«Os livros de registos de entrada e saída dos presos nas cadeias são um manancial de informação para todo o investigador que se interesse pelo passado e pelo comportamento desta nossa tribo humana.
Num desses livros, em Castro Daire, cujo termo de abertura, foi feito e assinado pelo Juiz de Direito, António de Mello Borges e Castro, em 7 de Dezembro de 1847, podemos ver que o primeiro registo é de 13 de Setembro de 1848 e o último de 29 de Dezembro de 1866.
Logo à entrada, Luís Rodrigues, do lugar de Ladreda, preso por suspeita de ter fugido da cadeia de Castro Daire, havia cerca de 12 anos: «de 47 anos de idade, com a altura de sessenta polegadas, grosso, cabelo louro e um tanto calvo junto à testa, rosto comprido, aparentando um velho, olhos pardos, sobrolhos castanhos, nariz comprido, boca larga, barba ruça, apresentava-se vestido com jaqueta, colete e calças de borel em meio uzo côr de saragoça, camiza de linho grosso, calçado em tamancos, coberto com um chapeo grosso de aba redonda. Vinha da Cadeia de S. Pedro do Sul, acompanhado pelo oficial de diligências do Juizo de Castro Daire».(1)
Os registos, autênticos retratos de corpo inteiro, projectaram no tempo o tipo de crime, então, predominante e, também, o tipo o vestuário utilizado pela grande maioria de presos: o burel e o linho eram os tecidos que dominavam no fabrico do vestuário. Coletes, jaquetas, calças, saias e aventais de burel, cor de pinhão ou tingido de azul, em bom uso ou remendados, camisas de linho ou de estopa geralmente no mesmo estado, mostraram-lhe que as pessoas se apresentavam na cadeia vestidas de forma bem diferente daquela com que se apresentavam na igreja aos Domingos e Dias Santificados. Para além do burel uma referência ou outra a coletes de cotim com botões de madrepérola, a coletes de «durasempre». Saias de serguilha, coletes de fostão, capuchas de «catrapianha», descalços, com tamancos uns, sapatos outros, coletes de belbutina, de cotim às riscas com botões de chumbo ou colchetes de arame.
Um deles fugia a todo o padrão dominante. Preso no dia 3 de Agosto de 1850, era António de Sousa Rocha, freguesia de Pera Velha, julgado de Moimenta da Beira. Solteiro de 25 anos de idade. Apresentou-se vestido com calças de cotim branqueado, com riscas vermelhas e azuis, colete de pano azul com botões amarelos, forrado de pano vermelho, jaqueta de pano azul, camisa de paninho, faixa branca à cinta, calçado com sapatos, coberto com um chapéu redondo braguez. Alto e delgado, olhos e sobrolhos pretos, cor natural, nariz e boca regulares, rosto comprido, suíças até meio rosto, veio ali parar às ordens do Administrador do Concelho, por ser encontrado com um punhal, no arraial da Senhora da Ouvida, uma feira franca anual que se realizava a norte da vila de Castro Daire, perto da estrada real que leva a Lamego, junto de uma capelinha de invocação à Senhora da Ouvida.
Lugar descampado, entre os dias 3 e 5 de Agosto de cada ano, ali afluíam de todas as povoações vizinhas e de muitas outras mais distantes, os lavradores, na mira de venderem ou trocarem os seus gados, o produto do seu ofício, ferraduras para cavalos e burros, cabrestos, albardas, selas, sogas e molhelhas para «junguer» as juntas de vacas, tamoeiros para os jugos, cordas, cestos, panelas, tudo quanto se consumia nessa sociedade rural e campesina, teias de burel inteiras, ou mantas já feitas, chapéus de palha, bilhas, alguidares, engaços, enxadas, forquilhas, capuchas, coletes, jaquetas e saias... tudo o que atraía ali produtores, vendedores e compradores, romeiros e forasteiros. Num lugar assim, seguido de arraial à noite, não passaria despercebido um rufia que ostentava uma faixa branca à cinta e um colete de forro «bermelho», trazendo escondido um punhal para o que desse e viesse, pois sabido era que a verdadeira festa e romaria tinham sempre por remate uma ou mais cenas de pancadaria, facadas, se não mesmo mortes. Na prisão deram entrada indivíduos a mando do Regedor da Paróquia, juízes ordinários, drs. delegados, juízes de direito, guardas do Contrato do Tabaco, acompanhados dos oficiais de diligências ou não.
Depois de muito trabalho, apontamentos feitos, contas resolvidas aparecem cabeça, 42,2%, os casos sentenciados em «audiência de polícia Correccional», sem que os assentos registassem a natureza do crime. Tratava-se, por certo, de delitos menores já que as penas eram, regra geral, baixas: 1 dia, 2 dias, 3 dias, 1 semana, 6 meses...
Seguiam-se os furtos: 20,8%. Seria Castro Daire um covil de ladrões? O roubo mais significativo que os assentos registam foi «uma vaca na aldeia de Faifa» (1) e o mais insignificante foi «o roubo de huns fenjoins», cuja acusada foi posta em liberdade poucos dias depois «visto o furto ser inferior a 400 rs» (2). Estimados em 17,5% vinham os casos relacionados com “ferimentos”. Que razões teria esta gente toda para se envolver em pancada ao ponto de caírem nas malhas da Justiça? Instinto de violência, puro e simples, não era certamente. Outros motivos estariam na base de tal comportamento.
Muitos presos ignoravam a causa que os levava ao cárcere, outros era por andarem metidos «em barulhos», «motins», «assuadas»; outros por crime de fogo posto em matas ou casas; outros por negociarem sabão espanhol; outros por tentativa de violação, por «lobarem uma rapariga para maus fins»; outros por transgredirem as leis do tabaco, por terem nas suas terras «erva santa», cuja produção era proibida, só as boticas podiam tê-la e vendê-la para mezinhas; outros, por ofensas verbais e corporais. Uns, condenados a um, ou poucos dias de prisão; outros a meses; outros a anos; outros condenados a degredo para os presídios de África e Índia; outros condenados às galés; outros condenados a trabalhos públicos perpétuos.
Lavradores, carpinteiros, sapateiros, trabalhadores de enxada, comerciantes, criados de servir, solteiros, casados, viúvos, jovens, pessoas de meia idade, homens, mulheres, velhos, filhos de pais identificados ou de pais incógnitos.
Alguns chegavam à cadeia a mando das autoridades judiciais ou seus agentes, outros (poucos) apresentavam-se voluntariamente. Foi o caso de Manuel Maria Xavier Machado e José Lemos de Almeida e Costa. O primeiro, de 44 anos de idade, era «proprietário e juiz ordinário no julgado de Mões, de estatura alta e grosso, cor branca, rosto redondo, olhos castanhos, cabelo preto com ruças brancas. O segundo, de 43 anos, era natural de Oliveira de Azemeis e sub-delegado no Julgado de Mões, escrivão de Paz do Distrito de Mões, suplente do escrivão de Fazenda e Amanuense da Administração do concelho de Mões. Rosto comprido, olhos sobrolhos e cabelo castanho, cor branca e corado com ruças brancas na barba» (1)
E voluntariamente também se apresentou João Pinto, de Vila Cova, por se achar «endisiado no crime de abuso de Alteridade como Rigedor que foi daquela freguesia”. Vinha vestido com “camisa de linho, collete de panno pretto, jaqueta de saragosa, calças idem, chapeu de panno pretto, uma capa de saragosa, calçado com sapatos» .(2) Entrado em 11 de Abril de 1864, saiu em 20 de Maio do mesmo ano.
Quem não se apresentou voluntariamente foram os jovens Manuel Inácio, de Soutelo, de 14 anos de idade, analfabeto, «trabalhador de enxada em casa do seu pai (...) por dizerem que que tinha sido encontrado em casa de Avelino Gomes a roubar».(3) Entrou no dia 21 de Maio de 1866 e saiu em 30 do mesmo mês, depois de ter sido «admoestado», tal como o seu pai.
António, somente António, de 12 anos de idade, analfabeto, criado de servir, por «ter tirado barios objectos em casa de António Joaquim de Almeida Pinto (...) » da vila de Castro Daire.» Entrou no dia 28 de Setembro de 1866 e saiu no dia 1 de Outubro do mesmo ano «entregue à sua mãi». (4)
Pequenos e grandes, por grandes ou pequenos delitos, todos acabavam por conhecer a “enxobia” ou a “sala livre” da cadeia.
E do rol fazem parte aqueles que se envolviam em contendas familiares. Foi o caso dos irmãos, Manuel Francisco Troca, moleiro, e António Francisco Troca, bendeiro. Estes, no dia 2 de Maio de 1865, fazem o carcereiro (ou alguém por ele) pegar na pena para lavrar mais dois assentos, com a nota à margem de libertados em 29 do mesmo mês. O primeiro, analfabeto, 31 anos de idade, foi ali parar por “ter feito huns ferimentos a seu irmão António Troca, de Fareja, freguesia de Castro Daire (5) e o segundo, casado, do lugar de Fareja, 32 anos de idade “por se achar em desordem com seu irmão, Manuel Francisco Troca. (6)
O primeiro apresentou-se vestido como a maioria dos outros. Este último, não se esqueceu de colocar o seu alberno de burel preto. Não tendo aprendido a lição, volta a ser preso no dia 7 de Fevereiro de 1866, desta vez “por ter feito huns ferimentos na mulher do seu irmão Manuel Francisco” (7). Saiu em 15 de Fevereiro do mesmo ano. A mesma pessoa, o mesmo alberno.
Para quebrar a rotina de lavradores e artesãos, no dia 15 de Julho de 1886 apareceu Domingos de Carvalho Moreira, com 35 anos de idade. Casado, natural do concelho de Tarouca, mas a residir nas Carvalhas, freguesia de Monteiras. Dizia-se «professor de música” e o seu infortúnio foi “dizerem que tinha feito huns ferimentos na pessoa de João de Morais, do lugar de Cujó» (1). Dentro das grades a música era outrra, pagou fiança e saiu no dia 24 do mesmo mês. Como professor de música tinha de apresentar-se vestido de modo diferente: «camisa de linho cru, colete de picotilho ruço, jaqueta de pano azul, calças de pano mescula, chapeo preto na cabeça e com sapatos». (2)
Quem igualmente manteve a liberdade sob a fiança de 800:000 rs. (oitocentos mil reis) foi Bernardo Duarte, solteiro, 19 anos de idade, do lugar de Campo Benfeito que, tendo-se apresentado na cadeia no dia 9 de Outubro de 1849, «para se livrar do crime que lhe imputão por parte do Ministerio Público da morte que aconteceu em João da Silva do mesmo lugar, haverá quatro anos» (3), saiu no mesmo dia, vindo a ser considerado livre em audiência geral, de 5 de Dezembro do mesmo ano. Eis,assim, um moço de 19 anos, cujos pais, Joaquim da Silva e Vitória da Silva não deixaram que ele fosse metido a ferros. Teve fiança de 800$000.
Em 1848, por andarem a vender sabão, José Luís, de 47 anos de idade, casado, natural de S. Martinho de Mouros, não se livrou de «quatro anos de galés para um dos presídios de África» (4) e Bernardo Cardoso, solteiro, de 25 anos de idade, do mesmo lugar, de 3 anos «para o mesmo prezídio».(5)
O mesmo aconteceu, em 1857, a Manuel Rodrigues, solteiro, de 26 anos, do Mesio, «condenado a 8 anos de prisão pª África» (6) e a José Maria Gomes, solteiro, de 40 anos, natural de Fornos, «condenado em dez annos de trabºs. publicos em huma das possessões d’África Ocidental» (7).
Idem Manuel dos Santos Loureiro, casado, lavrador, de 42 anos de idade, natural de Vila Cova, que, em 1855, foi «condenado a tres annos de degredo pª a Índia» (8).
Idem António Pedro, 36 anos de idade, oficial de cardador, de Figueiredo de Alva, que em 1865, «por dizerem que ele tinha roubado uma vaca» a Manuel Luís, de Faifa, foi «condenado a cinco annos de degredo pª a África Ocidental» (9).
Idem Cristóvão Duarte, casado, 37 anos de idade, de Santos Evos, concelho de Viseu, que, em 1852, por ter sido encontrado a roubar na Igreja de Cabril, foi «sentenciado a trabalhos publicos perpetuos pª o ultramar» .(1)
Os pratos colocados na mesa da Justiça, roubo, fogo posto, motins, assuada, contendas familiares, transgressões, mortes, etc. mais não eram do que os apetites e os e vómitos de um certo número de súbditos de Sua Majestade, de parte de uma comunidade, toda ela, entregue ao seu destino. Frutos caídos de uma árvore sócio-política e económica carcomida por séculos e séculos de injustiça. Serranos, descalços ou de tamancos, camuflados de burel, de saragoça ou de serguilha, excepcionalmente com trajes que fugiam à matriz da lã e do linho, rotos e remendados, só nos botões de alguns coletes brilhava a cor amarela. Isto no tempo em que a Corte resplandecia de dourados e a cumplicidade entre Coroa e Altar brilhava na talha dourada dos templos. Tempo em que, na balança da cidadania só o prato dos deveres estava cheio. Tempo em que, pelo Reino inteiro, só as águias “administrativa”, “judicial” e “fiscal” davam por estes montanheses e, bem filados nas suas garras, os chamavam a juízo pelos delitos cometidos. Justiça? Qu’é dela?! Qu’é dela!!! Qu’é dela.!.
Das 559 peças de vestuário extraídas dos «assentos» correspondentes aos anos inteiros de 1849 e 1850 e de 1865 e 1866, num intervalo de 10 anos, sempre a mesma coisa. A lã e o linho eram a matéria-prima base na confecção da indumentária de todos eles. O burel atingia a percentagem de 55,5% nele incluindo a saragoça, a burelina e a serguilha. De linho, eram todas as camisas que, sob a jaqueta e o colete de burel escuros, branqueavam os peitos desses desafortunados, cujo retrato, pintado a corpo inteiro, com todos os pormenores, não foi feito por artista de fama, mas por um qualquer oficial de Justiça e assinado pela mão perra de um carcereiro. A diferença de letra assim o demonstra.
Na cadeia entrou o Reverendo Padre Pedro de Figueiredo, do lugar e freguesia de Barrelas, de 27 anos de idade. Este eclesiástico foi retratado por ter feito uns ferimentos na pessoa de Manuel Ferreira da Rocha, também de Barrelas. Apresentou na cadeia para cumprir seis meses de prisão, vestido de «camiza de linho, gravata de setim ao pescoço, colete pano preto, cazaco idem, calças de cazemira preta, chapeo de pano preto na cabessa, tudo em bom uzo, calçado em sapatos». (2)
Estatuto social diferente, indumentária a condizer. A não ser a cor preta, a cor dominante em todos os outros, o seu casaco e a sua gravata, constituíam caso único entre 559 peças registadas.
Condenado a seis meses de prisão, entrou na «sala livre» no dia 9 de Junho de 1865 e saiu no dia 9 de Dezembro do mesmo ano. Cumpriu a pena por inteiro.*