SABER LIVRESCO E SABER DO POVO
Nestas minhas deambulações pelas montanhas e vales ondulantes das terras beirãs, do Caramulo, Arada, Freita, S. Macário e Montemuro, neste meu afã de buscar conhecimentos nos livros e dora deles, impresso no saber empírico das gentes do povo, sem livros ou de letras grossas e também no “mare magnum” da Internet, em busca do GADO PAIVOTO, mal andaria se omitisse o meritório trabalho desenvolvido pela ANCRA (Associação Nacional de Criadores de Raça Arouquesa”) com sede em Cinfães, ali mesmo do outro lado da serra, onde o Montemuro beija o rio Douro, aquela raça que, a partir do “Recenseamento Geral dos Gados”, feito por Silvestre Bernardo de Lima, em 1870, aparece com a designação de “arouquês-paivoto” de “grande porte e perna alta”, assim “conhecido no distrito do Porto”, afirmação em desconformidade com o GADO BOVINO de “pequeno porte” e “pouco peso”, “amarelo” e “serrano”, conhecido nas aldeias montemuranas pela designação de “PAIVOTO”. Esta última mais consentãnea com a descrição deixada por Frei Bernardo de Brito e Rui Fernandes, autores do século XVI, como já vimos.
Metido nisto, pernas no terreno, decidido a “descalçar a bota” que me fazia calos de dúvidas, prossigo nas minhas interrogações, mas não sem antes botar mão ao texto plantado na Wikipedia, onde, com erudição bastante, se explicam as remotas origens do GADO AROUQUÊS.
Assim, com a devida vénia aos autores do texto e das três primeiras fotografias, fiz “copy/paste”, um método hoje muito usado por todos aqueles que se dedicam à investigação sentados a uma secretária, frente a um computador onde adquirem e debitam conhecimentos sem pisarem um sargaço, sem tombarem uma giesta, uma urgueira e sem receberem a picada de um rojo ou de uma silva, sempre em posição de defenderem os seus domínios naturais. Eis, pois, a minha arfante e suada tarefa:
PRIMEIRA PARTE
(GADO AROUQUÊS)
“Origem e História”
“O aparecimento desta raça perde-se no tempo, alguns autores apontam para a sua possível origem Celta, através do cruzamento dos troncos bos tauros aquitânicos, bos taurus ibericus e bos taurus atlanticus. Estes troncos originaram do cruzamento e desenvolvimento do primitivo bos primigenius.
As primeiras referências à raça Arouquesa surgem num relatório da Sociedade Agrícola do Porto, de 1856, onde constam imensos elogios à grande capacidade de trabalho destes animais nas zonas declivosas do Douro Vinhateiro, assim como a sua capacidade de engorda.
Silvestre Bernardo de Lima, na data de 1858 começa a caracterizar a raça Arouquesa, distinguindo 4 ecótipos. Nas subsequentes 5 décadas, diversos autores definem as características da raça, chegando a consenso em relação aos ecótipos. De 4 inicialmente caracterizados por Bernardo de Lima, distinguiram apenas 3 ecótipos:
– os arouqueses de S. Pedro do Sul ou sulanos, o ecótipo mais abundante em indivíduos;
– os paivotos;
– os caramuleiros.
Em 1949, Miranda do Vale classificou a raça Arouquesa como um grupo polimorfo, com uma excelente aptidão para a produção de leite, visando o elevado teor butiroso para a produção de manteiga e produção de carne, assinalando que “é no talho que o gado arouquês melhor memória tem deixado”. (in «ANCRA» - Internet)
SEGUNDA PARTE
Curiosa omissão esta. Nem Silvestre Bernardo de Lima, no século XIX, nem os autores do texto precedente se referiram às “vacas bravas” transumantes, gado de “pequeno porte”, de “ pouco peso”, “ligeiro no correr e no ferir” a ponto de nenhum “cavaleiro o meter em curro”, existente na Serra do Montemuro, no século XVI, como já vimos nos apontamentos anteriores. Adiante.
Mas a remissão do GADO AROUQUÊS, para os tempos Celtas, “através do cruzamento dos troncos bos tauros aquitânicos, bos taurus ibericus e bos taurus atlanticus (…) e ao “primitivo bos primigenius”, leva-nos de volta às “pinturas rupestres de Lascaux” (em França), de Altamira (em Espanha) e gravuras rupestres de Foz Coa (em Portugal) como, dissemos em devido tempo, admitindo que o mesmo gado ou seu descendente era o que Frei Bernardo de Brito descreveu na “Monarquia Lusitana” e Rui Fernandes, “tratador de lonas e bordades”, a cidade de Lamego, ambos do seculo XVI, designado por PAIVOTO no século XX e mesmo no século XXI, o nosso século.
Problemetizada a questão, uma outra se segue. Sou, efetivamente, um historiador problemático. Homem do povo, habituado a lidar com o povo e a notar as diferenças entre a “linguagem oral” e a “linguagem escrita”, o “saber erudito” e o “saber popular”, habituado a ouvir “áuga” em vez de “água”, “crasto”, em vez de “castro”, “alvezes” trocado por “às vezes”, “Quijó” em vez de “Cujó”, “lameilas” por “lameiras”, “binho” em vez de “vinho”, “baca” em vez de “vaca”, levando em conta a advertência deixada por Moisés Espírito Santo no excelente “ensaio” sobre a nossa toponímia e fala, anexo ao seu livro “As Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa” que diz: “centenas de nomes latinos ou “germânicos” de pessoas em que se diz terem origem milhares de povoações são nomes fictícios”, (ob. pp. 257), daí, e desta vez, sem passar adiante, eis o apelo aos linguistas, para fazerem a aproximação gráfica e fonética dos nomes AROUCA e AUROQUE, com ou sem recurso às “assimilações”, “metonímias”, “metáteses”, “sonorizações” e todas os outros termos ligados à “evolução fonética” da lingua. Isto, apesar do mesmo autor nos advertir que “não será o latim que nos vai ajudar a descobrí-lo”, pelos “metodos com que se estuda a linguagem vulgar pelas simples razão de que os atuais nomes de sítios provem de nomes antigos e são de criação e transmissão oral”. (Pp.259)
Tudo o que descubro na caminhada por entre gentes e animais a concorrer para o desfasamento do “saber erudito” e do “saber popular” manifestamente denunciado também por Camilo Castelo Branco, quando se refereriu às aldeias do Minho e confrontou os poetas bucólicos, os letrados citadinos, com o que eles diziam delas, ironizando:
«A mim me tinham dito os poetas umas coisas que eu não acreditei. Sá de Miranda e Bernardes; Lobo e Fernão Álvares, Camões e Braz Garcia (...) os quatro pontos cardeais tomados de poetas que melodiavam bucólicos louvores da santa vida pastoril, virtudes de zagalas que faziam corar as rosas de puro envergonhadas (3)»
Ora, sendo eu originário do campo, de posse da utensilagem mental, rural e académica, cabe-me questionar muito do que vi e li, com carater marcadamente científico, não concordante com a minha experiência camponesa e saberes populares com a marcante patine dos tempos. Uma vida recheada de trabalho, de imaginação, de poder criativo, de sobrevivência, amassada com suor e lágrimas, tal como o pão negro de cada dia. Sempre com recurso aos animais, seus companheiros de viagem, de trabalho e lazer.
Domesticados, animais de trabalho, celtas, celtiberos ou lusitanos, romanos, visigodos, cristãos, medievais e contemporâneos, a ruínas dos “castros” cujas muralhas ainda persistem nos topos de alguns dos nossos montes, entre os quais a serra do Montemuro (nas PORTAS) eles, esses animais, fosse a transportar lenhas e estrumes para as terras de semeadura, fosse a transportar o produto das sementeiras, fosse a fazer a “decrua”, fosse a “travessa”, fosse a “sementeira” ligar-se-iam para sempre a um tipo de ESCRITA desconhecida por muitos académicas e, naturalmente, como nem podia deixar de ser, pelas pessoas do campo analfabetas, sendo eles, porém, a deixarem nela registada a sua história de vida.
E esta escrita, pela sua designação, faz-nos volver ao “bos primigenius”, pois conhecida é por “escrita bustroféndon”. Exatamente por se assemelhar à forma como se lavrava a terra. Lavrador agarrado na rabiça, arado vai, arado vem, torna a voltar, torna que vira, muito “eixe” e muito “oixe”, até se chegar ao fim do lavra.
O senhor José Maria do Rossão, distinguiu bem a sementeira de centeio resultante das “cavadas” e das “searas”. E foi esta última técnica agrícola que chegou até nós, por tudo quanto é leira de semear, na serra e no vale, na rerra chã ou de socalco, onde chega o arado de pau radial celta, ou a charrua de ferro de aiveca móvel, medieval.
Ele, o senhor José Maria, do Rossão e outros falantes que interroguei, sabendo muito do campo, de sementeiras e de gado paivoto, fizeram saltar este “académico rústico” para o campo das letras e ceifar nele, para o meu celeiro, esse tipo de ESCRITA, a saber:
A “escrita bustrofédon” “deriva da palavra grega «bous», boi e «strophé», virar, significando "como um" ou "ao modo de", pois este tipo de escrita recorda os trilhos abertos por um boi atrelado a um arado a trabalhar nas terras agrícolas, que ao chegar ao fim de um campo dá meia-volta e regressa para trás.[1][2] (Texto copiado e adaptado da Wikipédia)
CONCLUSÃO
Pretendi com estes apontamentos mostrar que nem todo o saber agro-pecuário está nos livros e nem tudo o que está nos livros coincide cientificamente com a realidade da vida, dos homens, das coisas e dos animais. Pretendi deixar alguns traços distintivos do GADO PAIVOTO SERRANO, conhecido pela GENTE SERRANA, diferente do GADO PAIVOTO, de perna longa, assim “conhecido no distrito do Porto”.
Esse gado nosso, gado de trabalho, condenado à extinção por “falta de emprego”, tal qual o seu ascendente remoto AUROQUE. Portanto, bem andou a ANCRA em tentar manter a raça AROUQUESA, pois sendo certo que, partilhando ambas as raças o mesmo código genético, o AUROQUE, em 1564, ainda existia na Polónia, território onte, rm 1627, terá morrido a “última fêmea por causas naturais”.
Comparemos a figura de um exemplar desses - gado extinto - extraída da Wikipedia, (à direita) com o desenho de um exemplar deixado no livro “Montemuro, a Serra mais desconhecida de Portugal”, editada em 1940 do sé ulo XX (à esquerda). Não se sonhava ainda com a Internet, nem se fazia uso do “copy/paste” como eu fiz agora mesmo. Curiosa semelhança esta, entre o animal extinto na Polónia e o gado “vivinho da silva” em 1940 a pastar e a laborar na serra do Montemuro e arredores. O mesmo que, em Cujó, acompanhei no trabalho, no pasto e no parto.
Seja como for, foi com este gado domesticado, raça pura ou cruzada, que os lavradores/pastores/agricultores, por este mundo fora, por estas serras arriba e abaixo e de travesso, os camponeses do mundo inteiro, sem saberem uma letra do alfabeto, escreveram a sua história secular, sulcando leiras, herdades ou courelas e extraindo delas o paupérimo sustento que, na região do Montemuro, no século XVI, era fértil em ”fruita de espinho”. Espinhosa vida dos moradores, vestidos de “burel grosseiríssimo” (o meu avô e pai, na sua juventude, foram pisoeiros) que viam nascer-lhe e carir-lhe os dentes sem os poderem ferrar num bife dos vitelos, nas crias das “paivotas” que vendiam para serem comidos longe, semelhantemente aos cabritos e borregos.
Repito. Bem andou, pois, a ANCRA, com sede em Cinfães, logo ali do outro lado ds serra, em promover a preservação da RAÇA AROUQUESA e permitir que, nos restaurantes de ALVARENGA, ou quaisquer outros restaurantes de Portugal inteiro, o cidadão comum possa ferrar o dente numa sucolenta posta de vitela e, mastigando-a, sinta o sofrido paladar histórico do esforço secular das gentes de rija têmpera que, enfrentando os cálidos verões e a invernias de frios, geadas, cincelos, codos e neves, deram o seu contributo à formação do REINO, ao seu povoamento e aproveitamento séculos fora, até estes nos tempos de desertificação, em que as SILVAS (produtoras de amoras) reconquistam ao camponês os domínios silvestres conquistados.
Pudera! Sem gados na serra, sem lavoura, terras incultas, é ver crescer os matos e aumentar os predadores que chamam seus todos os bens expostos ao luar. E adeus perdizes, coelhos e lebres que abundavam no século XVI, tal qual nos disseram os dois autores desse tempo que citámos. Os mesmos que nos falaram das “vacas bravas”, de “pequeno porte”, “ligeiras no correr e no ferir”, capazes de não serem “encurraladas” por “lesto cavaleiro”. Gado cuja carne era vendida para longe e os criadores serranos, como disse o senhor José Maria, do Rossão e outros, não «ferravam dente». E bem lembram eles, lamentando: «hoje, abunda a carne, mas faltam os dentes».
LINK “ESCRITA BUSTROFÉDON”