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terça, 04 fevereiro 2014 15:28

MONTEMURO - A TRANSUMÂNCIA

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O meu amigo pessoal e virtual no Facebook, Albino Poças, lembrou-se de trazer ao seu mural a questão da TRANSUMÂNCIA ligada à serra do Montemuro. Foi à Internet, fez pesquisa e, por esse meio, procurou dar o seu contributo ao conhecimento do fenómeno que durou séculos e que o tempo, qual cordel onde se estende a história humana, a sua economia, organização política e social, etc, deu por finda na década de 90 do século XX.
Baseando-se em material recolhido naquele «mare magnum» de informação, alude ao fenómeno histórico da deslocação dos gados em todos os tempos e lugares, para se centrar na transumância dos gados da Serra da Estrela para o Montemuro e vice-versa, acompanhados dos seus pastores e dos seus cães.

Rebanho 1

Acontece que, na serra do Montemuro, havia uma espécie de «transumância» natural, feita pelo gado bovino, isto é, deslocava-se nem sempre acompanhado pelos seus donos. E quem o diz é Rui Fernandes, no seu livro escrito no século XVI, com o título que abrevio «Tratador de Lonas e Bordates» de Lamego, falando das gentes e animais do Montemuro. Ali diz que de Maio a Setembro as vacas pastam na serra e de Setembro a Maio pastam na Gândara, junto do mar, entre Aveiro e Coimbra, sendo certo que, se os donos as não acompanham  «elas são já tão sentidas no tempo que se o tempo é quente muitas se vêm por si e se o tempo é frio, por si se vão». Foi isso que escrevi há um bom par de anos e consta no meu site antigo no botão «MEMÓRIAS» a propósito de um animal (a «Vaca Roxa») que ajudou a lavrar as terras de milho e de centeio com que me alimentei na juventude. 
Este conhecimento levou-me a perguntar aos criadores do gado arouquês que frequentam a «Festa das Colheitas» que se tem vindo a realizar, em Castro Daire, de há uns anos a esta parte, evento de que tenho dado amplo conhecimento através de vídeos alojados no Youtube, levou-me a perguntar-lhes, dizia eu, se conheciam isso. Que não. Não conheciam, mas ainda há criadores na vertente poente do Montemuro que soltam as suas manadas para a serra e elas retornam aos currais sem ser preciso ir recolhê-las.

Relativamente à transumância dos gados da Serra da Estrela para o Montemuro e vice-versa, de passagem obrigatória pela vila de Castro Daire, deixei escrito no meu livro «Ester, Pegadas no Tempo», página 34, editando no ano 2007, a transcrição do documento mais antigo que conheço sobre o assunto. Trata-se das «Memórias Paroquiais de 1758», relativas à Freguesia de Ester, onde o respectivo Pároco escreve:

«Nos montes pastam e se criam gados, como são vacas, cabras, carneiros e ovelhas. E ainda do Alentejo vêm manadas de gado, ovelhas e cabras pastar a eles. Em alguns meses do ano, como são Junho, Agosto e Setembro, feito por estipêndio e preço que ajustam os pastores alentejanos com os moradores de Faifa. E por tradição antiquíssima consta haver ajuste por ordem ao que toca ao dízimo, de pagarem, como pagam, à Igreja Matriz um carneiro, ou 600 reis por ele e 3.200 reis em dinheiro».

Admitindo que o Pároco julgasse que a Serra da Estrela fazia parte do Alentejo, ressalta o facto de sabermos o preço de um carneiro naquela época (600 reis) e que a Igreja Matriz de Ester não só recebia um em cada dez do respectivo rebanho, mas também 3.200 reis, em metal sonante. 
E não se pense que o rendimentos dos gados era coisa de somenos e só dizia respeito à freguesia de Ester, sítio de Faifa. Num litígio judicial que existiu entre as freguesias de Pinheiro e Ester, entre os anos 1861-1864, a propósito do usufruto de determinados baldios serranos, nomeadamente, Ladário, Martim, Cebolim, Seixo Branco, Pedras Negras, Marca dos Campos Cabreiros, cada uma das freguesias reivindicava para si esse direito, litígio de que dou contra nesse meu livro e dele transcrevo a parte das alegações da freguesia de Ester. Assim:

«Os autores, moradores de Ester estão de posse de mais de um, cinco, dez, trinta, cem anos e desde tempo imemorial gozarem e usufruírem todos aqueles indicados sítios e montados desde o cume da serra a que pertencem os ditos sítios, águas vertentes para o poente, para cujo lado fica a freguesia de Ester, outrora apascentando por todos eles os seus gados, cortando estrumes e lenhas, fazendo carvão (…) sem jamais serem perturbados por pessoa alguma e menos pelos moradores da Póvoa e do Moção, ou algum da freguesia de Pinheiro (…) e até porque, como refere no quinto item, os bens da freguesia de Pinheiro são abundantes de grandes matas e pastagens e tanto que os arrendam aos pastores que vêm da Serra da Estrela com grandes multidões de gado miúdo de cujo produto dizem fazer um grande pecúlio que têm junto para sustentar o seu capricho contra a freguesia de Ester (…)».

Vê-se assim, quanto pesava nos costumes, na economia local e nas contendas judiciais entre vizinhos, a transumância dos gados referida em 1758Cabra-leite
O homem, vivendo da agricultura e da pastorícia, século após século, com o evoluir dos tempos, não sendo já a terra a única fonte de riqueza e de vida, libertou-se dessa escravidão. As terras ficaram de monte, os rebanhos desapareceram e com eles foi-se o «folclore» que os rodeava, envolvido de saudosismo por parte de quem, na serra, nunca apanhou os frios e a chuvas de Inverno, por quem na serra, nunca teve a experiência de despertar o rebanho «acarrado» numa sombra, nas horas do calor. Por quem nunca aprendeu a tirar o leite a uma cabra para o púcaro de alumínio, recipiente que pastorinhos ou pastorinhas levavam para a serra e, assim, tratarem sozinhos do seu sustento. 
Voltar à economia agro-pastoril, nos moldes em que se fazia, não é possível nos tempos de hoje. A última vigia que fotografei na serra do Montemuro foi há poucos anos e era de Alhões. Só existia porque os proprietários eram subsidiadospelo Estado, um tanto por cabeça. Rendimento? Só a carne. A lã já não é procurada.
Tratei disso num artigo que publiquei no meu site com o título «Montemuro – A tradição e a Modernidade» no botão «NOVIDADES», onde aludo também ao texto das «Memórias Paroquiais de 1758». Eis um pedacinho do texto que, a propósito, lá deixei e lá continua:

 «Estes pastores são uns autênticos gigantes a par desses outros gigantes, os geradores eólicos a lembrarem o Polifemo, o gigante da Odisseia de Homero, que também ele pastor.
E, vendo bem coisas, deixando as éclogas e romances pastoris que ilustram a literatura portuguesa, o que foram os pastores senão gigantes ao logo da História? Não foram eles que alimentaram o mundo, que lhe forneceram carne, leite e queijos, não foram eles que forneceram as lãs para o mundo se vestir? Em meados do século XX não se vestia o serrano de burel, calças de burel, coletes de burel, casacos de burel, capucha de burel, tudo de burel, como se estivéssemos em plena Idade Média?
Ptúegas

 Uns heróis, uns gigantes, os pastores que, sempre atentos aos rebanhos e aos lobos, sofriam na serra as calmas do Verão, os frios do Inverno.

É isso. Fora das éclogas e dos romances pastoris que enredam zagais e zagalas em fantasias amorosas, posta de lado a poesia e a literatura, não tarda que «sob o manto diáfano da fantasia» logo vejamos a «nudez fria da verdade». E a verdade, nua e crua, impõe trabalhos, sacrifício, obrigações a cumprir faça sol ou cai chuva, alimentação frugal que, nos fins da Primavera e princípio do Verão,   inclui sempre as pútegas na sua dieta alimentar. Um petisco natural que se esconde nos sargaçais, mas que não escapa ao olho de lince de qualquer o pastor ou serrano experimentado».

 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.