PRIMEIRA PARTE
Digo isto para dar garantia aos meus leitores/seguidores de que, em Cujó, na minha juventude, lidei com vacas, ovelhas e cabras, até aos 18 anos. Quer dizer, antes de aprender a lidar com a caneta e com ela (e seus sucedâneos correlatos) sachar as ideias e saberes semeadas no CAMPO DAS LETRAS E DAS CIÊNCIAS, aprendi primeiro a lidar com a aguilhada, com o cajado de pastor (dita moca) e até com a funda bíblica, não para armar em David e esfacelar a cabeça de Golias, mas para, à pedrada e à distância, dar orientação diferente ao rebanho, contrariando a opção da cabra líder. Curiosa coisa esta. Ali, no reino dos animais, caprinos e ovinos, enquanto lidei com eles, era sempre uma FÊMEA que liderava as demais rezes.
E isto para dizer também que nunca me interroguei sobre as raças de gado que pastoeava (ovino, caprino e bovino) animais que eram meus companheiros na labuta do viver e sobreviver. Lidando com eles estudava-lhes apenas o “feitio” e tirava deles o proveito necessário. E não raro aconteceu apertar e espremer um teto de cabra ou vaca e dirigir o esguicho directamente para a minha boca, dispensando assim o copo de zinco que transportava no bornal.
Animais esses que uns, à semelhança dos seres humanos, tinham tendência para a liderança e outros propensos eram a seguir somente os líderes, assim a modos que “ó Maria vai com as outras.”
E não foi pouco o tempo que, de pé ou sentado num merouço de pedras, gastei a observar os seus jeitos e trejeitos. As cabras a empinarem-se nas paredes, muros acima, plantas e árvores, resolvidas a saborearem um rebento verde, fora do alcance das ovelhas, estas sempre de focinho rente ao chão em busca de alimento.
As vacas, nos lameiros, e leiras de pasto, a fazerem da língua uma seitoira e a puxarem para a boca as fêberas ceifadas. Uma maestria de ceifa que só vista e observada. E à sua foice não escapava sargaço, urgueira e outros rebendos de arbustos serranos. Tudo servia para meter na morca e mais tarde ruminarem sossegadamente, de pé ou deitadas.
Na casa dos meus pais havia uma JUNTA DE VACAS e temporariamente houve também uma ÉGUA. Da VACA ROXA já falei o bastante, mas a outra, sua parceira, uma PAIVOTA sem bilhete de identidade, é igualmente digna de ficar neste meu apontamento. Mais pequena que a ROXA, de pelagem a atirar para a cor da palha seca, mais comprida e àspera, bem diferente da pelagem curta, nédia e vermelha da parceira, quando me punha a observar os seus chifres puídos, polidos e desgastados junto à raíz, via neles, claramente visto, os sinais evidentes deixados ali pelas sogas de cabedal que neles, às voltas mais voltas, entrelaçavam o jugo e a molhelha que lhe servia de carapuça assente entre os cornos, interrogava-me sobre a vida desses animais domesticados, ao serviço do ser humano, cujas origens remontariam, certamente, aos bovinos representados nas pinturas rupestres de Lascaux e Altamira e às gravuras rupestres de Foz-Coa, ainda por descobrir: o AUROQUE. E eu, para ser rigoroso na crnologia dos meus conhecimentos, nessa idade interpelante, ignorava completamente que tais pinturas e gravuras existissem.
Era uma vaca de meia idade, PAIVOTA sem cartão de identidade, de origem desconhecida. Certamente, vitelinha ainda, rodopiara, saltara, pinchara em torno da mãe, mas seguramente, desde a nascença, condenada estava a ir para o talho de tenra idade ou, mantendo-se viva, vendida numa qualquer feira de montanha e, adulta, tornar-se uma moira de trabalho nas mãos de qualquer lavrador, com destimo marcado: comer, trabalhar, levada ao boi, emprenhar, parir, alimentar a cria e dar os sobejos de leite aos seus donos. Assim a vida inteira ate o talho lhe dar a reforma. Entretanto teria por consolo os afetos e afagos dados pelo tratador, bons pastos no tempo de ervácias abundantes e, na carência delas, a ossatura do esqueleto, quadris e costelas dispostos a furarem-lhe a pele nos, tempos da invernia. Lameiros ser erva, pasto escasso e forragens armazenadas racionadas para o que desse e viesse.
Entretanto podia viver e dar-se por feliz enchendo as orelhas com a chiadeira do carro, cujo eixo, de amieiro ou freixo, reagia ao peso da carrada. E também com o som tilintante das campainhas que, numa correia, postas em escala ascendente, os sons graves em baixo e os agudos em cima, lhe foram penduradas ao pescoço desde que se tornara “gente”. O lavrador serrano, na pobreza do seu viver, não podendo por no pescoço da esposa um colar de pérolas, caprichava em por no pescoço do seu gado a “louça metálica” de fundição que melhor lhe soasse ao ouvido. É só ver as correias e os enfeites postos nelas, brochas e fivelas, que chegaram até nós e se vendem ainda nas feiras da serra.
Mas a PAIVOTA de que vos falo, a que os meus pais deram o nome CABANA, antes de se reformar, num dos “afazeres” do seu fado quotidiano, prenha, estando prestes a parir, aconteceu entrar em trabalho de parto quando eu a regressava dos lameiros do rio Mau e, já perto da povoação, ali pelo sítio do Lamaceiro. Elas à frente e eu atrás, vejo claramente visto, duas unhas da cria a querem sair para o mundo, com a mãe a andar. Jovem, coisa nunca por mim vista, que fazer? Deixá-la deitar no caminho ou incitá-la a caminhar até chegarmos a casa? Foi o que fiz. Chegados à loja, com um palmo dos membros anteriores da cria de fora. A mãe deitou-se e, num ai, o vitelo estava no mundo. Foi um parto santo.
A mãe levantou-se começou a comer-lhe a placenta e a cria despida daquele veu transparente, tente não caias, ensaia, por instinto, os seus primeiros passos em busca da mama. Nem queiram saber a alegria de um jovem pastor assistir aquele milagre da vida. Um sucesso natural. Só aue, simultaneamente, à minha alegria do momento sucedia o pesaroso pensamento de saber que destino esperava o recem-nascido. Tal qual os cabritinhos que , paridos na serra ao fim do dis, transportei ao colo para casa, eram metidos nos alforges do cabriteiro, cabecitas de fora a “berrarem”, a chorarem pelas mães e as mães a “berrarem” a chorarem pelos filhos.
Lidei com todos estes animais nos pastos e nos partos. O meio rural abastecia os talhos urbanos e a carne criada nos montes e nas lojas serranas, chegava às lautas mesas das casas solarengas e brasonadas dispersas por quintas e cidades.
E eu, pastor-agricultor, menino ainda, jovem já, que vivenciei e senti tudo isto, nunca ferrei dente num bife até à idade de 18 anos. E não fui o único serrano. Numa entrevista que fiz ao senhor JOSÉ MARIA DO ROSSÃO, no passado dia 4 (disponível em vídeo no YOUTUBE) ele, que vendeu muitos vitelos para o porto, idem, idem aspas. Era asssim a vida na serra do Montemuro e arredores. Tirante o fumeiro, chouriças e salpicões em dias de festa ou da labuta extra, é que nós lhe tomávamos o paladar. De resto, éramos vegetarianos à força, sem integrarmos movimentos defensores dos animais ou filosofias elaboradas distintas do pensar e agir da humanidade na sua evolução secular. (Continua)