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segunda, 02 novembro 2020 14:04

QUINTA SETE PÃES

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 “SETE PÃES”

Apesar de estar avisado pelo PROFESSOR DOUTOR Moisés Espírito Santo (sociólogo, etnógrafo e etnólogo) através do alerta por ele deixado no  “Ensaio Sobre a Toponímia Antiga”, colado ao seu livro “Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa”, editado em 1988, onde diz que “para a compreensão dos nomes exigem-se conhecimentos e métodos minuciosos ligados ao trabalho de terreno e sobretudo a atenção para valores que escapam a outros profissionais. Descobrir a significação desses nomes é penetrar na lógica do “batismo dos sítios”: quais o sítios e quem lhes atribuiu o nome; a funcionalidade desses nomes; a relação dialética entre os nomes, os sítios e as pessoas que neles moram; o critério da atribuição de um nome e não de outro, as resistências à evolução ou ao desaparecimento dos nomes antigos, etc” (pp 255/256), defensor que sou da preservação dos TOPÓNIMOS pela substância histórica que transportam, atrevo-me a pisar o trilho que me leva à “QUINTA SETE PÃES”, sita ali, entre os Braços e Vale de Matos.

 

 

PRIMEIRA PARTE

QUINTA SETE PÃES-1 - REDPorém, para entendermos esta curiosa designação, temos de trilhar alguns caminhos burocráticos e saber que os terrenos assim designados eram a “quinta parte de uma propriedade de terra lavradia com videiras e água no sítio dos Sete Pães, limite dos Braços, freguesia de Castro Daire (...) [parte de um] prédio que pertenceu ao herdeiro José Pinto de Oliveira no inventário por óbito de sua mãe Margarida Augusta dos Prazeres que foi e Castro Daire [parte essa que] em 25 de fevereiro de 1921, foi dividida e demarcada em cinco partes iguais aos co-herdeiros José Pinto Teixeira, mentecapto, Amélia Pinto de Oliveira, solteira, maior, Delmira Pinto de Oliveira, casada com Aarão da Silva e Acácio Pinto de Oliveira, casado com Cordália Teixeira Cardoso, todos desta vila de Castro Daire”.

Sabido, assim que, em 1921, se tratava de terra “lavradia com videiras e água”, sem referência a qualquer habitação, o “sítio” designado “SETE PÃES”, algures no tempo, volveria terreno habitado e, consequentemente, daria origem à quinta cujo nome PLACA - REDchegou até nós, mesmo depois do terreno ser repartido, vendido e comprado pelos atuais moradores que tiveram o bom senso e o bom gosto de manter o TOPÓNIMO, graças ao qual me deram a oportunidade de me deslocar no fio da HISTÓRIA e, assim, poder trazer à luz dos tempos que correm a plausível explicação do nome que, sem mais delongas,  presumo ter advindo de um antigo “bem de alma” deixado em testamento e cumprido, religiosamente, pelo testamenteiro, ao ponto de se tornar, primeiro, nome de “sítio” e, depois, nome de “quinta”.

E porque alvitro eu, perguntarão alguns, que tal topónimo terá resultado de um “bem de alma”?

Respondo de pronto: os testamentos (e eu li tantos) fornecem sobejas provas dos testadores incumbirem os seus testamenteiros de cumprirem e satisfazerem os legados pios estipulados, para sufrágio da suas almas ou das pessoas nomedas. E, entre tais legados, entrava, por regra, a destribuição de “pão e vinho aos pobres”, fosse no momento do enterro do testador, fosse ao longo do tempo em certos períodos do ano, conforme aprouvesse ao testamenteiro.

SEGUNDA PARTE

 Trago à colação três os exemplos extraídos de testamentos. Um feito em CASTRO VERDE e dois feitos em CASTRO DAIRE.

Comecemos pelo de Castro Verde.

ALENTEJO - Cópia1 - Foi um testamento feito em 8 de março de 1867. Semelhante a mil outros, tem logo à entrada os nomes de «Jesus, Maria e José», imediatamente seguidos pela declaração de que a testadora é «Christã e Catholica Romana, que como tal sempre tem vivido e se propunha morrer, quando Deus Nosso Senhor for servido separar a sua alma de seu corpo».

A testadora, de seu nome Perpetua Joaquina Carlado, a residir em São Marcos de Ataboeira, entendeu ser o tempo de ditar as suas últimas vontades. Era o dia oito  de Março, de 1867. Não se tratava de uma mulher qualquer. Solteira, sem ascendentes e descendentes forçados, era possuidora de herdades e fazendas bastantes que «para bem de sua alma e descargo de sua consciência», entendeu distribuir por parentes, amigos,  afilhados e criados e, dessa maneira, buscar o sossego eterno. (...)

Solteira, não deixou no desamparo "Luís António, que vive em sua companhia»,  deixando-lhe   «a metade do moradio da sua herdade da Corte Ruiva para o mesmo morar enquanto vivo, mais a «pensão anual de dez alqueires de trigo»  imposta na parte que ela tinha na herdade do Cartulo, propriedade que, pelo serviço pio prestado, deixava ao testamenteiro primeiramente nomeado e, na falta dele, a  «Cesario de Brito, do Monte do Laranjo». E ciente morria de que, fosse qual deles fosse, a sua vontade seria cumprida.

E dessa sua última vontade, beneficiados foram também, por força testamentária, “os pobres e necessitados”, assim:

Item disse ela testadora que se dê por amor de Deus a pobres necessitados trinta alqueires de farinha em pão cozido que serão distribuídos por seu testamenteiro (...) como bem lhe aprouver; e bem assim que seu testamenteiro distribua pelos pobres necessitados, d'esta freguesia de São Marcos, cento e vinte alqueires de trigo o que satisfará dentro de um anno depois do seu falecimento. Item disse ela testadora que se dê por amor de Deus a pobres necessitados da freguesia de Bringel a primeira renda que se cobrar na sua herdade do Malagão depois do seu falecimento”.

Tal qual. E deixando eu Castro Verde (de alguma coisa me valeu rodar anos seguidos na ESTRADA NACIONAL nº 2, ao volante de uma CITROEN DYANE, lá e cá, por dever de ofício e ânsia de conhecimento, pude debruçar-me sobre o pensamento escatológico das nossas gentes, através das cláusulas testamentarias.

CUJÓ - Cópia2 - Desta feita boto os olhos no TESTAMENTO de João Pereira de Morais, de Cujó, feito em 1850, para ficarmos a saber:

Eu, João Pereira de Morais, viúvo, lavrador, morador no lugar de Cujó, freguesia de São Joaninho, julgado e concelho de Castro Daire, achando-me adiantado em anos, determino fazer meu testamento da forma seguinte: quero ser sepultado na capela de Nossa Senhora da Conceição da minha freguesia e ofertado, segundo o uso e costume, que por minha alma se me digam cem missas e mais doze de tenção esmola ordinária e por uma só vez; que aos pobres se distribuam doze alqueires de pão cozido tirados do monte ou de toda a minha meação e será repartido até pão à porta da capela pelo melhor modo e quando meus herdeiros e testamenteiro melhor puder, mas dentro em meio ano” (...)

Sobrescrito: testamento do testador João Pereira de Morais, viúvo do lugar de Cujó, deste Julgado, fechado, cosido com três pontos de linha preta cobertos de lacre encarnado. Aprovado em trinta e um de Agosto de mil oitocentos e cinquenta por mim tabelião Inocêncio Teixeira de Amaral. E não continha mais nada. Castro Daire, 31 de Março de 1852- eu José Maria Duarte Cerdeira, escrivão da Administração o subscrevi e assinei».

 

 

 

3 - Num outro testamento, tresladado para o respetivo livro, em 20 de setembro de 1852, assinado pelo escrivão da Administração, José Maria Duarte Cerdeira, com a nota escrita no cabeçalho “ Cumprido em agosto de 1860”, podemos ler o seguinte:

VALE DE MATOS - REDJesus, Maria, José = E nome da Santíssima Trindade, Padre Filho e Espírito Santo, três pessoas realmente distintas, e hum só deus verdadeiro, em quem eu, Alexandre Ribeiro, casado com Rita Pereira, deste lugar de Vale de Matos, freguesia de Castro Daire, bispado de Lamego, firmemente creio e nesta fé vivo e espero vir a morrer, por me achar de avançada idade e de cama com algumas moléstias que Deus me deu, mas muito em meu perfeito juízo e entendimento que Deus foi servido dar-me, por isso determino mandar fazer este meu testamento e o faço muito de minha e livre vontade, sem indução de pessoa alguma da maneira seguinte = primeiramente encomendo a minha alma a Deus e a todos os Santos e Santas do céu sejam meus advogados quando minha alma for para a Bem-aventurança. Determino logo que meu corpo faleça, seja vestido e envolto na forma do costume decentemente e sepultado dentro da igreja donde sou freguês e que por minha alma se digam quarenta missas. Mais duas missas por meu Pai e minha Mãe, mais outra ao meu Anjo da Guarda. Mais outra por penitências mal cumpridas e falta de rezas. E que se dê a quem acompanhar o meu corpo à sepultura dois alqueires de pão cozido e um cântaro de vinho de esmola no dia do meu enterro, tudo por uma vez somente. E tenho dito ao espiritual (...)”

E seguem-se as deixas dos bens materiais (temporais) e os nomes dos contemplados.

 

 

TERCEIRA PARTE

Isto mesmo e assim mesmo. A distribuição de pão pelos pobres, por via testamentária, seja em Castro Verde, seja em Castro Daire (a distância de 500 quilómetros a separar estas duas localidades não colidia com a redação dos testamentos. Os homens das leis estudavam em Coimbra, e dispersos pelo país inteiro, fazendo uso do papel, da tinta e da  pena de pato, sabiam a cartilha de cor). E neste ultimo caso,  mesmo à beirinha do sítio designado “SETE PÃES”, entre Braços e Vale da Matos, não custa admitir que tal nome derive de uma obrigação pia imposta por generoso testador «para bem da sua alma» e, cumprida que foi, religiosamente, anos ou séculos seguidos pelo testamenteiro, tal obrigação passou a designar as “terras lavradias, com videiras e água”, adstritas ao rendimento da esmola deixada.

MOTA-REDEm nome da verdade e do rigor histórico, devo dizer que não tive acesso a qualquer testamento onde lesse “preto no branco” a obrigação do testamenteiro cumprir uma das últimas vontades do zeloso testador, que foi distribuir SETE PÃES pelos pobres. Muitos, poucos ou de um só. Tantos PÃES quantos os dias da semana. Mas, mesmo sem tal leitura, presumo não ter cometido um erro de “lesa história” trilhar os atalhos documentados que me levaram a tal conclusão.

E, aqui chegados, julgo ser dever do HISTORIADOR dar espaço à reflexão e comentário dos leitores. Não faltarão opiniões, certamente, neste tempo da Internet e Facebook, espaço onde toda a gente debita sabedoria e bota sentença. De resto, de que serve gastar tempo com «coisas mortas» se não faltam «emoges, bonequinhos animados, coloridos, a dançar,  a rir e a chorar» ao alcance de um  «clic», prontinhos a serem remetidos aos nossos amigos através dos quais partilhamos os nossos estados de alma, as nossas emoções?

Assim vai o mundo. Mas, vivendo eu nele, confesso que não me libertei da empedernida moléstia de “pensar” e tentar que outros comigo pensem. É um “andaço” incurável no qual “vivo e espero vir a morrer”, para repetir, neste final de texto, a frase sacramental que os tabeliães não se esqueciam de escrever no início dos testamentos de outrora. E é um mal agravado com a lucidez ou senilidade dos meus 81 anos de idade. Estas mazelas que me fazem retornar à questão deixada acima por Moisés Espírito Santo no tocante à “relação dialética entre os nomes, os sítios e as pessoas que neles moram; o critério da atribuição de um nome e não de outro, as resistências à evolução ou ao desaparecimento dos nomes antigos, etc”.

É isso mesmo. Sublinhando os itens testamentários relativos à distribuição de pão pelos pobres (cozido ou em grão) e o alívio que essa “deixa espiritual” tinha na consciência dos testadores no, momento de deixarem o mundo, olhando eu o mundo, de então e de hoje, descubro que a força do topónimo e a sua persistência no fio do tempo, emana das calorias que alimentavam um pobre (sabe-se lá uma família inteira) que mais não tinha para comer senão um pão por dia, SETE PÃES por semana.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.