Trilhos Serranos

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domingo, 07 abril 2024 17:31

NA SENDA DA “RAÇA BOVINA PAIVOTA” (1)

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SABER LIVRESCO E SABER DO CAMPO

Já escrevi e publiquei na imprensa e no meu site TRILHOS SERRANOS uma longa crónica, uma extensa narrativa que teve como protagonista uma vaca (A NOSSA VACA ROXA) comprada ainda vitela e afeita à molhelha, ao jugo, ao tamoeiro, à cabeçalha do carro “chiadeiro” que transportava lenhas para casa, estrumes para as leiras e as colheitas vindas delas para os celeiros domésticos, fossem de milho (os canastros)  ou centeio (as grandes caixas de carvalho ou de castanho). 

E, às vezes, ao menos uma vez por ano, com a sebe de vime espetada sobre o chedeiro de cima para baixo, qual vedação artesanal em forma de “U”, com taipal de madeira nas traseiras, a transportar uma barrigada leitões para a feira de Tarouca ou do “Crasto”.

 

PRIMEIRA PARTE

CujóCarro vacasDigo  isto  para dar garantia aos meus leitores/seguidores de que, em Cujó, na minha juventude, lidei com vacas, ovelhas e cabras, até aos 18 anos. Quer dizer, antes de aprender a lidar com a caneta e com ela (e seus sucedâneos correlatos) sachar as ideias e saberes semeadas no CAMPO DAS LETRAS E DAS CIÊNCIAS, aprendi primeiro a lidar com a aguilhada, com o cajado de pastor (dita moca) e até com a funda bíblica, não para armar em David e esfacelar a cabeça de Golias, mas para, à pedrada e à distância, dar orientação diferente ao rebanho, contrariando a opção da cabra líder. Curiosa coisa esta. Ali, no reino dos animais, caprinos e ovinos, enquanto lidei com eles, era sempre uma FÊMEA que liderava as demais rezes.

E isto para dizer também que nunca me interroguei sobre as raças de gado que pastoeava (ovino, caprino e bovino) animais que eram meus companheiros na labuta do viver e sobreviver. Lidando com eles estudava-lhes apenas o “feitio” e tirava deles o proveito necessário. E não raro aconteceu apertar e espremer um teto de cabra ou vaca e dirigir o esguicho directamente para a minha boca, dispensando assim o copo de zinco que transportava no bornal.

Animais esses que uns, à semelhança dos seres humanos, tinham tendência para a liderança e outros propensos eram a seguir somente os líderes, assim a modos que “ó Maria vai com as outras.”

E não foi pouco o tempo que, de pé ou sentado num merouço de pedras,  gastei a observar os seus jeitos e trejeitos. As cabras a empinarem-se nas paredes, muros acima, plantas e árvores, resolvidas a saborearem um rebento verde, fora  do alcance das ovelhas, estas sempre de focinho  rente ao chão em busca de alimento. 

As vacas, nos lameiros, e leiras de pasto, a fazerem da língua uma seitoira e a puxarem para a boca as fêberas ceifadas. Uma maestria de ceifa que só vista e observada. E à sua foice não escapava sargaço, urgueira e outros rebendos de arbustos serranos. Tudo servia para meter na morca e mais tarde ruminarem sossegadamente, de pé ou deitadas. 

Vicentes-Vacas-Redz-Na casa dos meus pais havia uma JUNTA DE VACAS e temporariamente houve também uma ÉGUA. Da VACA ROXA já falei o bastante, mas a outra, sua parceira, uma PAIVOTA sem bilhete de identidade,  é igualmente digna de ficar neste meu apontamento.  Mais pequena que a ROXA, de pelagem a atirar para a cor da palha seca, mais comprida e àspera, bem diferente da pelagem curta, nédia e vermelha da parceira, quando me punha a observar os seus chifres puídos, polidos e desgastados junto à raíz, via neles, claramente visto, os sinais evidentes deixados ali pelas sogas de cabedal que neles, às voltas mais voltas,  entrelaçavam o jugo e a molhelha que lhe servia de carapuça assente entre os cornos, interrogava-me sobre a vida desses animais domesticados, ao serviço do ser humano, cujas origens remontariam, certamente, aos bovinos representados nas pinturas rupestres de  Lascaux e Altamira e às  gravuras rupestres de Foz-Coa, ainda por descobrir: o AUROQUE. E eu, para ser rigoroso na crnologia dos meus conhecimentos, nessa idade interpelante, ignorava completamente que tais pinturas e gravuras existissem.

Era uma vaca de meia idade, PAIVOTA sem cartão de identidade, de origem desconhecida. Certamente, vitelinha ainda, rodopiara, saltara, pinchara em torno da mãe, mas seguramente, desde a nascença, condenada estava a ir para o talho de tenra idade ou, mantendo-se viva, vendida numa qualquer feira de montanha  e, adulta, tornar-se uma moira de trabalho nas mãos de qualquer lavrador, com destimo marcado: comer, trabalhar, levada ao boi, emprenhar, parir, alimentar a cria e dar os sobejos de leite aos seus donos. Assim a vida inteira ate o talho lhe dar a reforma. Entretanto teria  por consolo os afetos e afagos dados pelo tratador, bons pastos no tempo de ervácias abundantes e, na carência delas, a ossatura do esqueleto, quadris e costelas dispostos  a furarem-lhe a pele nos, tempos da invernia. Lameiros ser erva, pasto escasso e forragens armazenadas racionadas para o que desse e viesse. 

Entretanto podia viver e dar-se por feliz enchendo as orelhas com a chiadeira do carro, cujo eixo, de amieiro ou freixo,  reagia  ao peso da carrada. E também com o som tilintante das campainhas que, numa correia, postas em escala ascendente, os sons graves em baixo e os agudos em cima, lhe foram penduradas ao pescoço desde que se tornara “gente”. O lavrador serrano, na pobreza do seu viver, não podendo por no pescoço da esposa um colar de pérolas, caprichava em por no pescoço do seu gado a  “louça metálica” de fundição que melhor lhe soasse ao ouvido. É só ver as correias e os enfeites postos nelas, brochas e fivelas, que chegaram até nós e se vendem ainda nas feiras da serra.

Mas a PAIVOTA de que vos falo, a que os meus pais deram o nome CABANA, antes de se reformar, num dos “afazeres” do seu fado quotidiano, prenha, estando prestes a parir, aconteceu entrar em trabalho de parto quando eu a regressava dos lameiros do rio Mau e, já perto da povoação, ali pelo sítio do Lamaceiro. Elas à frente e eu atrás, vejo claramente visto, duas unhas da cria a querem sair para o mundo, com a mãe a andar. Jovem, coisa nunca por mim vista, que fazer? Deixá-la deitar no caminho ou incitá-la a caminhar até chegarmos a casa? Foi o que fiz. Chegados à loja, com um palmo dos membros anteriores da cria de fora. A mãe deitou-se e, num ai, o vitelo estava no mundo. Foi um parto santo. 

Mancão-vacas- digilalizada em 2008A mãe levantou-se começou a comer-lhe a placenta e a cria despida daquele veu transparente, tente não caias, ensaia, por instinto,  os seus primeiros passos em busca da mama. Nem queiram saber a alegria de um jovem pastor assistir aquele milagre da vida. Um sucesso natural. Só aue, simultaneamente, à minha alegria do momento sucedia o pesaroso pensamento de saber que destino esperava o recem-nascido. Tal qual os cabritinhos que , paridos na serra ao fim do dis, transportei ao colo para casa, eram metidos nos alforges do cabriteiro, cabecitas de fora a “berrarem”, a chorarem pelas mães e as mães a “berrarem” a chorarem pelos filhos. 

Lidei com todos estes animais nos pastos e nos partos. O meio rural abastecia os talhos urbanos e a carne criada nos montes e nas lojas serranas, chegava às lautas mesas das casas solarengas e brasonadas dispersas por quintas e cidades. 

E eu, pastor-agricultor, menino ainda, jovem já, que vivenciei e senti tudo isto,  nunca ferrei dente num bife até à idade de 18 anos. E não fui o único serrano. Numa entrevista que fiz ao senhor JOSÉ MARIA DO ROSSÃO, no passado dia 4 (disponível em vídeo no YOUTUBE)  ele, que vendeu muitos vitelos para o porto, idem, idem aspas.  Era asssim a vida na serra do Montemuro e arredores. Tirante o fumeiro, chouriças e salpicões em dias de festa ou da labuta extra, é que nós lhe tomávamos o paladar. De resto, éramos vegetarianos  à força, sem integrarmos movimentos defensores dos animais ou filosofias elaboradas distintas do pensar e agir da humanidade na sua evolução secular. (Continua) 

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.