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sábado, 27 abril 2024 18:32

CASTRO DAIRE N A RTP2 NO PROGRAMA «A ALMA DA GENTE» DO PROFESSOR JOSÉ HARMANO SARAIVA (2006)

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CASTRO DAIRE NA «RTP2» PROGRAMA DE H. SARAIVA «A ALMA DA GENTE»

 No  dia 12 de novembro, aí pelas 20 horas, três pessoas amigas alertaram-me, via telefone, para o programa televisivo «A ALMA DA GENTE» do Professor José Hermano Saraiva.

 

PRIMEIRA PARTE

Deixei de ver há muito os programas deste Professor pelas mesmas razões que o  Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, Reis Torgal, lhe apontou, olhos nos olhos, no programa  da Maria Elisa, «Os Grandes  Portugueses», afirmando não gostar da deturpação, da mistificação da História, a História transformada em «estória».

Mas, como se tratava de um programa sobre o concelho de Castro Daire, onde tenho dedicado muito tempo à investigação histórica, traduzida nos trabalhos publicados, lá me dispus a vê-lo. Suspeitei que os telefonemas traziam «água no bico», e, por isso, não quis desiludir quem me acicatou a dar a minha opinião sobre o assunto. E começo por dizer que se os telefonemas «traziam água no bico», como choveu muito nos dias das filmagens, digo, desde já, que o Professor Hermano Saraiva, certamente influenciado pelas condições atmosféricas do dia, fartou-se de meter «água» no programa e, algo do que disse e mostrou, está mais conforme com a «aldeia da água» que visitou do que com a História concelhia que se pretende rigorosa e formativa. Mas vamos por partes:

1 - Do monte do «Calvário» sobranceiro à vila, o Professor deu-nos uma panorâmica do burgo «histórico» e realçou a sua forma «oval», tipo «castro». De seguida deslocou-se ao «Museu Municipal» e disse que ele não «tinha nada», que «era muito pobre», pois os «antiquários» é que têm dado conta das peças descobertas. Seria bom que elas fossem ali preservadas. Quedou-se junto à réplica de uma «inscrição» relativa ao «sacrifício» que os romanos fizeram «aqui» a uma «divindade indígena», fazendo uso da tradução feita pelo arqueólogo Inês Vaz (o seu a seu dono) para dizer que se tratava de «Iovea». Devia ter dito (mas não disse) que o «documento original» se encontra a alguns quilómetros de distância da vila, em «Lamas de Moledo». E fez o mesmo quando se deslocou àquele sítio para filmar esse documento, induzindo o telespectador a pensar que tudo isto está na vila de Castro Daire.

2 - Feito isto discorre sobre «castros» e, enquanto fala, mostra imagens da «civilização castreja»: muralhas, ruínas de casas redondas, sitas nos altos dos montes. E ilustra o discurso com adornos em ouro dos seus  habitantes, com realce para os «torques», braceletes e arrecadas, de outros lugares e museus.

Fiquei embasbacado. Eu, que tenho calcorreado as serras e os montes do concelho de Castro Daire, que tenho pisado todas as «ruínas castrejas» que chegaram até nós adentro dos limites do concelho, que tive o cuidado de as identificar no site «www.trilhos-serranos.com», perguntei-me onde é que o Professor tinha desencantado aquelas muralhas, aquelas ruínas, aquele ouro todo. E não fui só eu. No dia seguinte, muita gente me perguntou em que parte do concelho existia tal riqueza arqueológica. Respondi que não existia cá coisa nenhuma daquelas. O professor Saraiva, falando em Castro Daire e sobre Castro Daire, pondo como pano de fundo «ruínas arqueológicas minhotas» sem o dizer, induziu o telespectador no erro de cuidar que tudo isto era riqueza do concelho a que o programa se reportava. Foi uma autêntica manipulação informativa, uma mistificação descarada da documentação histórica, a «estória» no seu melhor. O rigor e o respeito pela História e pelo telespectador exige mais.

Verdade, verdade, foi quando se deslocou às «Muralhas do Montemuro» e se deixou filmar em cima delas, mau grado a ventania e o frio infernal do dia. Essas sim, essas e as demais que eu identifiquei no site acima referido, é que são nossas, verdadeiramente nossas. E orgulho-me de poder dizer que os responsáveis políticos e culturais locais só as descobriram, só as viram, só as pisaram, depois das minhas crónicas nos jornais a apelar para a sua preservação e estudo.

3 - Seguiu-se a visita à «Igreja da Ermida de Riba-Paiva». Sem entrar no templo, referiu o estilo e o tempo da sua construção ? século XII -  aludiu às classes sociais poderosas a quem se deviam monumentos como aquele, e manteve a explicação tradicional e simples de que as «siglas» eram a «marca» dos pedreiros que fizeram a pedras e estava relacionada com o «salário». Também aqui se exigia mais rigor e aprofundamento na explicação. Ora veja-se o que dizem outros autores baseados em investigações recentes:

Chegada a fase de assentar a pedra o artista gravava nela a sua «marca particular, geralmente um desenho simples e geométrico, como uma estrela ou uma cruz. Um bloco acabado levava normalmente três marcas diferentes, mostrando quem a cortara, de que pedreira viera e onde devia ser colocado» (Allen, et al, 1993:146), afirmação diferente da de Hermano Saraiva, mas que também ela não resistente à crítica atenta de quem ali chega e entra e observa o edifício por fora e por dentro: «muitas pedras têm uma só sigla, bastantes têm duas acopladas e muitas outras não têm nenhuma», o que faz com estas últimas esvaziem de sentido a relação que é feita da «sigla» com a identificação do pedreiro e com o «salário», pois não é que crer que muitos pedreiros trabalhassem de borla. Tudo isto pode ser lido no livro «Mosteiro da Ermida», editado em 2001, com patrocínio da «Casa Museu Maria da Fontinha», museu estranhamente excluído d? «A Alma da Gente», apesar de estar dentro dos limites do concelho.

4 - Seguiu-se a visita à «Carvalha do Presépio». Estou a ver o Professor ali mesmo, ao lado dela, a dizer que se trata de «uma árvore com cerca de mil anos». Com todo respeito que as pessoas idade avançada me merecem, deixem-me dizer que o Professor, falando assim, ali, nas margens do rio Paivó, com a água que meteu na explicação, fez aumentar o caudal do rio Paiva. Uma «árvore com cerca de mil anos»? Que árvore? Aquela, filmada e fotografada, leva ao engano qualquer observador distante, como levou, seguramente, o telespectador do Algarve ou do Minho. Mas, dizer isso ali mesmo ao lado do «monumento», sem ver que se trata de uma «árvore que ainda não atingiu os 20 anos de idade», é demais. A árvore que ali está foi plantada no interior lorcado da velha «Carvalha do Presépio» que caiu em 1987 e cuja queda mereceu uma crónica por mim assinada na imprensa local e no Boletim Municipal. O Professor filmou e discorreu sobre um «monumento» que não existe e, também aqui, levou ao engano quem ignora a realidade local, histórica ou vegetal. Mesmo assim não deixará de haver quem lhe bata palmas. Talvez faça isso o actual Presidente da Junta de Freguesia, António Vicente, a quem sugeri, há bastante tempo, que mandasse colocar um painel de azulejos junto da «velha» e da «nova» carvalha do Prersépio, com uma fotografia e uma legenda esclarecedora da «queda» do velho monumento e da «plantação» do novo. Se isso tivesse sido feito, nem o Professor Saraiva enganava agora os seus «fãs» e acríticos seguidores, nem eu tinha necessidade de me insurgir contra todas estas falsidades e mistificações.

sariava-1O Professor disse que os habitantes da «civilização castreja» usavam «torques» para «não andarem cabisbaixos», para não «baixarem o pescoço», e eu, como seu descendente, não preciso de qualquer «torque» para manter a cabeça levantada e, em defesa da Histórica que conheço, apresentar as minhas discordâncias com tão ilustre «comunicador», diferentemente daqueles que com «torques» ou sem «torques», por simpatia, ignorância ou bajulação, «baixam a cabeça»  a tudo e todos.

5 - E seguiu-se Mouramorta. Disse não ter ido lá por causa da «lenda», uma «lenda pobre». Teria dito melhor, com mais rigor e objectividade a «versão de uma das lendas» que correm sobre Mouramorta. Se aquela que referiu é a versão de uma «lenda pobre» foi porque ele não investigou, não leu ou não quis referir-se à versão de uma «lenda muito mais rica», inserta numa obra patrocinada pela Câmara Municipal», em 2004, de seu título «LENDAS DE CÁ COISAS DO ALÉM».

Mas lendas são lendas. O que gostei de saber foi que «havia um foral antigo» onde se estipulava o «foro» pago a Egas Moniz pelos camponeses da terra. E referiu umas tantas varas de bragal, uns  tantos moios de pão, ovospresunto etc. e tal. Aqui valeu a pena eu ver o programa. É que nunca tive acesso ao tal «foral» e o documento que conheço cujo conteúdo coincide com as afirmações feitas pelo Professor consta das «Inquirições de D. Afonso III», texto que me apresso a transcrever não vá ser eu acusado de ser outro mistificador da História:

«Interrogatus, quod forum faciunt Regi, dixit, quod dant Regi anuatim .viij modius de pane medietatem de centeno et aliam medietatem de milio, et de lino .xvj affusaes adubado, et .xxxª ova et unam freaman, que valeat .iij soldos, et uma sexteiro de pane, et dant de quoliber focatwe unum corazil pst Mathale, si habuerit porcum usque ad diem Santi Martini, et, si nom habuerit porcum, debent dare unam gallinam et taligam de centeno com corazil sive cum gallina».

6 - Depois desceu às «Termas do Carvalhal». Falou do seu interesse turístico, da profundidade dos seus furos, das qualidades da água. Foi ao coração da nossa «aldeia da água» e, portanto, nada há a acrescentar. Depois foi ao «Artesanato», realçou a «coroça», a «palhoça» contra a água e o «capote» de burel, dito «alentejano», mas também em uso nestas terras, contra os frios. E voltou à vila para fazer a «publicidade» ligada ao seu «desenvolvimento», ao seu «progressismo» e ao seu «crescimento», graças, não à «indústria», não ao «comércio», não aos «serviços», mas sim às suas «gentes». Rematou bem. Pois também é por «essas gentes» que eu, no exercício da minha cidadania, não pude deixar de apontar todas estas «inverdades» e «deturpações» na presente crónica. Bem gostaria que fosse outra.

As individualidades locais que fazem parte da ficha técnica do filme  deviam envergonhar-se pelo mau serviço que prestaram ao concelho e à sua História. Honro-me de não fazer parte dessa «capelinha».

 

SEGUNDA PARTE

 

Depois das considerações que teci na crónica anterior ao programa cirado que foi para o ar  na «2» no dia 12 de novembro de 2006, fazendo uso do motor de busca GOOGLE, eis que na entrada «rtp.pt» vejo aquilo que o Professor disse sobre Castro Daire. Isso obriga-me, por dever de ofício, a voltar  ao assunto e, ficando-me pela Carvalha do Presépio, aqui deixo as  suas palavras:

«Um dos monumentos mais extraordinários, mais invulgares aqui de Castro Daire é isto que estão a ver, é uma árvore, é apenas uma árvore. Bom, mas é uma árvore que tem cerca de mil anos, tem cerca de mil anos, é enorme, lá dentro faz quase uma casa. Bom, não sei desde quando começaram aqui a fazer a gruta do menino Jesus, um presépio. Era dentro da árvore, dentro da velha carvalha, que se fazia o presépio, chamaram a isto a carvalha do presépio, e as freiras para fazerem o culto ao menino Jesus fizeram junto dela uma capela, a capela da Senhora do Presépio, e no altar-mor colocaram as figuras do presépio, naturalmente Nossa Senhora, São José, o menino, o burro, e a vaca, é um conjunto de imagens raro e duma grande beleza, são peças do século XVIII. Ao lado há outra imagem que é surpreendente, é a Senhora do Bom Parto. Representa a mãe, deitada ainda no leito onde acabou de ter a criança e já com o menino ao colo, a mostrar o seu menino. É uma imagem surpreendente porque, é claro, segundo a tradição cristã o menino Jesus não nasceu numa cama como nascem os outros meninos todos, o menino Jesus nasceu num estábulo, em Belém, isso é que é o presépio. Aliás presépio quer dizer isso mesmo, é a manjedoura onde os animais comem, mas ali não! Ali aquele menino tem direito a dormir numa cama, uma cama que está com os seus lençóis, os seus cobertores e a mãe orgulhosa mostra o seu menino, é realmente uma Nossa Senhora profundamente humana, é uma Nossa Senhora igual, igual às mães que nós tivemos».(Google -«rtp.pt».

            Lamento ter de dizê-lo, mas o Professor Hermano Saraiva enganou, deliberadamente, os telespectadores. A árvore sobre a qual discorreu não existe, como já documentei na crónica anterior. Mas já que o conteúdo do «Programa» se encontra disponível na Net, aqui estou novamente, desta vez para deixar à consideração dos «navegantes» o resumo da crónica que sob o título «CASTRO DAIRE ESTÁ DE LUTO: A Carvalha do Presépio caiu», escrevi em 1987, no jornal «Lamego Hoje» e no «Bolteim Municipal de Castro Daire»:

«O monumento natural de que se orgulharam gerações e gerações de castrenses ruiu. Não resistiu ao vendaval ? o maior do século, segundo os Serviços Meteorológicos ? que assolou o País nos dias 14 e 15 de Outubro. Na tarde de quinta-feira jazia por terra retorcida, depois de século a dominar, altiva e senhorial, o largo da Capela do Presépio, na vizinha povoação do Mosteiro.

Há quem a ligue ao tempo da fundação da Nacionalidade, coeva dos Templários e atribua a estes a fundação, ali, de um mosteiro, topónimo mantido e alargado à povoação.

Exemplar raro, porte assinalável ? uma dezena de metros de perímetro -  viu a sua altura ?17 metros ? reduzida pelo aterro que preencheu a área interior do murete que foi levantado à sua volta com o objectivo de prolongar-lhe a vida, resguardando-a do encosto dos carros, espias de tendas e barracas, nos dias de romaria.

De tronco oco desde há muito, algumas  fendas a rasgar-lhe o ventre rugoso mostravam um corpo sem alma e sem futuro. Se por milagre se mantinha de pé, por milagre caiu sem beliscar o templo, como dizem os crentes e devotos.

saraiva Silenciosa e altaneira no seu posto (...) viu maleitas, preces e curas. Testemunhou vidas atribuladas de miséria, vidas abastadas de fortuna. Descortinou manhas do poder e identificou os artifícios dos seus detentores para  conservá-lo. Viu valores ameaçados e a implantação de instituições para suster a ameaça. (...) viu em 1870 os povos de Castro Daire amotinados por causa das Matrizes (...) viu em 1871 Saldanha passar por Castro Daire e hospedar-se na Casa brasonada dos Aguilares. Não lhe passou despercebida a passagem da Rainha D. Amélia pela vila a caminho dos Banhos de S. Pedro do sul. Viu D. Carlos hospedar-se no palacete Pinto Bastos em 1907. Viu cair a Monarquia e nascer a República e chegar o Estado Novo.

Quase sem forças, cansada de ver tantas injustiças não quis morrer sem ver implantada a Democracia e com ela o vigor tomado pelo Poder Local, levando luz e estradas às aldeias, trazendo à vila as crianças a conhecer o mundo, através da escola... mais eis que sucumbe.

O património natural de Castro Daire, em particular, e do País em geral, ficou mais pobre. Pasto de lareiras e térmitas, do gigante que desafiou os tempos restam unicamente os postais (agora transformados em documentos) que divulgaram a sua imagem e bem assim o painel de azulejos datado de 1957, que embeleza a Fonte dos Peixes na vila, onde, em boa hora, foi retratada pela fábrica de cerâmica «Aleluia» de Aveiro.

Os sinos dobram pela «Carvalha do Presépio», orgulho de muitos castrenses quanto mais não fosse por pensarem que, possuíndo-a e os outros não, eram os maiores e os únicos. Sublimação, talvez, do estado de espírito resultante da pequenez que os rodeia, o mesquinho quotidiano em que vegetam, o microfúndio que possuem e trabalham, o espaço cultural restrito em que se movem».(cf. Boletim Municipal, nº 10/Novembro/1987)

Mais comentários para quê? A Carvalha «nova», que hoje se encontra no mesmo sítio, foi plantada pouco tempo depois da queda da «velha» Carvalha e não tem nada a ver com o «discurso» que o Professor Hermano Saraiva proferiu, frente às câmaras da TV, ali mesmo, junto dela.  Lamento que um canal público da TV se preste a tão descarada manipulação da informação e da História. 

NOTA: texto publicado em 2007 no velho site com extensão«.com» migou hoje mesmo para este com extensão «.pt» com as mesmas fotografias. Ver link  https://youtu.be/n_rJ56fy72E?si=NA5apOKHT6tR3hHt

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.