PRIMEIRA PARTE
Terminei a última crónica com um extenso texto deste escritor e político do LIBERALISMO PORTUGUÊS, destacando a “discussão” que opunha a “valentia” de dois grupos sócio/profissionais a navegarem no nesmo barco, seja, o grupo dos “forcados” e o grupo dos “ílhavos”, concluindo o escritor ter visto na conversa desenrolada ente eles - semelhantemente à bancada do parlamento, onde a “esquerda (…) via sumir-se, no burburinho acintoso das turmas ministeriais, as melhores frases e as mais fortes razões dos seus oradores” - a vitória do Vouga sobre o Tejo, que, na minha interpretação, mais não foi do que a vitória do campo sobre a cidade, naquela época em que a cidade campo era, isto é, um conglomerado de moradias e de hortas.
Mas hoje, no papel do mineiro que ainda tem carboreto e água bastante no gasómetro, metido mina adentro, picareto em punho, filão de investigação e de conhecimento promissor, atrevo-me a nele buscar algo mais, visando mostrar a “marca de água” que impressa e dourada se oculta na folha do tempo, necessário sendo pôr em evidência o nome e as características de uma terra que, com glória, ficou registada na nossa HISTÓRIA e nas nossas LETRAS:
SANTARÉM!
Inverto, intencionalmente, a cronologia das crónicas anteriores e vou começar pela última, recuando do século XIX aos séculos XIV e XII, para, a partir daí, referidos os factos, retornar ao século XX e retomar o fio da meada que, na minha dobadoira, se desdobra com vista a eu tecer o pano que, com sinete rural próprio, pretendo levar à hansa do conhecimento, do pensamento e da ação.
Cá vamos nós!
ALMEIDA GARRET, metido num barco rio Tejo acima, não vai só. E chegado ao destino, deslumbrado que fica com a paisagem em redor de SANTARÉM, lança um olhar abrangente sobre aquele Eden, descobre uma casa rural em cuja janela vislumbra a espreitar a paisagem um vulto. Não sabe se é homem ou mulher e, deixando voar o seu pensamento como fora qualquer rouxinol de ramo em ramo, conjetura:
«O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima eperfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de disposição, em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência!
As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.
A esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos; a madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões: a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não delapidada — com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa; parece mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê.
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali ? Parei e pus-me a namorar a janela. Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço. Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás... Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance. Como há-de ser belo ver pôr o Sol daquela janela!...
E, ouvir cantar os rouxinóis,!...
E ver ralar uma alvorada de Maio! Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela?... quem aprecie e saiba gozar todo o prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em torno?
Se for homem, é poeta; se é mulher, está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada: vêem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala. Na maior paixão, no mais acrisolado afeto do homem que não é poeta, entra sempre o seu tanto da vil prosa humana: é liga sem que se não lavra o mais fino de seu ouro. A mulher não; a mulher apaixonada deveras sublima-se, idealiza-se logo, toda ela é poesia; e não há dor física, interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positivo da existência prosaica.
Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir. Era ao pé da dita janela!»
Posto o que, recuemos ao cerco de LISBOA, tempo da REVOLUÇÃO DE 1383/85”. Façamos o decalque de FERNÃO LOPES, eminente figura das nossa LETRAS e HISTORIOGRAFIA. E numa só picada no filão que persigo, encho o bornal pendurado a tiracolo:
“(…) o Mestre e os da cidade souberam a vinda de ElRei de Castela e esperaram seu grande e poderoso cerco. Logo foi ordenado de recolherem para a cidade os mais mantimentos que haver pudessem, assim de pão e carne como quaisquer outras cousas. E íam-se muitos às lezírias em barcas e bateis, depois que Santarém esteve por Castela e dali traziam muitos gados mortos que salgavam em tiras e outras cousas de que fizeram grande alçamento (…)”
E o historiador ANTÓNIO BORGES COELHO, PROFESSOR da FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE CLÁSSICA DE LISBOA, que investigou este evento histórico ao pormenor, de quem confesso, com muita honra, ter sido seu aluno, disse, a propósito, no seu livro, “REVOLUÇÃO DE 1383”:
“Olhem para Santarém. Sujeitam a vila mil homens de guarnição castelhana, amesendando-se nas casas dos habitantes, roubando-lhes víveres e haveres, quando não as mulheres e as filhas. No entanto, gado e pão da vila e das lezírias escorrem clandestinamente para Lisboa. Escudeiros de Gonçalo Vasques de Azevedo, arriscando os bens e as vidas, escolheram o Messias de Lisboa (…)”.
Está visto. Sempre que LISBOA estava em apuros, esse centro de “mando e comando”, urbe fortemente dependente do campo, encontrava em SANTARÉM o celeiro e as as carnes necessárias ao alimento dos sitiados por curtos ou prolongados cercos.
SEGUNDA PARTE
E, rebobinando o fita do tempo, recuemos novamente a 1147, ao cerco feito por AFONSO HENRIQUESe pelos CRUZADOS, aquando da sua conquista aos MOUROS.
Já vimos o bastante da fotografia da cidade “revelada” por Osberno, a descer pelas colinas abaixo até ao rio Tejo, mas não o “fotograma” deixado por António C.L. Silva, no seu livro “E Fez-se Portugal”, reportando-se ao cerco, no momento em que alguns mouros sitiados procuram surrateiramnte escapar-se da cidade, assim:
“Estavam os Cristãos desalentados com a inutilidade do seu esforço, já murmurando uns contra os outros, quando um acontecimento veio dar-lhes grande consolação. Certo dia, ao fim da tarde, dez mouros foram vistos a esgueirar-se da cidade, a coberto da muralha e a embarcar numa canoa rumo a Palmela. Logo perseguidos, lançaram-se desesperadamente à agua , abandonando a canoa e tudo o aue nela levavam. Ora, no fundo desse barco acharam os Cristãos cartas dirigidas a várias pessoas e escritas em língua árabe. Dizia uma delas”:
“A Abu Mahomede, rei dos Eborenses, os desgraçados lisbonenses desejam saúde e a conservação do reino (…)”
A carta é extensa, mas para eu poder contiuar a minha tecelagem, este fio me basta, interpelando-me: porque é que os mouros procuram escapar-se para Palmela e a carta é dirigida ao “Rei dos Eborenses”, terra distante e não ao Governador de SANTARÉM, cidade muito mais próxima e onde não faltariam os alimentos de que careciam os sitiados?
Tão só porque essa cidade tinha já sido conquistada, nesse mesmo ano, (15.03.1147) por Afonso Henriques, retirando, assim, a possibilidade dos mouros lisboetas poderem dispor das riquezas da terra, tal como descreveu, no século X um escritor árabe:
“No distrito de Santarém a terra é muito abundante e rica, os campos podem dar duas sementeiras por ano, qurendo-se, tão boa é a terra da sua natureza. O Tejo, quando enche, transborda pela campina fora e cobre-a toda; e depois que o rio mingua, faz-se a sementeira muito à vontade e fica a terra tão húmida e pronta que a seara amadurece rapidamente”.
Face ao que, cotejando estes textos, relativos aos cercos de Lisboa na Idade Média, tempo de batalhas, de conquistas, de arietes, catapultas, lanças, espadas, arcos, bestas, torres de assalto, archeiros e besteiros, convenhamos que SANTARÉM tinha e tem razões de sobra para atrair ali o grande escritor Almeida Garret e deixar o seu nome escrito, em letras de ouro, na HISTÓRIA e na LITERATURA portuguesas. Os autarcas actuais da região bem se têm batido para que ali seja construído um aeroporto.
TERCEIRA PARTE
E neste ano de 2024, data em que passado é MEIO SÉCULO após a REVOLUÇÃO DOS CRAVOS, não trazer SANTARÉM a terreiro e omitir a saída de Salgueiro Maia, da ESCOLA PRÁTICA DE CAVALARIA. a caminho de LISBOA, era uma lacuna imperdoável da minha parte.
Pois é. Aí vão eles. Na capital não estão os mouros (1147) nem os homens e mulheres que “levantaram voz” a favor do Mestre de Avis (1383). As espadas, as lanças, os arcos, virotões e as bestas viraram peças de museus militares ou artefactos decorativos de castelos ou solares burgueses. Nem cavalos, nem mulas. Nem cavaleiros, nem ricos-homens, alcaides ou capitães.
Desta vez, disposto a “cercar” Lisboa, moradia dos “senhores do mando e comando”, é o capitão SALGUEIRO MAIA que comanda os militares que, saídos de SANTARÉM, da ESCOLA PRÁTICA DE CAVALARIA (significativo nome) chegam espora aos cavalos metidos nos motores dos tanques e carros blindados disponíveis, dispostos a montar cerco e fazer cair a DITADURA que, desde o 28 de maio de 1926, oprimia das liberdades políticas, sociais, económicas e culturais do POVO PORTUGUÊS e das COLÓNIAS, onde se desenrolava a GUERRA COLONIAL responsável por milhares de mortos, estropiados, brancos, negros e mestiços.
O objectivo militar foi atingido. Os senhores de “mando e comando” foram apeados do poder. As espingardas e metrelhadores, em vez de vomitarem balas, engoliam cravos vermelhos. A LIBERDADE, a ALEGRIA e FELICIDADE inundoram as ruas de Lisboa e de outras cidades do país.
Passaram CINQUENTA ANOS. Meio SÉCULO de vidas e de HISTÓRIA.
CONCLUSÃO
E chegada é a altura da pergunta. O que tem a ver tudo isto com a minha opção de inverter a cronologia dos eventos e com a REVOLTA DOS AGRICULTORES que, também eles, chegaram espora aos seus cavalos motorizados, em Portugal e por essa Europa fora, ameaçando privar os citadinos dos bens alimentares de primeira necessidade? Ainda se lembram dos “moços” que, no cerco de Lisboa, “esgravatavsm o chão” nos lugares onde era costume vender trigo, em busca de grãos perdidos, sem mais nada para comerem, a não ser ervas que os empanturravam e lhes dadam a morte?
Eles, os AGRICULTORES estão nas ruas e avenidas do país e da Europa, chegando esporas aos cavalos das suas carretas e tratores, tão só porque não foram cumpridos os três “DDD” do programa do MFA. Não admira. E CINQUENTA ANOS PASSADOS colhe perfeitamente (e bem a propósito) lembrar CAMÕES, 500 anos após o seu NASCIMENTO, colando aqui os seus imortais versos, uma espécie de PITONISA com olhos postos no passado e no futuro:
«Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes.»
(Os Lusíadas, canto IV, estancia 33)
Leram e interpretaram bem? A resposta deixo-a ao cuidado e inteligência dos meus estimados e atentos seguidores, aqueles que, com ou sem “emoges”, ainda vão tendo tempo para refletir sobre os eventos históricos que, desde o NEOLÍTICO, opondo interesses diferentes e até opostos, foram marcas de mudança a BEM DA HUMANIDADE, com revolucionários, reacionários e traidores.
Mas sobre o “ VINTE E CINCO DE ABRIL DE 74”, hei-de escrever novas crónicas e repor, aqui, no meu mural do FACEBOOK, outras já escritas e publicadas, por imperativo deste meu incansável exercício de cidadania.