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segunda, 21 setembro 2020 14:40

CUJÓ - PISÃO - RECONSTITUIÇÃO 2

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INDÚSTRIA ARTESANAL

Historiador que se preza do ofício, que valoriza o múnus que exerce, e se orgulha da sua naturalidade aldeã, não esquece o seu currículo de vida e nele, entre tantas aprendizagens e experiências pré-universitárias, estão as de pastor, moleiro, agricultor e pedreiro.

PEIXENINHO - Cópia

E no exercício desta última lembra-se de desfazer penedos em fatias à força e de guilhos e de marra, seguidamente colocadas em cima de um corso de madeira em forma de “V”, arrancado a uma pernada de carvalho e serem arrastadas, monte abaixo, para ao pé da obra projetada e, junto dela, postas a jeito de corte, tomarem a forma de porpianho, com a ajuda do pico, da maceta, do ponteiro, do esquadro e da régua. As leis da FÍSICA e da GEOMETRIA aprendiam-se, ali, no campo, fora dos livros, à força de músculo e de suor.

Muito antes de aprender a máxima de Arquimedes nos livros “deem-me um ponto de apoio e eu levantarei a Terra”, já eu manejava esse objeto de ferro e levantava pedras enormes, bastando para tal possui-lo mais o indispensável alçapreme.

Tinha os meus 17 e 18 anos de idade e era aprendiz de pedreiro numa obra de Peixeninho, ajustada pelo meu cunhado José Duarte Bernardo, que fixou residência em Vila Cova-a-Coelheira, conhecido por Zé Pedreiro, onde viveu, morreu e foi sepultado.

Da sua equipa de artistas faziam parte o tio Serafim, o tio António Catrino e o tio Valentim. Todos eles foram meus mestres e com eles aprendi a pôr uma pedra em esquadria a ponto de ser assente na obra e também o “verbo dos pedreiros” que viria a inserir nos meus livros “Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva”, editado em 1993, e no livro “Mosteiro da Ermida”, editado em 2001, associando, neste último, os pedreiros de Cujó aos pedreiros de Oliveira de Hospital, por uns e outros usarem termos verbais comuns no seu “linguajar” profissional, por forma a ninguém entender o que diziam entre si. Em Cujó ao companheiro chamavam “argau” e em Oliveira do Hospital chamavam “arguina”. E “argau” era a capa, tipo gibão de burel, que os monges dos mosteiros usavam para se cobrirem.

PISÃO-1975Digamos que, lembrar tudo isso é descer aos estratos mais profundos do campo arqueológico do meu pensamento e das minhas aprendizagens e experiências de vida conscientes, nas quais entram também a participação que tive nas escavações levadas a efeito por professores e alunos da Faculdade de Letras da Universidade de Lourenço Marques, na Zona Massingir, em Moçambique, num campo arqueológico paleolítico, que ficaria submerso com as águas da barragem que ali estava a construir-se e poderá hoje ser vista, através do GOOGLE EARTH.

E tudo isto a propósito do recente vislumbre arqueológico que fiz, em Cujó, às moradias do meu pai em estado de ruinas e logradouros comuns envolventes. E também às ruinas do complexo moageiro do rio MAU e do PISÃO que pertenceu aos meus avós, pais, tios e primos, sendo o último pisoeiro o meu primo Abel Dimas, filho do meu tio António e da minha tia Silvina.

Baseado em estudos e na memória, já fiz uma RECONSTITUIÇÃO possível desse complexo “industrial”, dando a ideia do edifício e do mecanismo que nele existia nos anos 50 do século XX, a partir de uma foto que dele tirei em 1975.

EQUIPAMWNTO HIDRAÚLICOE na RECONSTITUIÇÃO que fiz (visivelmente incompleta), certamente não ficou despercebida ao observador mais atento (sem, contudo, me ter sido feita qualquer observação nesse sentido) que eu coloquei o “engenho” e a “cale”, do lado oposto à “cale” que sempre ali existiu lavrada em pedra.

Sim, é que o PISAO existente nos meados do século XX, estava montado, exatamente, nesse lado e a cale por onde descia a água que fazia girar a “roda motriz” e, consequentemente, levantar os maços, era de madeira e não de pedra.

Então, face à realidade existente, ignorando eu ainda o que era a ARQUEOLOGIA e a matéria de que tratava essa “ciência” académica, interrogava-me sobre aquela cale de pedra, uma obra inútil, o que faziam ali aquelas gamelas de granito justapostas umas às outras na perpendicular, sem função aparente.

Claro que essas minhas interrogações infantis não ficaram sem resposta. E não foi preciso sair fora da casa paterna para ser esclarecido. O meu pai, Salvador de Carvalho, filho do pisoeiro, chegou a trabalhar com o pai dele, o meu avô, no pisão e esclareceu-me que, dentro do mesmo edifício havia dois “engenhos”. Um, do lado da cale de pedra e outro no lado oposto com a cale de madeira. Era aquele que eu conhecia, nesses meus verdes anos de infância e de interrogações.

O que desapareceu mais cedo, movido pela água que descia pelas calhas de pedra abaixo, ainda existentes nesta ano de 2020, era mais pequeno e foi nele que o meu pai se iniciou na arte de pisoeiro, arte que não seguiu, apesar de instado veementemente pelo meu avô. Ser pisoeiro era ofício de “prisioneiro” e ele não era ave de gaiola, como deixou registado, a viva voz, numa entrevista áudio que, em vida lhe fez o meu irmão António.

E foi, certamente impelido por esse sentido de liberdade que viria, mais tarde, já adulto, a integrar e a animar o grupo de cujoenses, responsável pela libertação e criação da freguesia de Cujó, cuja povoação pertencia à freguesia de São Joaninho.

2 PISÕES-RECONSTITUIÇÃOAssim sendo, impunha-me a consciência e o dever de HISTORIADOR, natural de Cujó e ligado por laços de família e tais “engenhos” repor a imagem desse complexo industrial, que mais não seja, à falta de fotografia original, uma RECONSTIUIÇÃO possível, por forma a que as páginas da história de Cujó, possam vir dispor, um dia, de material informativo a partir do conhecimento que tive pessoalmente desse engenho, conjugado com o conhecimento que me foi transmitido pelo meu pai. E não faltará ainda gente viva em Cujó que se lembre do velho PISÃO que eu conheci.

Feita esta RECONSTITUIÇÃO, diferentemente daquela que fiz e publiquei anteriormente, justificada fica a existência da “cale” lavrada em granito que, desafiando tempos, memórias e fogos, ali permanece, tão impermeável aos frios e chuvas, quanto o BUREL que saía daqueles dois “engenhos” de técnica básica, primária, movidos a energia limpa, a energia tão procurada hoje, nestes tempos de sofisticadas e elaboradas tecnologias.

Eram engenhos primários, sim senhores. Obras ao alcance de qualquer carpinteiro engenhoso que soubesse manejar o serrote, a enxó e a plaina. Mas eram fruto da inteligência humana postas ao serviço das comunidades envolventes que ali levavam as teias saídas dos seus teares domésticos, também eles simples, hoje autênticas peças arqueológicas na indústria da tecelagem.

Sim. Eram equipamentos simples, fáceis de construir, de técnica básica no que respeita ao aproveitamento da energia hidráulica. Mas, pelo serviço prestado às populações da serra, fornecendo-lhes o BUREL com que se vestiam e abrigavam dos frios e das chuvas, são bem dignos de figurarem na HISTÓRIA e na MEMÓRIA de quem respeita o labor, a inteligência e os afetos dos seus antepassados. É que a MEMÓRIA sobrevive, sem dúvida, à MATÉRIA.

CASA EM PEIXENINHO

 https://youtu.be/z0i2KlmRrg8

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.