DA GESTÃO VILÃ ...À GESTÃO FIDALGA
Falar sobre Castro Daire medieval, com foral dado por D. Afonso Henriques e renovado por D. Dinis, é falar das medidas que este monarca tomou relativas ao nosso concelho no que concerne aos impostos. Foram medidas que, pelo seu significado e alcance, dificilmente se apagariam da memória das gentes.
1 – ANO DE 1294 (Era de 1333) – OS FOROS EM ESPÉCIE FORAM CONVERTIDOS A DINHEIRO
Com efeito, no ano de 1294, estando ele na cidade da Guarda, fez um trato com os moradores do concelho de Castro Daire, a saber:
«Dom Dinis, por graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve a quantos esta nossa carta virem fazemos saber que eu arrendo a vós juízes e povo e concelho do julgado de Crasto Dairo, para todo sempre, todos os meus direitos e toda as minhas direituras que eu tenho e de direito devo haver nesse julgado e em seus termos por quinhentas libras de Portugal em cada um ano salvo a minha colheita e padroado da igreja desse lugar de Crasto Dairo e doutros se as aí há que retenham para mim e para todos meus sucessores sob a condição que vós me dardes a mim e a todos os meus sucessores as ditas livras nesta maneira: duzentas e cinquenta libras pela festa de natal e as outras duzentas e cinquenta livras pela festa de S. João Baptista. As quais livras me devem dar sob os termos sobreditos nesse lugar de Castro Dairo e em seu termo em paz e em salvo.
E mando que nenhum rico-homem nem prestameiro nem outro que de mim tiver essa terra não pouse nesse lugar de Crasto Dairo nem em suas aldeias salvo se lhe anoitecer pelo caminho que pouse aí e coma por seus dinheiros e vá-se logo, e não faça aí nenhuma malfeitoria que se assim fizesse far-lha-ia em todo pagar em dobro. E mando e defendo que nenhum não seja ousado que contra isto vá nem faça mal nem força aos ditos juízes do povo e concelho do dito lugar que qualquer que aí fizesse ficaria por meu inimigo e corregeria a eles em dobro o mal e dano e a força que lhe fizesse e peitaria a mim os meus encoutos E em testemunho desta cousa dei eu a esses juízes do povo e concelho sobredito esta carta. Dada na guarda a onze dias de Agosto. El-Rey o mandou pelo chanceler Martim Esteves a fez, era de mil e trezentos e trinta e três anos». (14)
2 – ANO DE 1308 (Era de 1346) - FOROS EM ESPÉCIE CONVERTIDOS A DINHEIRO,
Mas, não se ficando por aí, D. Dinis, catorze anos depois, ou seja, no ano de 1308 (Era de 1346), através de outro documento, lembra aos moradores de Castro Daire quais os impostos que estes lhe deviam pagar. Assim:
«Dom Dinis pela graça de deus Rei de Portugal e do Algarve a quantos esta virem faço saber que como a mim o Crasto Dairo houvesse a dar em cada um ano trezentos pães e três moios de linho e dois porcos e quatro carneiros e dois cabritos, dois leitões e quinze galinhas e cinquenta ovos. E um alqueire de manteiga e um alqueire de mel e uma réstia de alhos e outra de cebolas e um almude de sal e outro de vinagre e três cargas de lenha e por cera e pimenta um maravedi por razão da minha colheita que me hão-de dar João Domingos e Pero Pires, dito neto, procuradores bastante do dito concelho por poder de uma procuração bastante que eu vi e me pediram por mercê por si e pelo dito concelho que esse concelho queria dar a mim e a todos meus sucessores em cada um ano por toda as coisas sobreditas quarenta e cinco libras de dinheiro de portugueses velhos de vinte soldos a libra pelo primeiro dia de Maio. E eu, querendo fazer graça e mercê ao dito concelho, tenho por bem e mando que o dito concelho dê a mim e a todos meus sucessores pelo dito primeiro dia de Maio as ditas quarenta e cinco livras per rezam da sobredita colheita. E os ditos procuradores houveram por firme e estável para todo sempre por si e pelo dito concelho toda as coisas sobreditas e cada uma delas. E em testemunho disso dei ao dito concelho esta minha carta. Dada no Porto a vinte e um dias de Junho [ ...] El- Rey o mandou e fez Gil Anes seu tesoureiro e pelo Rabi maior João Domingues a fez, era de mil e trezentos quarenta e seis anos». (15)
Estas decisões de converter em dinheiro os foros em espécie e bem assim outras medidas tomadas pelos soberanos posteriores, terão tido um grande significado para os moradores do «Crasto». E como os direitos concedidos por um monarca a uma pessoa singular ou coletiva tinham de ser confirmados pelos seus sucessores, para garantia dos mesmos, foi graças ao cumprimento desses trâmites burocráticos que se produziram documentos preciosos para quem se debruça sobre a HISTÓRIA LOCAL. Eles se encontram na «Chancelaria de D. Manauel I».
Face ao que, em primeiro lugar, não podemos deixar de sublinhar a cedência que D. Dinis fez, por arrendamento, aos juízes, povo e concelho de Castro Daire «para todo sempre» todos os direitos que possuía no julgado e seu termo por «quinhentas libras de Portugal em cada um ano», a pagar em duas prestações: uma pelo Natal e outra pelo S. João. E poucos anos depois verter para 40 libras todos os foros em espécie que lhe eram devidos.
Em segundo lugar, o facto de o rei excluir desse arrendamento a «colheita e padroado da igreja desse lugar de crasto dairo e doutros, se as aí há», pois esses ficavam retidos para si e seus sucessores.
Em terceiro lugar, a proibição dos privilegiados, «rico-homem, prestameiros» etc. fazerem aposentadoria na vila de «crasto dairo e nas suas «aldeias», salvo por motivo de força maior. E, mesmo assim, não poderiam alimentar-se à custa dos residentes. Alimentar-se-iam somente com os «seus dinheiros» e, ficavam obrigados também a saírem do concelho o mais rápido possível, sem que aí fizessem alguma «malfeitoria», caso contrário, o rei fá-los-ia pagar em «dobro».
Perante tudo isto e face aos nossos propósitos, que é fazer coincidir o produto da investigação com o título desta obra «Câmara, Nobreza e Povo de Castro Daire» podemos concluir que a alta «Nobreza», por imposição régia, chegou tarde em Castro Daire. Por enquanto os «oficiais da Câmara» ou seja, os «juízes, vereadores e procuradores do concelho» emergem do Povo, por eleição, no sentido mais genuíno de municipalismo.
Estas decisões de D. Dinis foram por certo motivo de regozijo para o povo. É que o «direito de aposentadoria»**de que beneficiavam os privilegiados, proporcionava ocasiões para uso e abuso desse direito. Não raras vezes chegaram às cortes queixas contra esses privilegiados que, escudados nesse direito, abusavam das filhas e mulheres dos rendeiros (enfiteutas) consumindo-lhes, com a sua comitiva, tudo aquilo que eles tinham granjeado para o sustento familiar e forragens para os animais seus companheiros de trabalho.
D. Dinis seguia aqui os passos do seu pai, Afonso III. Alexandre Herculano, referindo-se ao alcance de uma medida destas junto do povo esclarece:
«De envolta com a substituição das multiplicadas rações, direituras, forragens, colheitas, etc. por uma renda certa em ouro ou prata, obtinham os concelhos, e ainda as simples póvoas ou vilares reais concessões que iam ferir a prepotência dos ricos-homens e dos prestameiros, minorando ao mesmo tempo os abusos e vexames praticados pelos oficiais do fisco. Posto que não raramente a soma convencionada com o rei excedesse o valor dos diversos encargos que pesavam sobre os município ou dos foros que pagavam os casais de qualquer aldeia, os povos compravam ordinariamente por esse preço algumas sólidas garantias. Às vezes nas vilas de maior vulto, onde havia castelos, passava aos burgueses a eleição do alcaide-mor, representante do poder supremo militar e civil, embora debaixo da condição de ser nobre o eleito e depender a escolha do príncipe e até em algumas o governador do distrito, o rico-homem era deste então inibido de entrar na povoação, salvo o caso de guerra estrangeira». (Herculano)
Por aqui se vê que as decisões tomadas por D. Dinis, não foram, seguramente, de somenos importância para as gentes de Castro Daire. Foi o rei D. Dinis que atendeu os moradores. E, como veremos a seu tempo, há de ser D. Dinis que aparece ligado à tradição de ter autorizado a utilização das pedras do «castelo» na construção da Igreja Matriz.
2 – ANO DE 1386 - A NOBREZA FIDALGA E NOBREZA VILÃ
D. João I, (1357-1433) em 1386, de passagem por Lamego, para «fazer mercê ao Convento da Ermida de D. Roberto, isentou os moradores de S. Joaninho de pagarem foros e de servirem nos ofícios e encargos do concelho (17)
Ao Mosteiro da Ermida de D. Roberto pertencia S. Joaninho e, sendo terra de Couto, por determinação régia, isentada ficava esta terra de pagar os «foros e de servirem nos ofícios e encargos do concelho».1
Até esta altura, como vemos, parece que a alta nobreza não tinha ainda assento em Castro Daire. Mas atrás dos tempos, tempos vêm e, como diz Camões «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades».
E como assim é, convém dizer neste passo da narrativa em que ordens se devia a Nobreza:
«No séculos XI a XIV a nobreza superior era constituída pelos «ricos-homens» que detinham os principais cargos governativos, administrativos e militares e acaparavam as mais extensas e rendosas propriedades fundiárias. E tinham o direito ao título de «dom» visto serem senhores de pendão e caldeira. A baixa nobreza, bastante mais numerosa era constituída nos séculos XI a XIV pelos infanções, pelos cavaleiros e pelos escudeiros. Os primeiros, que mais tarde, séculos XIV e XV, formavam como que o cerne da classe aristocrática, irão ser conhecidos por fidalgos (…) A distinção entre fidalgos, cavaleiros e escudeiros revela-se muitas vezes impossível de encontrar (…) a base económica da nobreza variou com o andar dos tempos. Nos séculos XII ou XIII, riqueza, cavalaria, nobreza e latifúndio equiparavam-se e seria difícil pensar numa coisa sem pensar nas outras (…) o próprio cavaleiro-vilão, tão característico da «fácies» social da Península Ibérica, baseava sobretudo na terra a sua fortuna.» (18)
E antes de passarmos adiante, sabedores que os ricos-homens, aqueles constituíam a nobreza superior do Reino, não podiam fazer aposentadoria em Castro Daire, como determinou o rei D. Dinis, apesar de serem eles que detinham principais cargos governativos, administrativos e militares do Reino, temos de concluir que a «governança» do concelho estava nas mãos dos ditos «homens-bons» da terra.
E isso faz-nos voltar às Inquirições de D. Afonso III, ano de 1258, para dizermos que, em Castro Daire e seu termo, não faltavam homens que usavam o título de «dom» específico de gente nobre ou nobilitada.
Entre as testemunhas que depuseram nas Inquirições, em Pepim aparece o nome de Dom Mendes; nos Braços D. Moniz e Dom Hero; em Baltar Dom Froya e Dom Durão: Em Alva e Mamouros Dom Martinho Afonso de Amaral; em Mouramorta Dom Rodrigo Froiaz e Dom Pelágio; em Ribas, Dom Nicolau, de Bugalhão; em Nodar e Eiriz, Dom Pedro Fernandes, dito Portucalense, Dom Álvaro, de Parada e Dom Lourenço Pelágio, de Alvarenga; em Vila Dom Egas Afonso; em Sobrado, Dom Soeiro Mauro; Parada, Dom Rodrigo Froyaz; Savaris, Dom Gontígio; Lamelas, Dom Pelaio;
E o título de «dom» não se colava só ao nome de alguns homens. Igualmente é de referir, o nome das mulheres que, pelo seu estatuto social, o escriba antepôs aos seus nomes o «Dona»: Em Reriz, Dona Maior; em Alva, Dona Fernanda e Dona Juliana; no Casal, Dona Godina e Dona Loba; Castro Daire, Dona Iras; Lamelas D. Godina e Dona Sol; Covelinhas (hoje Santa Margarida) Dona Teresa; Dona Maria; Baltar, Dona Godia de Linhares, mulher de Domingos Pelágio e Dona Imia, mulher de Dom Durão; Fareja, Dona Eugénia, Dona Marina e Dona Leocádia; Parada, Dona Chamoa; Midões, Dona Marina.
Trata-se, seguramente de mulheres de cavaleiros-vilãos, gente nobilitada por serviços prestados ao rei ou devido ao poder fundiário que possuíam. Cavaleiros-vilãos, elevados ao estatuto de nobres, se bem que a sua relação com a alta nobreza de linhagem nem sempre foi amistosa e pacífica, certamente por isso mesmo. Nos tempos antigos como nos modernos a inveja de ver subir quem sobe é o ingrediente mais visível da essência humana.
Os casos exemplares vêm-nos do que passou em terras que nessa altura não estavam integradas no concelho de Castro Daire. Mas nem por isso deixam de ser ilustrativos dessas más relações entre «cavaleiros de linhagem» e «cavaleiros-vilãos.
As testemunhas que foram chamadas a depor nas «Inquirições» que estamos utilizando, interrogadas sobre quem apresentava a Igreja de S. Martinho, no Gafanhão, disseram que eram os «cavaleiros» e outros herdeiros que «apresentam a mesma igreja» e que ela se situava no couto do Gafanhão. Mas interrogadas sobre quem edificou essa igreja, ou em cuja herdade ela foi edificada, disseram que ouviram dizer que «Donnus Beloy, villanus, fecit ipsam eclesiam in sua própria hereditate, et milites de Amaral filiaverunt eam per forciam». (Inquirições-1258)
Igreja construída pelo vilão, D. Beloy, na sua própria herdade, foi depois tomada, à força, pelos «cavaleiros» de linhagem. De pouco valia ao vilão Beloy usar o título de «dom». Os «milites», vinham de outra estirpe e quem mandava ali não era um «villlanus» qualquer, mesmo que ao seu nome antepusesse o título de «dom».
E o mesmo aconteceu com um tal Calvete, vilão, a quem pertencera a vila de Nodar. Assim o afirma a testemunha João Gonçalves, de Covas do Rio, dizendo que «a vila de Nodar foi de Calvete, vilano e Garcia Soeiro, da Ameixiosa, cavaleiro, tomou-lha pela força e legou-a por testamento a S. João de Pendorada». Isto no tempo de D. Afonso, pai de D. Afonso III.
Ora foram certamente atitudes destas e outras semelhantes, das quais os monarcas tomavam conhecimento, que D. Dinis proibiu os poderosos ricos-homens de se aposentarem na vila de Castro Daire e suas aldeias. Isto a não ser que aqui chegassem à noite e, caso ficassem, tinham de comer pelos «seus dinheiros», saindo logo no dia seguinte, sem fazer cá «nenhuma malfeitoria que se assim fizesse far-lha-ia em todo pagar em dobro».
3 - ANO DE 1475 – CARTA DE D. AFONSO V
Chegados que somos ao reinado de D. Afonso V (1432-1481) este monarca concede uma carta de «graça e mercê» a Fernão Pereira, nos seguintes termos:
«Dom Afonso, por graça de Deus rei de Castela, Deão de Portugal de Toledo e de Galiza e de Cecília e de Córdova de Múrcia e de Jaem, dos Algarves, de Aquém e de Além mar em África, de Gibraltar, de Aljezira e foi da Biscai e de Molina, a quantos esta carta virem fazemos saber que nós querendo fazer graça e mercê a Fernão Pereira, alcaide-mor de Guimarães, pelo duque, nosso muito amado e prezado sobrinho, temos por bem e queremos que daqui em diante, em sua vida, ele possa por os juízes em sua terra de Castro Daire, os quais se chamaram por ele sem embargo de quaisquer capítulos de cortes e ordenações em contrário. E porém mandamos ao nosso corregedor naquela comarca e a outros quaisquer oficiais, pessoas a que o conhecimento deste pertencer e esta nossa carta for mostrada que deixem assim ao dito Fernão Pereira pôr na dita terra de Castro Daire os ditos juízes que se chamem por ele, sem lhe porem nem consentirem alguma dúvida, nem outro embargo, porquanto assim é nosso mercê. Dada em Canossa a trinta dias de Outubro. Pedro Álvares a fez, ano de mil quatrocentos e setenta e cinco, pedindo nós ao dito». (23)
Fernão Pereira[1], de posse desta carta régia afonsina, com o direito de nomear os «juízes» para a Câmara de Castro Daire, não se esqueceu de pedir a sua confirmação a D. João II, (1455-1495) assim como o seu filho, João Pereira, fez o mesmo junto de D. Manuel, (1469-1521).
Na primeira confirmação, solicitada ainda por Fernão Pereira, a D. João II, dada em Évora no ano de 1492, o rei confirmante lembra que «os juízes que assim puser sejam por eleição do concelho». E na confirmação seguinte, dada em Alcáçovas no ano 1495, o monarca lembra a Fernão Pereira que «os tais juízes que assim puserem tenham a confirmação do corregedor da comarca e que depois de confirmados não possam pelo dito Fernão Pereira ser removidos até acabarem o seu tempo».
E aqui temos como Fernão Pereira, «alcaide-mor de Guimarães», a pedido do duque e «muito amado sobrinho» de D. Afonso V, recebeu deste a carta de privilégio que lhe permitia nomear os «juízes» para Castro Daire. Terá sido ele o primeiro homem que, refastelado nos aposentos do castelo, longe dos ares da serra do Montemuro, passou a interferir na «governança» do concelho ao nomear os «juízes» que integravam os «oficiais da Câmara», ditos noutros documentos «justiças da terra», posteriormente com a designação de EXECUTIVO MUNICIPAL. E para que tal privilégio não fosse perdido é ainda o mesmo privilegiado que pede confirmação dele a D. Manuel I, bem como o seu filho João Pereira. Ora vejamos.
4 - ANO DE 1511 - CONFIRMAÇÃO DE CARTA POR D. MANUEL
«D. Manuel, etc. a quantos esta nossa carta virem fazemos saber que por parte de João Pereira, fidalgo da nossa casa nos foi apresentada uma nossa carta de confirmação que Fernão Pereira, seu pai, que Deus haja tinha e da qual o teor é este que se segue (…) E pedindo-nos o dito João Pereira, por mercê, que lhe quiséssemos confirmar a dita carta como a tinha do dito seu pai. E nós, visto o seu requerimento e querendo-lhe fazer graça e mercê, temos por bem e lha confirmamos e havemos por confirmada assim e maneira. E tão inteiramente como nela em tudo é contido. E assim mandamos que se cumpra e guarde sem outra dúvida nem «impedimento que a ele seja posto, porque assim nos apraz e é nossa mercê. Dada em Lisboa, 15 de Abril de 1511». (24)
Cá está. Se D. Dinis proibia a alta nobreza de se aposentar em Castro Daire e seu termo, Fernão Pereira, alcaide-mor de Guimarães e o seu filho João Pereira, fidalgo da Casa Real, foram os primeiros elementos da alta nobreza que, mesmo ausentes do concelho, passaram a ter o privilégio de influenciar a governança local. E não vão ser os únicos que, de longe e ao longo dos séculos, manejaram os cordelinhos do seu poder e das suas influências, visando os seus interesses pessoais, de família ou de amigos. A cunha, esse processo tão arreigado entre nós de colocar amigos aqui ou ali tem, de facto, raízes muito profundas na cultura portuguesa.
5 - ANO DE 1513 – CONFIRMAÇÃO DA CARTA POR D. MANUEL
Já vimos acima as medidas que D. Dinis e seus sucessores tomaram relativamente a Castro Daire. E, de carta em carta, de confirmação em confirmação, chegámos ao ano de 1513. Foi ainda D. Manuel I, a quem foram presentes tais cartas que confirmou, assim:
«Pedindo-nos o dito concelho por mercê que lhe confirmássemos as ditas cartas como nelas é contido e visto por nós seu requerimento e querendo-lhe fazer graça e mercê temos por bem e lhas confirmámos e havemos per confirmados assim e na maneira que se neles contem E isto se eles estão em posse de tudo o que nelas é contido. E assim mandamos que se cumpram e guardem sem contradição nem dúvida alguma ou outra que a elas seja posto por que a assim é nossa mercê. E por sua guarda e firmeza disso lhe mandámos dar esta carta por nós assinada e selada do nosso selo pendente. Dada em Évora a vinte e oito de Fevereiro. Gaspar Rodrigues a fez, ano de mil e quinhentos e treze.* (25)
A par da confirmação das cartas de «graça e mercê» dadas pelos seus antecessores, D. Manuel I, não ficou na História de Castro Daire apenas como soberano confirmante de documentos passados pelos seus antecessores. Também ele resolveu tomar uma medida original, relativa aos «cristãos-novos». Assim:
6 - ANO DE 1517 – CRISTÃOS NOVOS
D. Manuel, etc. a todos quantos esta nossa carta virem fazemos saber a todos os corregedores e Juízes e Justiças e pessoas dos nossos Reinos a quem esta nossa carta for mostrada e o conhecimento dela pertencer, por qualquer maneira que seja que nos apraz por fazermos graça e mercê aos cristãos novos moradores em Castro Daire, que daqui em diante eles, nem nenhum deles, não sejam constrangidos a irem com nenhuns presos, nem os guardar, nem tirarem nenhuns róis de dinheiro que se na dita vila hajam de tirar, nem menos sejam jurados, porque havemos por bem e queremos que das sobreditas coisas sejas escusos e não sejam constrangidos a servir nelas (…) e vos mandamos a todos em geral, e a cada um em especial, que assim o cumprais e guardeis e façais cumprir e guardar e assim pela maneira que se nesta nossa carta contem porque assim é nossa mercê. Dada em Lisboa vinte e seis dias de Maio. Fernão de matos a fez de mil quinhentos e dezassete» (26)
Por esta medida de D. Manuel inferimos claramente os vexames a que eram submetidos os «cristãos novos». Judeus convertidos, olhados de esguelha pelos «cristãos velhos», sujeitos aos trabalhos e ofícios de mau-olhado pela restante comunidade, constrangidos acompanhar e guardar os presos, obrigados a fazerem o róis dos dinheiros que na vila se deviam pagar e recolher, não deixariam de ficar eternamente gratos ao Rei por os ter libertado de tais grilhetas e ferretes.
7 - ANO DE 1666 – A FORÇA DA TRADIÇÃO ORAL
E porque adotamos a metodologia de seguir cronologicamente os factos que dão corpo a esta narrativa, temos de retornar a D. Dinis por força de uma tradição oral que Jorge Cardoso verteu para letra de forma no seu «Agiologio Lusitano», Tomo III, edição de 1666.
Segundo essa tradição o rei D. Dinis teria consentido que as pedras do castelo, como referimos mais acima, fossem utilizadas na construção da igreja, a pedido da população.
Eis o que ele no diz:
« (...) Conta-se que passando por aqui el-rei D. Dinis lhe pediram os moradores deste castelo, para fabricarem de sua pedra uma Igreja. E dando-lhe de boa vontade fizeram a que hoje serve de Matriz, enriquecida do presente com Relíquias que nela acharam há poucos anos e com milagres de cada dia por meio do pão que nela se toca e benze a todo o tempo o qual fica isento de corrupção (...)» (27)
Esta tradição, passada a escrito em 1666, cuja fundamentação se não encontra em documentos precedentes, já levou alguns historiadores a despi-la de qualquer sentido pelo facto de D. Dinis ter sido um construtor de castelos e não um destruidor deles. E tudo isto porque a palavra «castelo» se sobrepôs ao velho «crasto» e os conduziu à imagem de outros castelos medievais com torre de menagem e tudo, morada que eram de nobres cavaleiros, os ricos-homens, os mesmo que D. Dinis proibiu, como vimos, de assentarem arraiais na vila e termo, a fim de cá não poderem fazer as tropelias do costume, usando e abusando do direito de «aposentadoria».
Mas esta tradição pode não estar assim tão destituída de sentido, como pensou Pinho Leal e o diz no seu «Portugal Antigo e Moderno», vol 2, pp. 203, designadamente:
«Não acreditamos muito na tradição, por três motivos: 1º - Porque aqui há muita abundância de pedra e não valia a pena desmancharem o seu castelo e importunar o rei com tão pouca coisa. 2º - Porque nesse tempo era uma grande honra ter um castelo e os daqui não haviam de querer perdê-lo. 3º - Porque sendo D. Dinis um incansável construtor de castelos e torres, mais facilmente consentiria em o mandar reedificar do que em deixá-lo destruir.
Eu entendo é que o castelo caiu em ruínas e depois de estar em terra, o povo (como em muitas outras partes) deu á pedra a aplicação que quis».(28)
Amorim Girão, em 1940, não se desviando muito da tradição que dava a Igreja feita feito com as pedras do «castelo», diz a tal respeito:
«Quando a antiga posição castreja perdeu a sua importância, por desnecessária e inadaptada às novas condições de defesa, edificou-se nesse ponto a igreja, à qual se deu por esta forma o lugar mais seguro. Atrás dela, em massa compacta, surgiram as novas habitações” .(Girão, 1940:144) (29)
E em 1979, Gonçalves da Costa adita aos argumentos expendidos que na plataforma do velho «castro», em tempos «pré-nacionais», se terão formado «núcleos cristãos à volta de uma ermida ereta em honra de S. Salvador» e sendo certo que «São Pedro viria a impor-se como centro paroquial visigótico» (30)
Anos volvidos, ou seja, em 1986, Inês Vaz, arqueólogo, alude à mesma tradição explicando: «o castelo de Castro Daire estaria onde hoje é o Centro de Saúde (ao lado da Igreja) e teria sido demolido com autorização do rei D. Dinis. Não nos custa a crer que o castelo ali se situasse, porque efetivamente a descrição que deixamos desta zona, faz lembrar uma fortaleza com uma muralha envolvente e uma torre ao centro». (31)
Ora eu penso que, das afirmações feitas por todos estes autores, são perfeitamente aceitáveis as proferidas por de Amorim Girão e M. Gonçalves da Costa, mas não tanto o que diz Pinho Leal e Inês Vaz, por considerar que eles não atenderam à diferença que etimologicamente distingue «castelo» de «castro», ao abordarem a tradição atribuída a D. Dinis associada ao binómio «castelo/igreja», construções sitas no mesmo espaço.
Pinho Leal discordou do conteúdo da tradição dizendo que D. Dinis era um construtor de castelos e não ou destruidor deles. Inês Vaz, aceita a existência ali de um «castelo» e vai ao ponto de sugerir que entre muralhas estaria uma «torre ao centro».
E é aqui que bate o ponto.
Estes e outros autores ao falarem de «castelo» não pensaram noutra coisa que não seja o clássico castelo medieval, com as suas muralhas, ameias e torre de menagem. Esqueceram o velho «crasto» amuralhado integrado na «civilização castreja», o mesmo cuja etimologia nos explicou muito bem Viterbo, ao fazer a distinção, por vezes confundida, entre os dois nomes. Vejamos o seu Elucidário:
«Castrelo e crestelo»: estes nomes trazem a sua origem de ‘castro’ ou ‘crasto’ que se tem equivocado com ‘castelo’ que igualmente é diminutivo de ‘castrum’. Porém na arquitetura militar antiga houve, nestas palavras, não pouca diferença. Aos arraiais de todo o exército, com suas quatro portas, cada uma em seu lado, cercadas de fosso e valado se chamou ‘castra’. A um pequeno arraial e só para uma ou outra legião ou brigada deram o nome de ‘castrum’. Ora estes pequenos arraiais, quanto menos fornecidos de gente e armas, tanto mais se procuravam pôr em lugares desabafados e eminentes e guarnecidos por natureza, quando não fosse por arte; e a estes chamaram ‘castrelos’ ou ´crestelos’».(32)
Ora aí temos. Andando «castelo» equivocado com «castro», esclarecida a diferença entre os dois conceitos, a tradição atribuída a D. Diniz responsabilizando-o por ele ter autorizado o povo de Castro Daire a utilizar a pedra do velho «castro» na construção da igreja, não é a mesma coisa que o monarca ter autorizado a demolição de um «castelo» na conceção corrente do termo. E isto, sem pôr de parte a hipótese já por nós avançada de que a igreja, naquele tempo em que nobreza e clero andaram em quezília com os monarcas, bem pode ter-se aproveitado da pedra sem qualquer autorização do Rei Lavrador.
Seja domo for, uma investigação minuciosa nas paredes da Igreja, presentemente despidas da argamassa que as revestiu durante séculos, bem como nas paredes das moradias em redor dela e nos muros se socalco das quintas vizinhas, mostra que não são poucas as pedras nelas incrustadas com sinais evidentes de terem pertencido a construções anteriores, desde pedras feitas com régua e esquadro e outras apenas trabalhas a «pico grosso». São «pedras que falam».
** Direito de aposentadoria era o «direito» que o senhorio da terra tinha de nela ter acolhimento aquando da visita aos seus domínios.
1 Cf. meu livro «Mosteiro da Ermida», editado em 2000
[1] Os Nobiliários disponíveis na Net referem um Fernão Pereira e o seu filho João (1605) que nada terão a ver com estes protagonistas pois viveram em tempos diferentes.
* cit. ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 46, f, ,7. Livro I da Beira, f. 37, Livro 3 da Beira, fl. 92 e Livro 17 de D. João III, f, 95 v.