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quarta, 25 junho 2014 13:30

CUJÓ - O TOPÓNIMO

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No meu livro «Cujó, uma terra de riba-Paiva», publicado em 1993, deixei um capítulo sobre o «topónimo» discordando da explicação inserta na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», cujo autor remete para o étimo latino «culiolum>cuios>cu(i)jo», termo ligado à plantação de nogueiras, coisa bastante inverosímil na zona, já que, em todo o tempo, o que ali abunda são carvalhos, castanheiros e amieiros, aos quais se juntou, depois, o pinheiro. Em alternativa, propus, julgo que mais acertadamente, o étimo «caseus>queijo>cuijo>cujo» (justificando a proposta), opinião que retomei e desenvolvi mais tarde com respaldo no saber do latinista, Professor Dr. Francisco Cristóvão Ricardo, que se deu ao trabalho de explicar a possível evolução fonética da palavra, na qual aparece de permeio «quijo» antes de «cujo». (cf. site «www.trilhos-serranos.com»)

Retomo o tema para recordar aos mais novos que na minha juventude, quer os naturais, quer os habitantes do concelho, todos diziam «QUIJÓ» e não «CUJÓ». Este nome só veio a fixar-se, gráfica e oralmente, com as novas gerações escolarizadas. Daí que esta minha reiterada reflexão sobre a mesma coisa tenha hoje inteiro cabimento, no contexto da investigação e do saber, sobretudo num tempo em que se vêem desaparecer, a velocidade vertiginosa, os topónimos que nos chegaram desde a Idade Média e a estéril discussão que por aí se trava sobre o novo Acordo Ortográfico, como se a Língua Portuguesa fosse um artefacto fossilizado e não em «constante movimento» como nos ensina a «Pedra Filosofal» de António Gedeão.

Quijó-manuscrito

Com efeito, para além dessa pronúncia usada, nos meados do século XX, por toda a gente das redondezas, (tal como se dizia «Crasto» em vez de «Castro»), encontrei,  nas minhas pesquisas sobre a História Local, manuscritos ligados ao pagamento de foros onde aparece a palavra QUIJÓ (ver manuscrito acima) e foi também assim que Aquilino Ribeiro a escreveu no seu livro «Andam faunos pelos bosques», editado no ano de 1926, quando se refere ao ajuntamento das povoações serranas empenhadas em dar caça ao «bicho-mau», ao «papa-moças» que andava pelos montes a desflorar as pastoras.

E aproveito para lembrar também que todas as mães de Cujó, ao mandarem as suas filhas para os montes com os gados, dois avisos lhes faziam sempre: cuidado com os lobos e com o «homem das mulheres», tão lestos a aparecerem por detrás de qualquer urgueira, como a desaparecerem depois de satisfeitos os seus intuitos. Nunca cheguei a perceber a razão desta última advertência, mas creio que o tema e enredo desenvolvidos por Aquilino Ribeiro, neste seu livro, mais não é do que o repositório escrito, quer do maravilhoso, quer do imaginário, quer das violações de que, em tempos idos, eram vítimas as pastorinhas e para as quais elas próprias e as famílias encontravam as mais estapafúrdias explicações, com vista a encobrirem o sucedido, a perda dos «três», a perda da «honra», palavras, actos e pensamentos que chegaram aos meus tempos. E coitada da moça que, com o seu assentimento seu ou sem ele, se visse privada desse tesouro, numa sociedade que punha na «virgindade» o valor supremo da conduta moral e religiosa. A virgindade era uma relíquia de altar e ao altar devia ser levada no dia em que macho e fêmea se submetessem aos preceitos da lei e a estola os enlaçasse para sempre, já que «ninguém separa o que Deus uniu».

Mas voltemos  a «Andam faunos pelos bosques» e vejamos como Aquilino Ribeiro envolve as gentes de Quijó na caça ao «papa-moças», empresa que se deveu a um tal Pedro Jirigodes, nome também muito conhecido no meu tempo, atribuído a homem esperto, mas de mau carácter. Uma «má rês», na linguagem de um dos protagonistas da novela e um «santo» nas palavras do Arcipreste Dâmaso.

Pois foi este Jirigodes o responsável pelo ajuntamento das populações da serra que de todos os sítios se dirigiram para o lugar combinado. Uma autêntica montaria ao «bicho», semelhantemente àquelas que se faziam aos lobos e se fazem hoje ao javali que, em varas cada vez mais numerosas, vai infestando as nossas matas, prova manifesta da franca reprodução desta espécie protegida,  em prejuízo garantido do desprotegido agricultor que, pela calada da noite,  vê as suas hortas lavradas e milheirais destroçados de cabo a rabo.

Foi assim:

Capa-Aquilino«De Nordeste haviam-se aparelhado para a acometida as povoações bárbaras de Várzea da Serra, Almofala, Monteiras, Quijó, que sonham há mil anos com a "batalha que um dia se há de travar na sua terra chã imensa para depois se acabar o mundo". Rostos esculpidos no granito e recobertos de musgo, com burjacas de burel ao ombro, socos de tromba alta, apresentavam daquela banda, mercê das foices, estadulhos de carvalho, lazarinas, uma estrepe de levar tudo a raso. Conduzia-os um alentado cura, pai de filhos e famoso batedor de lebres. Gente dos olhos leais, espantados, não eram menos que duzentos.

À ilharga alinhavam Pendilhe, S. Joaninho, Vila Cova-à-Coelheira, Touro, com o gentio de feições góticas, intonso e achavascado, no meio de quem, às vezes, como desopilação da natureza, floria mocinha, mais branca e graciosa que açucena num tojal. Empunhando grandes mocas, sachos de peta com longo cabo, farruscas e espingardas de pederneira, lembravam, atrás do morgado da Granja, mesnadas antigas empós dum alcaide. E de bons labregos de pescoço de cerdo eram passante trezentos.

À mão esquerda, das plagas em que Pedro Jirigodes erguia pendão e caldeia, Queiriga, Fráguas, Barrelas, Alhais, Peva, três colunas atroavam os ares com alardo de guerra (...)».

 

E aqui chegados, isto é, chegados aos senhores de «pendão e caldeira», que graças ao direito de «aposentadoria» que eles tinham nos seus domínios territoriais, ditos senhorios, e do qual usavam e abusavam, inclusive servirem-se das filhas e mulheres dos enfiteutas, introduzo aqui, com redacção própria, a lenda que recolhi em Fareja, ligada a uma pastorinha. (cf. meu livro «Lendas de cá, coisas do além», publicado em 2004). Assim:

«Certo dia, sem dúvida um dos poucos que por li andava sozinha, dia em que apenas por ali passara uma comitiva de nobres a caminho de uma caçada, estando ela, roliça, deitada no chão, seios espetados no ar, olhos semicerrados, meio a dormir, meio acordada, embalada pelo zumbido das abelhas, pelo tilintar das campainhas com a ajuda do sol estival que não se contentava em beijar-lhe o rosto, mas penetrava fundo esquentando-lhe o corpo esbelto que um vestido serrano encobria, aconteceu o inesperado. Sem o alarido costumeiro dos outros pastores e crianças, foi junto do Penedo da Vezeira que ela descobriu a magia que envolve os montes, as rochas e as fontes em momentos de solidão.Capa-Lendas

Regressada a casa, guardaria para si o sonho, gozo e o segredo, não fora a mãe encontrar-lhe uma moeda de ouro presa no entrançado da cesta de verga. Uma moeda de ouro arrecadada numa cesta de pastora, filha de um casal que vivia de terras emprazadas por três vidas, casa onde o dinheiro de metal sonante escasseava, tinha de ter uma explicação. E teve-a:

Estando a pastora sentada junto do Penedo da Vezeira apareceu-lhe uma mulher estranha que lhe pediu, por caridade, uma malguinha de leite. Não se fez rogada e atendeu o pedido, mugindo a cabra do costume, já habituada a fornecer-lhe o sustento da tarde, dita merenda. Agradecida, a mulher recompensou-a com uma estranha prenda: meteu-lhe na cestinha três pedaços de carvão com a recomendação de, com cuidado,  os levar para casa. A pastora  estranhou a recompensa e só por gentileza se não despojou dela ali mesmo, o que fez logo que chegou à “poça do monte”, a caminho de Fareja, mesmo ao cimo do povoado. Estava dada a justificação. E face a isso, todos concluíram que a benfeitora era uma moura encantada. Correram ao local onde ela se tinha desfeito dos outros pedaços de  carvão, mas eles tinham desaparecido por encanto. Não encontraram nada. Desalentados regressaram à povoação. O facto seria, porém, contado vezes sem conta nos serões de inverno e o penedo manter-se-ia ligado à lenda da moura encantada até ser desfeito para obras em pleno século XX.

Alguém viu o sucedido? Ninguém. Alguém passou por ali? Sim! Foi  uma comitiva de nobres a caminho de uma caçada. A pastora escusara-se a dizer isso, escusara-se a dizer que, enquanto dormitava junto  do penedo, sonhara ser uma moura que, a troco de três vinténs, arregalara um dos mancebos com a dança do ventre».

Voltando ao texto de Aquilino, sublinho não apenas o topónimo Quijó, o mito do «papa-moças», do «homem das mulheres» chegados ao meu tempo de juventude, mas também a frase que o autor põe entre aspas e repito: «sonham há mil anos com a «batalha que um dia se há de travar na sua terra chã imensa para depois se acabar o mundo», uma alusão clara ao facto de se dizer, por estas bandas, que, no descampado da Senhora da Ouvida (convertido actualmente em Zona Industrial) se travaria uma batalha entre os moradores das serras da Nave e do Montemuro, batalha que seria «o fim do mundo».

Mas sublinho algo mais: é a caracterização física dos «batedores», do seu calçado e vestuário, bem como as armas de que iam munidos. Quem, como eu, em meados do século XX, conheceu e viveu no meio de tal tribo, quem, como eu, é natural de uma das «povoações bárbaras» que integravam a montaria ao «papa-moças», que ninguém via mas trazia em alvoroço as povoações montanhesas, descortina bem, o pano de fundo, digamos a tela, onde Aquilino Ribeiro, com verdade, ironia e arte literária única, retrata as gentes serranas, os seus costumes, valores e preocupações. Sempre com curas e abades à frente. O negro corvo das batinas, os brocados dourados e prateados das dalmáticas, o vermelho solidéu dos bispos dos pés à cabeça. Pano de fundo que chegou até mim, em menino, durante os serões no lar paterno, à luz da candeia.

Pela boca do meu pai, as suas aventuras de taberneiro, odres de vinho amolgados na albarda pelas cordas que os cintavam e os mantinham em cima da alimária; as suas tranquibérnias de almocreve e negociante de volfrâmio, os encontros com lobos, esses maganos, que se atreviam a fazer-lhe frente, em dias de nevoeiro. Da boca da minha mãe, sempre a desfazer a rocada de lã ou de linho, sempre a girar o fuso e a torcer o fio, falando de mulheres bentas, de bruxas, lobisomens, (http://youtu.be/lNLDFuMlDGI), maus olhados, feitiços, almas penadas e espíritos malignos que andam pelo mundo para perdição das almas. Chegou tudo isso até mim, menos a inspiração e arte de escrevê-lo com o saber, sabor e tempero usados por esse nosso incomparável cozinheiro das LETRAS PORTUGUESAS.  

 Consolo-me a lê-lo, nesta vida de aposentado. Em cada folha dos seus livros, ouço as vozes do meu pai e da minha mãe, nesses serões distantes alumiados à luz da candeia. E vejo-me menino, de olhos esbugalhados e ouvidos atentos, absorvendo todo aquele desenrolar de aventuras, de crenças, superstições, de verdades, de lendas e de mitos, enquanto, na lareira, ardiam os tocos das urgueiras ou o «mexo», pela mão do meu pai, descobria uma brasa mergulhada nas cinzas e, ao meus olhos, tomava as feições do Sol radiante que todas as manhãs e eu via surgir no horizonte, guardando gado.

Abílio/Junho/2014

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.