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quinta, 19 janeiro 2023 14:03

HERÓIS DA SERRA (6)

Escrito por 

VALE CUTERRA

Se bem se lembra, leitor amigo, a minha crónica anterior reportou-se ao topónimo VALE CUTERRA, à sua presumível localização medieval e atual, topónimo identificador de propriedades rústicas, leiras e herdades, sem referência a qualquer povoado ou casal residentes.

 

1 - Vale Cuterra-1E claro ficou que, nesse sítio, pelos depoimentos das testemunhas feitos sob juramento, algumas propriedades sujeitas a pagamento de foros régios, foram parar à Igreja de Castro Daire. Assim o disse Domingos Viegas, de Castro Daire, ao afirmar que o seu sogro, Domingos Pedro, tinha deixado a essa Igreja, em testamento, “uma leyra forariam de jugata in terminus de Castro in loco dicitur Vallis Cuterri”. Atitude secundada por Maria Viegas, de Covelinhas (que mais tarde virou Berlengas/Santa Margarida, como veremos noutra parte deste trabalho), deixando à mesma Igreja 2 “leyras”, uma delas “jacet in Vale Cuterri”. E, o mesmo fez Leocundina, de Folgosa, mãe de Domingos João, que, segundo ele, também ela, no tempo de D. Sancho, irmão de D. Afonso III, deixou em testamento “unam hereditatem forariam Regis in termino de Castro, in loco qui dicitur Valis de Guterri”.

Posto o que, sabido e divulgado tudo isto, JOAQUIM CARVALHAL, nascido no Brasil, mas com ascendência no Custilhão, cidadão que, a partir da leitura de alguns livros meus, anotando os nomes de pessoas e lugares dispersos nas suas páginas, resolveu pesquisar por conta própria e, não só confirmar o “dito e o feito”, mas também conseguir valiosa documentação extra e conexa, que se dispôs a ceder-me por forma a fazermos, em parceria, mais luz sobre isso e até a ampliar, significativamente, os conhecimentos que dessa documentação possam vir e defluir.

Retornado ao torrão de família ainda jovem, fez o estudo secundário em Castro Daire,  chegado à ucha serrana, nela “pousou” para requalificar o habitáculo natal, mas também procurar saber o que estivesse ao seu alcance sobre as gentes do lugar, incluindo as suas origens avoengas.

Um desses meus livros foi “MISERICÓRDIA DE CASTRO DAIRE” editado pela Santa Casa, em 1990. Ali me refiro a Domingos Pires do Rego, que em 1598, foi ouvido pelas “justiças da terra” (presidente e vereadores municipais) a fim de eles apurarem os encargos dos povos do concelho destinados ao funcionamento e sustentabilidade do “Hospital e Capela do Espírito Santo”, dado ter desaparecido o «COMPROMISSO»  loriginal, onde tais encargos estavam registados.

2-Ruinas-Vale e VilarOnde é que, nos tempos atuais, temos ouvido algo semelhante? Documentos que desaparecem ou se extraviam, dificultando, assim, a investigação e prática da justiça, quando algo suspeito recai sobre os gestores da “res publica”?

E foi assim:

 “Ano do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e noventa e oito anos, aos seis dias do mês de Março em esta vila de Castro Daire em a casa da Câmara, estando presentes António Fernandes e Domingos Esteves, juízes ordinários na dita vila ao presente ano e bem assim Bastião Monteiro e Pedro Anes, vereadores, e Diogo Rodrigues, procurador do concelho, por eles foi dito que eles, haviam ora no­vamente apresentado por administrador da capela do Hospital da dita vila ao Lic. Bernardo Tomaz nela morador, por estar vaga a dita administração e lhes pertencer a apresentação dela. E porquanto o compro­misso do dito hospital havia muitos dias que era fur­tado da resma dos papeis do Livro, a fim de compor as propriedades e casais do dito hospital e por este respeito não sabiam as obrigações que os ditos adminis­tradores tinham antigamente para cumprir com a dita e amparo dos pobres do hospital, queriam ora tomar informação por testemunhas antigas e que mais razão tinham de o saber e o declarassem por seu juramento dos Santos Evangelhos, o que logo se fez na forma seguinte: Álvaro de Almeida, escrivão da Câmara em a dita vila o escreveu.

 «A testemunha Domingos Pires do Rego, morador no lugar do Christilhão (hoje Custilhão), termo da dita vila, testemunha chegada para esta diligência e infor­mação, jurado aos Santos Evangelhos e perguntado pelo costume disse nada. De sua idade disse ser de setenta anos e mais não disse. E perguntado pelo que sabia das obrigações que os administradores anti­gamente tinham de cumprir com a dita capela e pobres do hospital disse que o que disso sabia era mandarem dizer em cada um ano cinquenta missas na dita capela as quais se diziam às quintas-feiras de cada semana, e na casa do hospital duas camas para os pobres e enfer­mos, uma limpa e outra somenos e que provejam os ditos pobres e enfermos das consolações necessárias e lenha para o fogo e de uma hospitaleira para ter cui­dado de agasalhar e amparar os ditos pobres; e quanto aos rendimentos do dito hospital sabia que antigamente se pagavam na dita vila, Farejinhas, Folgosa, Baltar, Fareja, Lamelas, Braços, Vale de Matos e Santa Mar­garida um alqueire de vinho cada um à bica e os viúvos e viúvas a meio alqueire de vinho e os mais moradores do termo a meio alqueire de pão centeio pela medida velha e algum de milho e os viúvos e viúvas a quarta de pão e sabia que no lugar de Savariz havia certos casais que pagavam certo foro, que eram vinte alqueires de pão para cima e um cabrito e certa lenha e já ele testemunha recebera sendo procurador do concelho e era público que o Lic. Jorge de Miranda recebera certo foro no lugar das Monteiras, termo desta vila que pertencia ao dito hospital e paga disso seiscentos réis que dá um ano ao hospital e cada um ”.

3-Polgras E RUINASDomingos Pires do Rego, natural do Custilhão, não era uma testemunha qualquer. Vimos que já tinha exercido o cargo de PROCURADOR DO CONCELHO e, como tal, sabia do que falava. Ele próprio, no desempenho das funções que tivera, já tinha recebido os produtos identificados e quantificados. E convém lembrar, agora, que Custilhão não incluia o lote das “aldeole” referidas nas Inquirições de 1258. Portanto foi uma povoação que nasceu depois disso. Certo é que, em 1598, já era habitada por gente “de sociedade” como era Domingos Pires do Rego. De resto esta aldeia, qual atalaia virada a sul a vigiar o Paivó e as terras circundantes, era uma povoação de respeito entre as demais que formavam o universo concelhio, no século XVIII. Em 1731, era a terceira em número de irmãos da Irmandade das Almas, fundada em 1659. Ao todo 90 irmãos. Só ultrapassada por Folgosa, com 136 e Farejinhas com 253, tal como deixei escrito nesse meu livro “Misericórdia de Castro Daire”, editado em 1990, após laboriosa investigação.

Anotado o nome, a naturalidade, o assunto e a data (ano de 1595), não passou despercebido a Joaquim Carvalhal um texto publicado no “Boletim da Casa Regional da Beira-Douro”  (vol. 22, página 29), onde se diz que, quase cem anos depois, isto é, em 5 de abril de 1696, se deslocou ao Custilhão, termo de Castro Daire, o procurador das freiras do Mosteiro de Arouca, o Padre Frey Joseph, a fim de, conjuntamente com o escrivão, se fazer um auto de posse e notificação “aos caseiros dos casais que se lhe paga foro de Baltar e Custilhão, para que conhecesse a dita Abadessa e mais religiosas do dito Convento de Arouca por senhorias do dito foro e casal”.

Os leitores tomaram boa nota? Lembram-se ainda das propriedades rústicas que, no Vale Cuterra, em 1258, devedoras que eram de foros ao Rei, mudaram de proprietários e estes, por legado testamentário, subtrairam ao monarca os foros devidos? Lembram-se do desaparecimento do “compromisso” onde estavam registados os encargos das povoações do concelho para com o Hospital do Espírito Santo, de Castro Daire, obrigando os vereadores a ouvir testemunhas idóneas para reconstituirem as obrigações perdidas, entre as quais Domingos Pires do Rego, do Custilhão? Corria o ano de 1595.

Passados, pois, mais de 300 anos, avisadas eram as freiras do Convento de Arouca. E, por isso, mandaram o seu procurador serra fora e ali mesmo, numa simples “rua pública” se lavrou o auto de posse e notificação dos caseiros de Baltar e Custilhão, visando que eles reconhecessem a Abadessa e mais Religiosas desse Convento, como “senhorias do dito foro e casal”.

Assim mesmo. Quem se dispuser a queimar as pestanas sobre os primórdios da nossa nacionalidade, sobre a conquista do território, do seu povoamento e exploração agro-pastoril, emprazamentos com senhorios e enfiteutas, autos e termos lavrados nos escritórios dos tabeliães ou na rua simples pública, constatará que nisto de propriedades e foros era “um ver se te avias” dos possidentes a chamar seu o que era de outros, com documentos ou sem eles.

Exagero meu? Não. Degustemos o seguinte naco de prosa deixado por Aquilino Ribeiro no seu livro “PRÍNCIPES DE PORTUGAL, SUAS GRANDEZAS E MISÉRIAS”,  reportando-se aos nossos primórdios pátrios:

4- VILAR E VALE CUTERRARoubavam-se mais ou menos de pé fresco uns aos outros e em caterva abatiam-se sobre as terras fartas e latinizadas do Sul. Em três tempos, então, passavam-se os galfarros a tudo o que tivesse a aparência de boa presa. O ditado ‘olho vê, pé vai e mão pilha’ marca o ritmo hispânico quanto a tais empreendimentos (...) pilhar o vizinho celtibérico ou vetão, apaniguado do romano, era virtude e não crime. Não mareiam pois a coroa de louros de Viriato os adjetivos pejorativos que Valério Máximo, Apiano e Cassiodoro lhe infringem, tais como ladrão refinado e capitão de quadrilha”.

E atualmente como vamos nós, túrdulos velhos, celtas, celtiberos, lusitanos? Nós, aculturados durante a romanização, a ler e a falar uma língua que “quando imagina, com pouca corrupção crê que é latina”, como dizia Camões?

Empresários, políticos, gestores públicos, governantes nacionais e autárquicos? Como vamos nós, túrdulos velhos, celtas, celtiberos, lusitanos, na gestão da “res publica”, dos caminhos carreteiros e vicinais históricos, das canadas de transumância, dos trilhos romeiros, dos baldios e das fontes públicas?

Como vamos nós por cá? À falta de não vermos “passar os combóios”, vemos claramente passarem os séculos. E vemos também as poldras graníticas postas na travessia dos rios, permitindo livremente “a pé coxinho” a passagem entre margens, darem lugar às pontes e viadutos das autoestradas concessionadas com substanciais portagens cobradas por eletrónicos e invisíveis publicanos. E vemos as serras, todas elas, outrora povoadas de agricultores e pastores, serem agora infestadas de geradores eólicos, donos vindos de nenhures, a trasnformarem, de pé firme, o vento em euros que voam para destinos ignotos. E os nativos, os indígenas, os autótones, submissos e obedientes, impedidos somos, por sinais de trânsito, rodar nas estradas feitas. Século XXI, gentes estranhas, domínios novos. Outros senhorios. Outros enfiteutas. Outros foros.

5- POÇANHEIROE, no decurso de tempo, o VALE CUTERRE rústico de “leyras e hereditates” sujeitas a “jugata”, em 1258, parece ter evoluído para “lugarejo” com referência, ali, de nascimentos e óbitos no século XVIII. Depois desse século parece ter deixado de se ouvir ali gemido de menino e berro de cabra a parir. Mas eu os senti e ouvi, quando, em 2004, fotografei as ruínas coladas ao Vale, na vertente norte do Monte da Lapa. Aquelas que, sem desmentido de provas escritas ou arqueológicas, eu não descarto serem o que resta dessas habitações e casebres. Tudo muito conhecido por caçadores, pastores e lenhadores, mas totalmente ignorado por curiosos e estudiosos da HISTÓRIA.

E, neste ano de 2023, os matos abafaram totalmente o resto desse património edificado, registado, embora, pela minha câmara fotográfica.

E contemplando eu essas ruínas, as pedras me falaram da vida dos seus habitantes. Dos seus trabalhos e dias. E na pedra dita “ENGENHO” e “POÇANHEIRO”, levantada à boca daquela mina, no topo da lameira, vi a maestria do pedreiro/canteiro que, à força de uma broca saída de qualquer forja das redondezas, ao jeito da marra, da maceta e do ponteiro, com técnica e arte, régua e esquadro, se tornou uma peça hidráulica capaz de esvaziar automaticamente uma poça cheia de água, dispensando o seu proprietário dessa tarefa. Fosse dia ou fosse noite. Chovesse ou nevasse. (continua) 

Vide link  https://youtu.be/B9OaFAYC1yQ

Abílio/janeiro/2023

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.