraso das nossas indústrias, ao tempo.Passados poucos anos após a "Revolução dos Cravos", a Serração Moderna dos Casais, deixou de laborar à força do símbolo da "Revolução Industrial". Tornou-se efectivamente "moderna", se não levarmos em conta que lá pelas Europas já há serrações onde computadores e robôs dão ares da sua graça. As serras e mais instrumentos de corte da serração de Casais continuam a girar, mas não já accionadas pelas máquinas a vapor. Duas delas foram vendidas para a sucata, mas outra - a "R. Wolf" - recusou-se a largar o compartimento onde foi instalada, como que disposta a não seguir o destino das companheiras e a lembrar que, sendo um produto do engenho humano concebido para engenho de produção, o homem só se respeita a si próprio, respeitando a obra que produziu.Não podendo permanecer no sítio onde foi instalada, dado o espaço que ocupava ser necessário para outras funções, descoberta que foi no decurso deste meu trabalho, convenci o proprietário a cedê-la ao Município com vista à sua recuperação e, subsequente instalação no jardim público da vila, em homenagem à história da técnica, da indústria e do trabalho.Ele consentiu. O executivo municipal não foi insensível à proposta que lhe fizemos de seguida e, em resultado disso, os vídeos e as fotografias de que a máquina tem sido alvo, desde então, por parte de nacionais e estrangeiros, crianças e adultos que sobre ela se interrogam, atestam o acerto, não só da iniciativa.E o facto vai fazendo eco na imprensa nacional e regional. Vasco Callixto, de passagem por Castro Daire, no «Correio da Manhã» de 8.11.94, citado na «Gazeta de Beira» de 07.12.94, refere-se ao facto da seguinte forma: «a colocação no centro do jardim de uma máquina monumental, como símbolo da indústria da região, constitui uma feliz iniciativa". E o «Jornal de Notícias» que tem dedicado algumas crónicas ao concelho de Castro Daire, foi nesta máquina a vapor que encontrou o motivo para ilustrar um artigo sobre o Plano Director Municipal. E a recente colecção de postais ilustrados editada pela Papelaria "ETC", a par de outros momumentos concelhios, inclui a máquina «R. Wolf».Cf. Meu livro "CASTRO DAIRE, Indústria Técnica e Cultura", ed. 1995NOTA: O texto que o leitor acaba de ler está em on-line desde 2004, no meu velho site. E história desta máquina está publicada no livro «Castro Daire, Indústria, Técnica e Cultura», da minha autoria, desde 1995, como se vê na nota final.Chegou-me agora às mãos, neste ano de 2007, um folheto publicitário das «Termas do Carvalhal» patrocinado pela Região Dão Lafões, União Europeia Feder, Portugal em Acção, Ministério da Economia e Prime (Programa de Incentivos à Modernização da Economia», onde se lê o seguinte:«Na sua passagem por Castro Daire, não deixe também de visitar o magnífico Jardim da Vila, onde poderá observar com atenção uma das primeiras máquinas a vapor dos caminhos de ferro portugueses, de origem alemã e datada de 1912».Comentários para quê? Apenas aqui deixo a nota para o leitor constatar o rigor e a credibilidade que merecem os «fazedores» de história, cultura e informação, que, elaboraram o folheto. Sem curarem de averiguar a história da máquina, não estranharam que uma máquina de comboio tem as rodas em baixo e que esta não tem rodas, tem volantes, e estes estão em cima. Para os «ignorantes» toda a «maquina a vapor» é uma «locomotiva»Enfim, mais comentários para quê? |
Publicado em
História
Abílio Pereira de Carvalho
Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.