CUJÓ – OS FERREIROS
A relação estreita entre a agricultura, a indístira e o comércio, bem como a tríade «terra, homens e animais» nasceram há cerca de 7.000 anos, no NEOLÍTICO, com a sedentarização dos primitivos povos, até aí nómadas, RECOLETORES, dependentes dos frutos sazonais.
Cujó, aldeia serrana e beiroa que vivia essencialmente da agricultura e da pastorícia, enquanto comunidade agro-pastoril, na sua luta pela sobrevivência, teve de deitar mão aos recursos, às invenções e técnicas que vinham de lugares e de tempos idos.
E é assim que a aldeia, em meados do século XX, se pode considerar, praticamente, auto-suficiente no que respeita aos mesteirais, mesmo que, nenhum deles, exercesse a profissão a tempo inteiro. Temos lá os ferreiros, carpinteiros, pedreiros, tamanqueiros, alfaiates e sapateiros e, até, quando chegou o relógio mecânico a substituir a «meridiana» de madeira e bússola, apareceu, regressado do Brasil, o relojoeiro.
Numa comunidade iletrada, em vão se podem procurar «fontes» escritas. E, não as havendo, resta ao historiador fazer uso das «fontes» orais.
Em Cujó, a memória oral coloca em primeiro lugar António da Costa Ferreiro, vindo já do século XIX. E mesmo que os seus descendentes só tenham herdado o apelido e não a profissão só se prova que, na onomástica, muitos dos apelidos de família derivavam das profissões praticadas pelos próprios que depois transmitiram aos descendentes.
Outro ferreiro foi José Carreira, com forja na Quinta da Formiga. Ainda que mais velho, foi contemporâneo de António Pereira Camelo, que chegou aos meados do século XX e cuja profissão foi abraçada também pelos seus filhos Abílio Camelo e Simplício Camelo. Mas ferreiro foi também Henriques da Silva e José Pereirinha (dito José Aires) bem como José Ramalho e Agostinho Ramalho. Este foi o último profissional do ramo que, na aldeia, arrumou a bigorna, o martelo-bispo, a tenaz e o avental de cabedal.
O último a vender na feira quinzenal do «Crastro» o produto do seu engenho e arte. A meu pedido deixou-se fotografar na forja que ainda mantém para «atenrar» uma gadanha, «temperar» um ponteiro e fazer coisas ligeiras, mas necessárias.
Eu me lembro bem de, aos meus 15 e 18 anos, com outros moços da minha idade, nos dias de invernia, quando as chuvas e as neves nos retinham na povoação, retirando-nos dos montes e da lavoura, irmos para a sua forja da «Praça», (foto ao lado) agarrar no malho e ajudarmos a espalmar uma enxada ou a fazer uma ferradura. Nessa altura, e se calhar à mesma hora, outros jovens da nossa idade, sentados nos bancos dos liceus e das universidades do País, estudavam as relações sociais do trabalho, as leis da Física, o peso e o volume dos corpos, a ductilidade e a resistência dos metais. Faziam disso exames teóricos de caneta. Nós fazíamos exames práticos de martelo e de tenaz e aprendíamos que difícil se torna a tarefa quando se «bate em ferro frio».
Profissão indispensável nos meios agrícolas, a arte de ferreiro punha ao serviço dos clientes os trilhos para carros de vacas, as sovinas para fixarem esses trilhos às rodas de madeira e as sobrerrelhas, meias luas desajeitadas destinadas a unirem com segurança as cambas ao miúle das rodas. Da sua craveira, com furos da mais variada bitola, saíam, para além das cavilhas, os pregos, brochas e cravos, sendo estes utilizados na aplicação das ferraduras das bestas, calçado forjado e moldado nas suas «tendas». Saíam também testeiras, chapas, calcanheiras e ferraduras para tamancos. Picos, camartelos, picaretos, ponteiros para a arte de pedreiro. E, para os serviços agrícolas, gadanhas, enxadas, ganchas e relhas para arados de pau. E utensílios domésticos como tenazes e trempes. E até remendos no fundo esburacado de panelas ferro fundido.
A civilização, no seu evoluir constante, muito mais lentamente em tempos idos do que nos tempos que correm, remeteu para a Arqueologia Industrial, todas essas técnicas e ferramentas. Dispensou essas profissões nas aldeias. Mas terras há que, não podendo preservar tudo, sensibilizadas e interessadas em não apagar totalmente o passado, tiveram o cuidado de preservar alguns desses equipamentos e ferramentas, de fazer um Museu Etnográfico e, desse modo, transmitir aos vindouros, um pouco das suas raízes, do que foram os seus antepassados, marcas da sua identidade individual e colectiva.
E, neste tempo de globalização, neste tempo de mudanças vertiginosas impostas pelas novas tecnologias e novas formas de organização da produção, do comércio e do consumo, bom seria que nem tudo o que se liga à identidade dos povos e das suas gentes fosse remetido para o rol do esquecimento. Ou que seja adulterado ao ponto de não transmitir a verdade e os factos de tempos idos.
E é sabido que «um povo sem memória, é um povo sem história».
Na parte que me toca, e no respeito pela História e pela Cultura, mesmo que pregue no deserto, não abdicarei do exercício da minha cidadania e da dignificação da profissão que exerci com dedicação e empenho. Não abdico de tentar acender uma lamparina nos cérebros sem luz.
Cf. meu livro «Cujó - Uma Terra de Riba-Paiva», editado pela Junta da Freguesia de Cujó, sendo Prtesidente Secundino da Silva Carvalho
NOTA: Este texto fou publicado há muitos anos no jornal «Notícias de Castro Daire» e no meu velho site «trilhos serranos.com» donde o transfiro para este, hoje mesmo. A minha lupa de HISTORIADOR não focou só as pessoas mais notáveis do concelho ou das aldeias, focou também as pessoas mais humildes de profissões úteis à comunidade.