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segunda, 25 setembro 2023 13:32

LAMELAS “PEGADAS NO TEMPO E NO ESPAÇO” (19)

Escrito por 

A POMBEIRA

 O primeiro contacto que tive com as “CASCATAS DA POMBEIRA”, no concelho de Castro Daire, foi através dos POSTAIS ILUSTRADOS  (a preto e branco) que correram mundo, divulgando tudo o que de notável e pitoresco existia no município. Isto, graças à iniciativa de alguns comerciantes locais que, procedendo assim, levavam longe, via CTT, o nome da sua FIRMA, mas também o que de mais atrativo havia turisticamente em redor de nós, fosse património natural ou fosse património edificado.

 4-CASCATA ANTIGA - Cópia Do PATRIMÓNIO NATURAL lembro dois ÍCONES impressionantes: a CARVALHA DO PRESÉPIO que desapareceu com o vendaval que ocorreu em 1987, cuja CERTIDÃO DE ÓBITO deixei na IMPRENSA LOCAL, incluindo o BOLETIM MUNICIPAL, e as CASCATAS DE POMBEIRA  que, for força da minibarragem feita a montante, no rio Pombeiro/Vidoeiro (dois nomes que aparecem a designar o mesmo rio, um nas Cartas Militares e outro no GOOGLE EARTH) desviando as águas para a mini-hídrica sita junto à PONTE DA ERMIDA, perderam, definitivamente a sua IDENTIDADE, deslizante e cantante, restando apenas o “rasto físico” geológico e orográfico da sua existência, encosta abaixo.

E não têm conta as vezes que, na companhia da minha esposa, Mafalda Carvalho, nos deslocámos ali, ao topo de Lamelas de Lá e, virados para Codessais, nos postámos no enfiamento visual das CASCATAS, mirando-as de cima abaixo para, em silêncio, como se estivéssemos numa sala de cinema a céu aberto, deixarmos não só que os olhos voassem sobre o vale até usufruírem  toda aquela beleza viva e coleante de montanha, mas também que pelos ouvidos nos entrasse a sinfonia produzida pelas águas em queda, música chegada até nós com os sons e tons diversos que resultavam das correntes de vento que, ora em sopro brusco e rápido,  ora lento, subindo ou descendo o vale e as encostas opostas, servia de maestro ao conserto que chegava até nós, descendo, cantante e saltitante,   encosta abaixo.

Só visto, ouvido e sentido. Mas, goste-se ou não,  esse encanto morreu definitivamente estrangulado pelas ferozes mãos do PROGRESSO.

6-MAFALDA E MORA - CópiaDepois disso tudo, depois de ter essa experiência ao vivo, com o POSTAL ILUSTRADO que corria mundo, os trilhos da investigação e pesquisa conduziram-me aos CADERNOS escritos por um cidadão natural de Farejinhas que deu provas, em vida, de não só conhecer o concelho que o viu nascer, mas também divulgá-lo pelos meios que tinha ao seu dispor e alcance, seja jornais e postais.

De seu nome AIRES PINTO MARCELINO, nasceu 18 de junho de 1875, em Farejinhas e veio a falecer em 15 de janeiro de 1954.

Deixei a sua BIOGRAFIA (resumida) no meu livro «IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA EM CASTRO DAIRE-I» onde destaco as suas posições em defesa da República, nos tempos agitados que foram os da queda da Monarquia e da implantação de um novo regime político.

Escrevinhador” incansável sobre quase tudo o que de interessante, histórico e pitoresco existia adentro dos limites do concelho, algumas das vezes sem o rigor exigido pelo historiador, outras nem tanto, não se lhe pode negar o acervo de informação que nos legou e todos lhe devemos estar gratos, salvaguardados que sejam alguns exageros que ressaltam da sua prosa, levado certamente pelo exacerbado amor que votava à sua/nossa terra natal.

J2-JPGá escrevi uma vez, e aqui repito, que, se ele pecava na falta de rigor quando abordava factos históricos, assim não acontecia em tudo onde ele punha os olhos. A sua retina e a descrição daquilo que via, era mais fiel do que algumas das mais sofisticadas câmaras fotográficas que hoje se encontram no mercado. Constatei isso quando descreveu a paisagem que se descortina da ERMIDA DE RODES, virado para a Várzea de Reriz e na descrição que aqui deixo manuscrita, em fotografias, das «CASCATAS DA POMBEIRA».

Devo somente dizer que alguns dos seus escritos originais chegaram ao meu «espólio» pela mão do senhor Júlio Alexandre Pinto, do senhor José Seixas e do Dr. João Duarte de Oliveira, naturalmente por entenderem que a «tenda se quer na mão de quem a entenda».

Fazendo um resumo desse seu texto,  deixando as referências da distância que separa a vila daquele sítio, diz ele, depois de lá chegar:

8-MANUSCRITO - Cópia 8-B-MANUSCRITOLinda manhã de outono límpido e quente. Botas ferradas, codaque ao tiracolo, prontos para a partida. Apareceram logo companheiros, mais cinco, desses que vão por ver e ir com os outros…mas lá vamos a caminho da Pombeira (palavras que lembram o “VENHAM MAIS CINCO de Zeca Afonso, essa canção do porvir. Curioso, não)

Discute-se se subir ou descer até que se concordou descer, porque diz o ditado que “para baixo todos os santos ajudam”. Passo cadenciado e firme. (…) as duas margens do rio cortadas no granito áspero e duro, quase a prumo, como duas gigantescas cortinas naturais, sem espécie de vegetação, a não ser a robusta urgueira, musgosa ou raquítica, parcamente vegetando entre as fendas dos penedos (…)

Lá fomos descendo e subindo com as nossas botas sólidas e ferradas, o nosso forte varapau de marmeleiro, servindo de apoio, vontade firme, estômago quente, largo chapéu serrano, amparando o sol ardente, roupa leve, corpo livre, tudo nos dava o aspeto de um Humboldt valoroso e triunfante que fosse não subir as eminências da Pombeira, mas excursionar as iminências dos Andes (…) e aqui deparávamo-nos com uma enorme queda de água, descendo junta perto de vinte metros de altura, ali um grande pego cercado de gigantescos penedos, parecendo desabarem sobre aquele, além, um amontoado de penedos dispostos ao acaso, uns sobre os outros, cobrindo o curso do rio, formando assim uma espécie de ponte natural (…) chegados ao fundo, cá em baixo, à Quinta da Rocha que fica defronte do Jogadouro, sítio de onde se desfruta toda a panorâmica da Pombeira”.

 FONTE-COMPLETA-RTEDUZOra, por este texto se vê que a CASCATA DA POMBEIRA foi, como disse, em tempos idos, um assinalável ÍCONE que não só correu mundo através POSTAIS ILUSTRADOS (a preto e branco),  mas ficou também a ilustrar uma das partes do espaldar da FONTE DOS PEIXES, a par da CARVALHA DO PRESÉPIO, painel de azulejos saído da Cerâmica ALELUIA, de Aveiro, em 1957.

E como é meu timbre fazer HISTÓRIA COM GENTE DENTRO, mal ficaria não louvar o trabalho de leitura e de investigação a que conduziu a publicação no «GAP» do texto que nos deixou Aires Pinto Marcelino.

 Além do nome daquele “proprietário do moinho” que não regateou as uvas da sua quinta aos “caminheiros” para eles refrescarem a boca,  que mais não fora, só por isso, eu me congratularia por ter tornado público um texto que jazia morto nos meus arquivos.

5-CASCATA ANTIGAJá o disse e aqui o repito. Este texto, com a assinatura de Aires Pinto Marcelino, é um DOCUMENTO para a HISTÓRIA desse sítio, seja qual for o FUTURO DO PROJETO DE ATRAÇÃO TURÍSTICA que venha a desenvolver-se em torno das CASCATAS que, quer se queira, quer não, foram estranguladas pelas manápulas do PROGRESSO

 

Mas o que importa aqui e agora é destacar o muito que ele escreveu sobre Castro Daire, algumas das vezes sem o rigor exigido pelo historiador, outras nem tanto. Ele não era historiador e, não o sendo, foi um incansável «escrevinhador» sobre aquilo que era nosso.

As fotas anexas integram o CADERNO Nº 9. Foram tiradas a partir do manuscrito original e, portanto, são uma RELÍQUIA para a HISTÓRIA DA POMBEIRA.

PASSADO E PRESENTE

 Deambulando pelos meus arquivos fotográficos, relembrando passeios que fazia pela serra do Montemuro e povoações, nos tempos em que era acompanhado pela minha esposa, MAFALDA, sempre em estudo, fui parar à Pombeira, ali mesmo atrás de Lamelas. Assim:

 No tempo em que a Pombeira se ouvia e via a descer pela ravina, naquela encosta à nossa frente, a água, no inverno muita, no verão nem tanta, refulgia como roupa branca pendurada no estendal natural que por ela subia e descia, nesta vertente da serra do Montemuro.

9-POMBEIRA-CORESRefulgente, o sol a dar-lhe do nascente, não havia gente que por ali cirandasse, que não parasse a vê-la e a ouvi-la. Toda a gente, sem distinção, sensível ao ambiente, em silêncio, caldeava o pensamento e sentimento e apreciava a arte, a sinfonia da água e do vento que só ali se via, que só ali se ouvia e jamais em qualquer parte. A cascata, a água, o vento e os aromas em redor, eram uma obra de arte, um monumento, apreciado por passante, feirante, pastor e lavrador. 

Depois veio o progresso, assim dito nos anais da civilização. A barragem, feita a montante, estrangulou o ribeiro Vidoeiro/Pombeiro e secou a cascata, levando as águas para  junto da Ermida, ao pé do rio Paiva, em tubagem moderna, para quem não saiba. E assim desviou a água cantante, a cantilena, aquela sinfoia eterna, que encantou gerações e gerações de gente e de vida.

Durante anos, de comunhão com a minha mulher usufrui a beleza deste quadro da natureza. De balcão, sem enganos, no alto de Lamelas, pés no chão, voluntariamente silenciados, chegava até nós a melodia dessa tarde ou dia, sempre diferente, vinda de todos os lados. E do caminho, envolvente, chegava o aroma quente da erva, da urze e do rosmaninho. Deixou de se ouvir a cantilena das águas e não tarda a desaparecer também o lilás da urgueira gandarinha que vai sendo vencida pela giesta, como já referi em crónica anterior, devidamente fundamentada.

7-MAFALDA E MORADa CASCATA, resta a espinha dorsal descarnada. E era uma vez um  monumento natual que correu mundo em postais ilustrados. Dela ficou o nome. Mais nada. E até o vento, até a aragem que no vale corre, a barragem estrangulou. O progresso, sem piedade não trouxe mas levou toda aquela musicalidade. E mal vai o mundo quando em nome do progresso tudo se mata, tudo morre.

E é seguro, que neste quadro natural do Montemuro, ele não levou apenas a água (muita no inverno, no verão nem tanta) pois levou também roupa branca que drapejava refulgente ao sol nascente, fosse qual fosse o dia - mas que inveja - esse encanto da gente que olhava e via, pois há quem olhe e não veja. 

 

Duante anos seguidos, eu e a minha mulher, fomos clientes assíduos e seguros deste concerto orquestrado pela natureza. Sons, cores e odores. Ele era as águas prateadas a luzirem em queda. Ele era o vento soprando vale acima, vale abaixo, batendo de encosta em encosta. Ele era, para quem gosta, ouvir sem cansaço nem fastio o hino da natureza, ali, naquele vale profundo, que dava vida à serra do Montemuro desde o princípio do mundo.

Era a POMBEIRA e eu a canto assim pela vez PRIMEIRA.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.