E, levantado que seja o pano, os amantes de Talma, encontrarão, logo a abrir, no meio do palco, não o penedo cuja fotografia ilustra a capa deste livro, mas um banco, um mocho daqueles que têm um furo ao meio do assento e, a sair dele, virado ao ar, posto a pino, um viçoso e viscoso alho-porro, prontinho a ser saboreado (bom proveito!) por todos os políticos e homens de escrita e de cultura que, cada qual a seu modo e segundo as suas responsabilidades, consciente ou inconscientemente levados pelos ventos da centralização, em nome de valores pátrios ou outros (ir a favor dos ventos é sempre mais fácil e cómodo do que ir contra eles) estão a ajudar a riscar do mapa este Portugal rural, este território que nos foi legado pelos nossos pais e avós, pelos avós dos nossos avós, esses labrostes e selvagens que viveram e sobreviveram entre matos e lobos. A viverem assim, é certo, mas cada um, velho e novo, tio e tia, irmão e irmã, avô e neto, todos cientes estavam da segurança e da força que lhes dava o sentido de pertença a uma comunidade, a uma alcateia, a uma tribo, a uma família. Nascer, crescer, viver e morrer na selvática comunidade rural rodeada de lobos.
Por assim ser, a pensar neles e no rumo que o mundo tomou com migrações, emigrações e imigrações, voluntárias ou forçadas pelas mais variadas razões, é que este livro, compilação de alguns textos já publicados e outros inéditos escritos a pedido de um caçador, de um amante da natureza, é que veio ao mundo. Um livro que, falando de caça quando já não há caça (escrito com o halo visível e audível de um devoto da deusa Diana, ou de Santo Huberto, escolha que deixo livremente ao leitor) é uma homenagem às gentes laboriosas das serras da Nave e do Montemuro, a todos esses conquistadores, povoadores e lavradores que, com respeito e sem despeito, deixaram colar os seus cognomes aos primeiros reis de Portugal. Um hino a todos os homens e mulheres, que, contra ventos e marés, conquistadores,
povoadores e lavradores continuaram a ser, acomodados na selva aquiliniana que resta, fazendo das aldeias e lugarejos clareiras de vida, mantendo as casas de pé, as ruas transitáveis, a couve troncha na horta, os pardais a chilrear nos beirais de prédios novos e velhos. Aqueles que, escolas primárias desertas e mudas, postos do correio e tribunais fechados, não se deixaram ir nas apelativas atracções da selva urbana, não se deixaram caçar pelas luzes das grandes cidades, onde não faltam coisas boas e se sabe que, proporcionalmente à desertificação do interior, ao desequilíbrio demográfico campo/cidade, centro/periferia, interior/litoral, aumentam por lá, a par das universidades, das bibliotecas, dos centros de investigação, dos hospitais, as choças e as luras pagas a peso de ouro, destinadas às presas da reserva de caça nacional, reservadas a todas as presas indefesas. Ali, fechadas, onde o instinto da liberdade inscrito no código genético de todo o ser vivente, acicatado pelos anos, assume foros de revolta, pois em cada residente, curvado, derreado pelos invernos e tratos, existe o selvagem "homo eretus" das florestas, existe o "homo sapiens" pronto a escapar-se na primeira oportunidade e a retomar a primitiva liberdade perdida. Só que, à vista destes sinais, detectadas tais intenções pelo caçador ou pelo cabo de ordens de serviço, as portas do covil são fechadas a sete chaves e os soporíferos são misericordiosamente diluídos nas refeições. E a colmeia fica em paz. Não se ouve um zumbido de abelha. As abelhas em zombies se tornaram e deambulam pelos espaços livres, pelos favos abertos, olhares vagos, vítreos, perdidos em alvos incertos. Seres sonâmbulos não conhecem ninguém, nem por alguém são conhecidas. Depois, para sossego e conforto dos demais residentes, se necessário for, as presas rebeldes são postas em cadeirões e sofás, onde, sentadas, num estado dormente por força dos fármacos, a cabecear no vazio, "sim, senhor...sim, senhor...sim, senhor"...gozam o único movimento que lhes resta dos lestos gestos do ancestral "homo habilis". É isso. Estes prisioneiros, frutos que são do avançado estádIo civilizacional da humanidade, nenhum deles se dá conta do tempo e do espaço em que adormece para sempre. Um número que se risca da estatística dos vivos. Uma vaga em aberto. É o viver e o morrer na civilizada comunidade urbana do século XXI, rodeada, não por lobos, mas por profissionais domesticados à feição da sociedade criada. Enfim, um aspecto apenas do preço das políticas levadas a cabo, ao longo da história, pelo "homo demens", pelo "homo degradandis". O responsável pela existência dos pequenos, médios e grandes aglomerados populacionais, onde a caça é outra. O cidadão que legisla sobre a organização e administração do território, inclusive venatório, sem distinguir um gaio de uma poupa. O "homo urbanus" que, literato ou não, considera o "homo rusticus" provinciano e primitivo só porque este, a viva voz ou em letra redonda (em vídeo, revistas, jornais, livros e Facebook) alardeia o seu apego à natureza e defende uma relação equilibrada e sadia entre TERRA GENTE e ANIMAIS".
FIM