PRIMEIRA PARTE
Deixei de ver há muito os programas deste Professor pelas mesmas razões que o Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, Reis Torgal, lhe apontou, olhos nos olhos, no programa da Maria Elisa, «Os Grandes Portugueses», afirmando não gostar da deturpação, da mistificação da História, a História transformada em «estória».
Mas, como se tratava de um programa sobre o concelho de Castro Daire, onde tenho dedicado muito tempo à investigação histórica, traduzida nos trabalhos publicados, lá me dispus a vê-lo. Suspeitei que os telefonemas traziam «água no bico», e, por isso, não quis desiludir quem me acicatou a dar a minha opinião sobre o assunto. E começo por dizer que se os telefonemas «traziam água no bico», como choveu muito nos dias das filmagens, digo, desde já, que o Professor Hermano Saraiva, certamente influenciado pelas condições atmosféricas do dia, fartou-se de meter «água» no programa e, algo do que disse e mostrou, está mais conforme com a «aldeia da água» que visitou do que com a História concelhia que se pretende rigorosa e formativa. Mas vamos por partes:
1 - Do monte do «Calvário» sobranceiro à vila, o Professor deu-nos uma panorâmica do burgo «histórico» e realçou a sua forma «oval», tipo «castro». De seguida deslocou-se ao «Museu Municipal» e disse que ele não «tinha nada», que «era muito pobre», pois os «antiquários» é que têm dado conta das peças descobertas. Seria bom que elas fossem ali preservadas. Quedou-se junto à réplica de uma «inscrição» relativa ao «sacrifício» que os romanos fizeram «aqui» a uma «divindade indígena», fazendo uso da tradução feita pelo arqueólogo Inês Vaz (o seu a seu dono) para dizer que se tratava de «Iovea». Devia ter dito (mas não disse) que o «documento original» se encontra a alguns quilómetros de distância da vila, em «Lamas de Moledo». E fez o mesmo quando se deslocou àquele sítio para filmar esse documento, induzindo o telespectador a pensar que tudo isto está na vila de Castro Daire.
2 - Feito isto discorre sobre «castros» e, enquanto fala, mostra imagens da «civilização castreja»: muralhas, ruínas de casas redondas, sitas nos altos dos montes. E ilustra o discurso com adornos em ouro dos seus habitantes, com realce para os «torques», braceletes e arrecadas, de outros lugares e museus.
Fiquei embasbacado. Eu, que tenho calcorreado as serras e os montes do concelho de Castro Daire, que tenho pisado todas as «ruínas castrejas» que chegaram até nós adentro dos limites do concelho, que tive o cuidado de as identificar no site «www.trilhos-serranos.com», perguntei-me onde é que o Professor tinha desencantado aquelas muralhas, aquelas ruínas, aquele ouro todo. E não fui só eu. No dia seguinte, muita gente me perguntou em que parte do concelho existia tal riqueza arqueológica. Respondi que não existia cá coisa nenhuma daquelas. O professor Saraiva, falando em Castro Daire e sobre Castro Daire, pondo como pano de fundo «ruínas arqueológicas minhotas» sem o dizer, induziu o telespectador no erro de cuidar que tudo isto era riqueza do concelho a que o programa se reportava. Foi uma autêntica manipulação informativa, uma mistificação descarada da documentação histórica, a «estória» no seu melhor. O rigor e o respeito pela História e pelo telespectador exige mais.
Verdade, verdade, foi quando se deslocou às «Muralhas do Montemuro» e se deixou filmar em cima delas, mau grado a ventania e o frio infernal do dia. Essas sim, essas e as demais que eu identifiquei no site acima referido, é que são nossas, verdadeiramente nossas. E orgulho-me de poder dizer que os responsáveis políticos e culturais locais só as descobriram, só as viram, só as pisaram, depois das minhas crónicas nos jornais a apelar para a sua preservação e estudo.
3 - Seguiu-se a visita à «Igreja da Ermida de Riba-Paiva». Sem entrar no templo, referiu o estilo e o tempo da sua construção ? século XII - aludiu às classes sociais poderosas a quem se deviam monumentos como aquele, e manteve a explicação tradicional e simples de que as «siglas» eram a «marca» dos pedreiros que fizeram a pedras e estava relacionada com o «salário». Também aqui se exigia mais rigor e aprofundamento na explicação. Ora veja-se o que dizem outros autores baseados em investigações recentes:
Chegada a fase de assentar a pedra o artista gravava nela a sua «marca particular, geralmente um desenho simples e geométrico, como uma estrela ou uma cruz. Um bloco acabado levava normalmente três marcas diferentes, mostrando quem a cortara, de que pedreira viera e onde devia ser colocado» (Allen, et al, 1993:146), afirmação diferente da de Hermano Saraiva, mas que também ela não resistente à crítica atenta de quem ali chega e entra e observa o edifício por fora e por dentro: «muitas pedras têm uma só sigla, bastantes têm duas acopladas e muitas outras não têm nenhuma», o que faz com estas últimas esvaziem de sentido a relação que é feita da «sigla» com a identificação do pedreiro e com o «salário», pois não é que crer que muitos pedreiros trabalhassem de borla. Tudo isto pode ser lido no livro «Mosteiro da Ermida», editado em 2001, com patrocínio da «Casa Museu Maria da Fontinha», museu estranhamente excluído d? «A Alma da Gente», apesar de estar dentro dos limites do concelho.
4 - Seguiu-se a visita à «Carvalha do Presépio». Estou a ver o Professor ali mesmo, ao lado dela, a dizer que se trata de «uma árvore com cerca de mil anos». Com todo respeito que as pessoas idade avançada me merecem, deixem-me dizer que o Professor, falando assim, ali, nas margens do rio Paivó, com a água que meteu na explicação, fez aumentar o caudal do rio Paiva. Uma «árvore com cerca de mil anos»? Que árvore? Aquela, filmada e fotografada, leva ao engano qualquer observador distante, como levou, seguramente, o telespectador do Algarve ou do Minho. Mas, dizer isso ali mesmo ao lado do «monumento», sem ver que se trata de uma «árvore que ainda não atingiu os 20 anos de idade», é demais. A árvore que ali está foi plantada no interior lorcado da velha «Carvalha do Presépio» que caiu em 1987 e cuja queda mereceu uma crónica por mim assinada na imprensa local e no Boletim Municipal. O Professor filmou e discorreu sobre um «monumento» que não existe e, também aqui, levou ao engano quem ignora a realidade local, histórica ou vegetal. Mesmo assim não deixará de haver quem lhe bata palmas. Talvez faça isso o actual Presidente da Junta de Freguesia, António Vicente, a quem sugeri, há bastante tempo, que mandasse colocar um painel de azulejos junto da «velha» e da «nova» carvalha do Prersépio, com uma fotografia e uma legenda esclarecedora da «queda» do velho monumento e da «plantação» do novo. Se isso tivesse sido feito, nem o Professor Saraiva enganava agora os seus «fãs» e acríticos seguidores, nem eu tinha necessidade de me insurgir contra todas estas falsidades e mistificações.
O Professor disse que os habitantes da «civilização castreja» usavam «torques» para «não andarem cabisbaixos», para não «baixarem o pescoço», e eu, como seu descendente, não preciso de qualquer «torque» para manter a cabeça levantada e, em defesa da Histórica que conheço, apresentar as minhas discordâncias com tão ilustre «comunicador», diferentemente daqueles que com «torques» ou sem «torques», por simpatia, ignorância ou bajulação, «baixam a cabeça» a tudo e todos.
5 - E seguiu-se Mouramorta. Disse não ter ido lá por causa da «lenda», uma «lenda pobre». Teria dito melhor, com mais rigor e objectividade a «versão de uma das lendas» que correm sobre Mouramorta. Se aquela que referiu é a versão de uma «lenda pobre» foi porque ele não investigou, não leu ou não quis referir-se à versão de uma «lenda muito mais rica», inserta numa obra patrocinada pela Câmara Municipal», em 2004, de seu título «LENDAS DE CÁ COISAS DO ALÉM».
Mas lendas são lendas. O que gostei de saber foi que «havia um foral antigo» onde se estipulava o «foro» pago a Egas Moniz pelos camponeses da terra. E referiu umas tantas varas de bragal, uns tantos moios de pão, ovos, presunto etc. e tal. Aqui valeu a pena eu ver o programa. É que nunca tive acesso ao tal «foral» e o documento que conheço cujo conteúdo coincide com as afirmações feitas pelo Professor consta das «Inquirições de D. Afonso III», texto que me apresso a transcrever não vá ser eu acusado de ser outro mistificador da História:
«Interrogatus, quod forum faciunt Regi, dixit, quod dant Regi anuatim .viij modius de pane medietatem de centeno et aliam medietatem de milio, et de lino .xvj affusaes adubado, et .xxxª ova et unam freaman, que valeat .iij soldos, et uma sexteiro de pane, et dant de quoliber focatwe unum corazil pst Mathale, si habuerit porcum usque ad diem Santi Martini, et, si nom habuerit porcum, debent dare unam gallinam et taligam de centeno com corazil sive cum gallina».
6 - Depois desceu às «Termas do Carvalhal». Falou do seu interesse turístico, da profundidade dos seus furos, das qualidades da água. Foi ao coração da nossa «aldeia da água» e, portanto, nada há a acrescentar. Depois foi ao «Artesanato», realçou a «coroça», a «palhoça» contra a água e o «capote» de burel, dito «alentejano», mas também em uso nestas terras, contra os frios. E voltou à vila para fazer a «publicidade» ligada ao seu «desenvolvimento», ao seu «progressismo» e ao seu «crescimento», graças, não à «indústria», não ao «comércio», não aos «serviços», mas sim às suas «gentes». Rematou bem. Pois também é por «essas gentes» que eu, no exercício da minha cidadania, não pude deixar de apontar todas estas «inverdades» e «deturpações» na presente crónica. Bem gostaria que fosse outra.
As individualidades locais que fazem parte da ficha técnica do filme deviam envergonhar-se pelo mau serviço que prestaram ao concelho e à sua História. Honro-me de não fazer parte dessa «capelinha».
SEGUNDA PARTE