Ora, catequisada como ela foi, desde pequena, para, em quaisquer circunstâncias e momentos, romper o biombo que separa a realidade da fantasia, penetrando assim no mundo das visões, ela teve uma visão: estes minúsculos animais em luta, dos elefantes imitavam o grito de guerra, a tromba esticada, as orelhas em leque, duas montanhas em marcha a tentarem abalroar-se mutuamente. Dos touros imitavam o rodeio lento e cauteloso até encostarem as cornaduras, só as afastando quando um deles virou a cauda e se deu por vencido. Dos cavalos, as orelhas voltadas para trás, focinho esticado, dentada certeira no pescoço, na garupa, ou o coice demolidor despedido sem destino. Dos carneiros, o recuo, a deslocação ócetrás uma dezena de metros para logo arrancarem frente a frente em alta velocidade na direção um do outro, ambos confiantes na sorte e na estonteante marrada. Dos bodes, imitavam o gesto de se empinarem apoiados nas patas traseiras para depois se deixarem cair, cabeça com cabeça, num sobe e desce só visto, experimentando o estalo, o peso e o golpe das cornaduras. Dos cães imitavam a dentada baixa, as cambalhotas no chão, vira-que-vira, até um meter o rabo entre as pernas «caim...caim... caim....". Dos gatos o serro corcovado, dentuça à mostra, pelo eriçado, unhas distendidas e o fffffffffff ameaçador. Dos parasitas piolhos, rabinho alçado, lança, espada ou agulha em riste proporcional ao corpo e às intenções de cada um. Duelo inaudito e nunca visto (...) tudo faziam menos levantar poeira, porque o campo de batalha não era um circo romano nem uma arena construída para deleite dos aficionados de lutas violentas, sanguinárias e exterminadoras, mas sim a coroa de um clérigo que dormia a sono solto.
Curiosa e deslumbrada, fora da realidade, a criada ficou por longo tempo a apreciar a cena embasbacada, quer pelo inesperado e inédito da situação, quer interrogando-se sobre o desfecho da briga.
Depois de muita luta, e voltando ela ao estado lúcido, um deles visivelmente cansado e ferido na ilharga, dá-se finalmente por vencido. Manco recolhe à floresta. O outro toma de imediato a direção da fêmea que, indiferente ao que se passou em redor, continuava a tratar do seu sustento (...) e disse-lhe ao que ia. A criada, vendo o que viu, ficou atónita, abismada. O coito não era coisa que se fizesse aos olhos do mundo, e muito menos ali, a conspurcar o produto do seu trabalho (...), ali, numa cabeça recheada de fé e exemplos castos. Um calafrio corre-lhe a espinha. Por momentos sente-se tentada para os pecados da carne, mas logo um «credo» lhe aflora aos lábios, atirando para as profundezas da sua alma tão atrevidos e pecaminosos apetites. Não aguentava mais. De mãos trementes, junta as unhas dos polegares e zás, zás, esmaga entre elas tão descarados e insignificantes bichos. Ouve-se um estalido e daquelas duas vidas minúsculas, que não souberam escolher o melhor lugar e hora para a reprodução da espécie, nada mais restou do que duas pelitas espalmadas e listradas nas angélicas e alvas unhas da moça que, cheias de raiva, e se calhar de cio, ali mesmo lhe deram caça e morte».
Nota: cf. meu livro «Julgamento», editado no ano 2000, pp 71-73. Esgotado. Disponível na Biblioteca Nacional.