Trilhos Serranos

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terça, 03 junho 2014 09:51

INFLUÊNCIA DA CULTURA CLÁSSICA NA CULTURA PORTUGUESA

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TORNA-SE O HERDADOR NA COUSA HERDADA

Creio que a glosa que fiz ao poema "Antes que o Sol se levante" de Francisco Rodrigues Lobo, ficará mais enriquecida com o excerto do texto em prosa que publiquei, há largos anos, no meu antigo site "www.trilhos-serranos.com" com o título em epígrafe. A divindade Paiveia (levantada das águas do rio Paiva) falava assim com Lusozé, um rural académico. Assim:
"(...)
ILUMINURAE não posso folhear-te toda a História pátria, mas regista que a tua família, depois que se formou Portugal, viu-se dividida em condes e barões, duques e marqueses, senhores de terras, quintas e herdades, senhores de privilégios e regalias sem fim, a par de outros sem leira nem beira, vassalos, rendeiros, pagadores de impostos, de fossados, de jugadas e eiradegas para terem direito a um lugar ao sol. Viu-se dividida em abades, priores e monges, letrados e eruditos, versados nas escrituras e nas obras clássicas, nas sagradas letras e nas letras pagãs, a par de analfabetos que se deleitavam em romarias e festas com o repertório dos jograis, muitos deles insubmissos aos cânones da moral e da ética defendidos, na época, por clérigos e moralistas. Mas também daqueles que cantavam laudas aos senhores ricos e abastados. Viu-se dividida em membros com nomes e apelidos que não cabiam numa lauda de pergaminho e outros que eram conhecidos apenas pelo seu nome e apelido de profissão, como tu próprio: tão simplesmente Lusozé.
O território viu-se cheio de castelos, igrejas e templos decorados, ornamentados e recheados de tudo quanto era luxo e, ao mesmo tempo, de cabanas, tugúrios e casebres, os mais deles, desprovidos daquilo que era essencial à vida condigna de qualquer cidadão.
Tu nasceste no campo, numa aldeia da Beira Alta, filho de um lavrador de basta prole e foste educado segundo os princípios que os Mentores de todos os tempos delinearam para as famílias camponesas. Por isso, em verdade te digo:

«(...) Quantos mais filhos tem o lavrador, mores riquezas conta, quando o príncipe não os empobrece; pois os filhos, desde os mais tenros anos, lhe são profícuos: os mais pequenos conduzem os carneiros ao pasto; os mais crescidos pastoreiam os armentios; e ultimamente, os adultos ajudam o pai na lavoura em quanto a mãe e mais família apresta a comida frugal para seu esposo e caros filhos, que se recolhem fadigados do trabalho diurno
(...)
Volta o pastor com a sua gaita, e canta à família, junta novas canções, que aprendeu nos vizinhos casais. Recolhe-se também o lavrador com a charrua; e os cansados bois vão caminhando com as baixas cervizes, e um passo lento e tardio, sem valer o aguilhão que os pica. Todos os males do trabalho findam com o dia; e as dormideiras que o Sono, por mandado dos deuses, derrama sobre a terra, abafam os tristes cuidados e têm docemente encantada a natureza; cada qual dorme sem se recordar do cansaço do dia seguinte»(1).

Esta educação para a vida edílica camponesa, sublinhando as vantagens resultantes do trabalho agrícola, distendeu-se no tempo através da palavra dos divinos Mentores que, dado o estatuto que ocupavam no corpo social, sabiam, de antemão, serem ouvidos e respeitados. Ainda nos princípios do século XIX chegavam ao povo camponês, através dos púlpitos , essa grande escola do povo, estas palavras aladas, escritas pelo Bispo de Viseu, aquando das Invasões Francesas:

«A agricultura é sem dúvida o manancial fecundo da principal e mais sólida abundância e riqueza dos Povos, por isso não só mereceu, em todos os séculos, a protecção das autoridades publicas mas até presentemente tem a honra de ser um objecto digno da atenção do mais Providente Soberano, o Grande Napoleão, Imperador dos Franceses e Rei da Itália.
Seguindo portanto as instruções e intenções deste incomparável Monarca foi que uma parte do Exmo. General que em Lisboa é seu representante e a sua voz fez saber aos Governadores destes Reinos que havia de excitar aos vassalos Portugueses à proveitosa cultura das terras; e que por outra parte os mesmos Governadores /zelosos também da utilidade geral/ deram a providencia que lhes pareceu adequada a tão justo fim pelo edital de vinte e nove de Dezembro próximo passado; e é bem manifesto que depois disto nada mais se precisava para mover os habitantes de Portugal a empregarem toda a vigilância e cuidado no trabalho e granjeio dos campos ou seja pela consideração do interesse e utilidade que dele pode e deve resultar-lhe; ou seja em continuação da fidelidade e obediência com que sempre cumpriram as respeitáveis determinações dos seus Imperantes.
Mas o sábio Magistrado que com rectidão e notório merecimento preside a esta Comarca comunicou-nos este negócio. E o Nosso pastoral e paternal Ministério /a quem compete promover quanto de nos é igualmente utilidade temporal que a espiritual de Nossos diocesanos/ nos obrigou consequentemente a dirigi-las sobre o mesmo assunto as nossas exortações. Até pois o exercício da Lavoura e de todos os ramos que ela compreende e abrange, aquela que com preferência a todos os outros tráficos humanos a Natureza proporcionou aos primeiros habitantes do Orbe como principal recurso para sustentarem-se e viverem. Nem os descendentes deles conhecerão por muitos séculos outro fundo para as suas riquezas que não fosse a que resultava da criação dos gados e a cultura da terra. E daqui vem que o trabalho rural foi desde o princípio do Mundo a ocupação mais útil e mais própria para fazer sobre a terra a felicidade dos Homens. Alem disto a agricultura é a negociação mais inocente que no mundo se conhece e a menos exposta aos encargos da consciência.
(...)
E para que assim aconteça não só exortamos em Jesus Cristo a todos os Nossos diocesanos mas também mandamos aos RR. Párocos que publiquem aos seus Povos esta Nossa Pastoral que registarão em seus Livros. Ao mesmo tempo lhes advertimos que deverão repetir a publicação dela algumas vezes cada ano bem como administrarem nas suas práticas aos fregueses sobre este importantíssimo ponto de que tanto depende no comum e no particular a subsistência, conservação e prosperidade do Reino. Portanto depois de ser esta registada na Nossa Câmara se passarão as precisas cópias para girarem nos Arciprestados, indo assinadas pelo Nosso R. Dr. Provisor. Dada em Viseu sob o nosso sinal e selo das Nossas Armas aos dezoito de Janeiro de mil oitocentos e oito (...)"(2)

Corgo-Forninho2Sei que, depois de viveres largos anos numa aldeia, trabalhando de sol a sol, sentindo na pele o esforçado trabalho do campo, ascendeste ao mundo das Letras. Correste vilas e cidades, arquivos e Museus e, por isso, te tornaste pouco atreito aos sermões e à literatura feita por escribas que nunca fizeram um calo nas mãos com uma enxada, que nunca pegaram na rabiça de um arado, que nunca sujaram os pés na merda dos porcos, que nunca respiraram o ar pestilento de um curral (será que algum dia eles reflectiram no facto de Ulisses ter escolhido, como interlocutor privilegiado, o seu porqueiro Eumeu quando regressou a Ítaca?), que nunca derreteram uma gota de suor sob um molho de lenha para se aquecerem nos gelados tempos do Inverno. Sei que, ao contrário dos escritores e poetas bucólicos que, sentados numa escrivaninha, através da levíssima pena de pato, fizeram sair da sua imaginação autênticas obras-primas de literatura, a tua experiência de vida te leva a distinguir a realidade da ficção. Na tua "lyra" e no teu "lyrismo" não vibram as notas de tal diapasão.
Sei que, tal como Camilo Castelo Branco, quando se referiu às aldeias do Minho, confrontou o que, embevecidos, os poetas bucólicos diziam delas, com o que elas eram efectivamente, tu fizeste o mesmo em relação às aldeias da Beira Alta e dele bebestes as suas palavras de um só trago:

«A mim me tinham dito os poetas umas coisas que eu não acreditei. Sá de Miranda e Bernardes; Lobo e Fernão Álvares, Camões e Braz Garcia (...) os quatro pontos cardeais tomados de poetas que melodiavam bucólicos louvores da santa vida pastoril, virtudes de zagalas que faziam corar as rosas de puro envergonhadas (3)

Sei que tens a aprendizagem da «escola institucional» e da «escola paralela» de que tanto se fala nestes finais do século XX. A Internet e os audiovisuais são agora os divinos Mentores. Que conheces o papel desempenhado na evolução humana pelas «artes liberais» e pelas «artes servis», tal como foram divididas pelos humanistas de quinhentos. Que não desprezas nenhuma delas e incluis na Cultura o contributo dado por todas. Não foi assim em todo o tempo. Mas os séculos passaram, os conceitos evoluíram, os valores modificaram-se e, por isso, sendo tu originário do campo, sei-te compreensivo para com as gentes camponesas, vida recheada de trabalho, mas também de imaginação, de poder criativo, vida onde a poesia se amassa com suor e lágrimas, tal como o pão negro de cada dia.

Abílio/2014 (reposição de texto publicado há anos no meu velho site) Ver vídeo alojado no Youtube em 2011. Eis o link http://youtu.be/HKc1WoT1oy0
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.