Trilhos Serranos

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segunda, 23 março 2015 18:08

DA FAUNA SELVAGEM À FAUNA DOMÉSTICA

Escrito por 

CIOSO COMBATE

Um dia, a criada de um clérigo, que tinha por sua conta e risco rapar-lhe a coroa do tamanho de uma hóstia,  prestes a arrumar a tesoura, eis que, num rompante, emergindo da densa floresta cabeluda, entraram na clareira  três animais minúsculos, por si desde logo identificados. Dois deles brigando.

 Ora, catequisada como ela foi, desde pequena, para, em quaisquer circunstâncias e momentos, romper o biombo que separa a realidade da fantasia, penetrando assim no mundo das visões, ela teve uma visão: estes minúsculos animais em luta, dos elefantes  imitavam o grito de guerra, a tromba esticada, as orelhas em leque, duas montanhas em marcha a tentarem abalroar-se mutuamente. Dos touros imitavam  o rodeio lento e cauteloso até encostarem as cornaduras, só as afastando quando um deles virou a cauda e se deu por vencido. Dos cavalos, as orelhas voltadas para trás, focinho esticado, dentada certeira no pescoço, na garupa, ou o coice demolidor despedido sem destino. Dos carneiros, o recuo, a deslocação ócetrás uma dezena de metros para logo arrancarem frente a frente em alta velocidade na direção um do outro, ambos confiantes na sorte e na estonteante marrada. Dos bodes, imitavam o gesto de se empinarem apoiados nas patas traseiras para depois se deixarem cair, cabeça com cabeça, num sobe e desce só visto, experimentando o estalo, o peso e o golpe das cornaduras. Dos cães imitavam a dentada baixa, as cambalhotas no chão, vira-que-vira, até um meter o rabo entre as pernas «caim...caim... caim....".  Dos gatos o serro corcovado, dentuça à mostra, pelo eriçado, unhas distendidas e o fffffffffff ameaçador. Dos parasitas piolhos, rabinho alçado, lança, espada ou agulha em riste proporcional  ao corpo e às intenções de cada um. Duelo inaudito e nunca visto (...) tudo faziam menos levantar poeira, porque o campo de batalha não era um circo romano  nem uma arena construída para deleite dos aficionados de lutas violentas, sanguinárias e exterminadoras, mas sim a coroa de um clérigo que dormia a sono solto.


Curiosa e deslumbrada, fora da realidade, a criada ficou por longo tempo a apreciar a cena embasbacada, quer pelo inesperado e inédito da situação, quer interrogando-se sobre o desfecho da briga.

Depois de muita luta, e voltando ela ao estado lúcido, um deles visivelmente cansado e ferido na ilharga, dá-se finalmente por vencido. Manco recolhe à floresta. O outro toma de imediato a direção da fêmea que, indiferente ao que se passou em redor, continuava a tratar do seu sustento (...) e disse-lhe ao que ia. A criada, vendo o que viu, ficou atónita, abismada. O coito não era coisa que se fizesse aos olhos do mundo, e muito menos ali, a conspurcar o produto do seu trabalho (...), ali,  numa cabeça recheada de fé e exemplos castos. Um calafrio corre-lhe a espinha. Por momentos sente-se tentada para os pecados da carne, mas logo um «credo» lhe aflora aos lábios, atirando para as profundezas da sua alma tão atrevidos e pecaminosos apetites. Não aguentava mais. De mãos trementes, junta as unhas dos polegares e zás, zás, esmaga entre elas tão descarados e insignificantes bichos. Ouve-se um estalido e daquelas duas vidas minúsculas, que não souberam escolher o melhor lugar e hora para a reprodução da espécie, nada mais restou do que duas pelitas espalmadas e listradas nas angélicas e alvas unhas da moça que, cheias de raiva, e se calhar de cio, ali mesmo lhe deram caça e morte».

Nota: cf. meu livro «Julgamento», editado no ano 2000, pp 71-73. Esgotado. Disponível na Biblioteca Nacional.

                                     piolho1-2








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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.