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quinta, 21 novembro 2013 13:11

O HOMEM DA NAVE (3)

Escrito por 

O CONTO QUE VOS CONTO

TERCEIRA PARTE

Chegados aqui, reunidas todas as peças, constatamos que temos um pénis teso e hirto junto de um traseiro de nádegas bem redondas, juntinhos e virados ao céu. Um pouco mais afastado temos um par de seios flácidos e mamilos chupados; temos duas vaginas, uma intacta, talvez virgem, e outra com marcas evidentes de mutilação; temos uma caveira totalmente descarnada; temos duas facas que nenhum talhante hodierno se atreveria a levantar e, finalmente, um par de testículos decepados e colocados na parte mais elevada do fraguedo, qual troféu de glória.
Face a tais achados, não podendo nós contar com a «celulazinhas cinzentes» de Poirot e outros que tais, nem com as técnicas científicas forenses hodiernas,  faltava-nos alguém com lucidez bastante para dar significado ao espólio. Que fosse capaz de fazer entender, nos tempos modernos, o que terá acontecido no tempo dos ciclopes, pois todas as peças eram ciclópicas.

Orgãos-1-2-3-4Ora acontece que os caçadores são uma espécie de tribo ligada à natureza,  tribo sobrevivente dos remotos tempos em que o homem vivia da pastorícia, da agricultura e da caça. Do tempo neolítico e megalítico. Mantêm elos de empatia e simpatia uns com os outros, mesmo que não se conheçam de lado nenhum e apenas se encontrem esporadicamente na serra de ano a ano. Falam e convivem.

E foi num desses  convívios que, um grupo deles em redor do farnel, abrigados do vento pirenaico, que soprava e cortava como navalhas, todos munidos de canivete a trinchar rodelas de salpicão e fatias de presunto, queijo curado de cabra e de ovelha, broa de milho, pão de trigo e de centeio, tudo bem regado com o sumo das uvas, vinho branco e tinto, engarrafado pela Cooperativa Agrícola do Távora, sedeada em Moimenta da Beira, sumo atribuído ao deus  Baco, foi num ajuntamento assim, dizia eu, que, todos bem comidos e bem bebidos, melhor dito, bem entornados, todos postos ao corrente dos achados,  vistas as fotografias, cada um mirou, remirou e deu a sua opinião: as duas primeiras peças nada tinham a ver com as restantes, dizia um; outro concordava e dizia porquê: pois, as mamas da terceira, dado o seu aspecto murcho, descaído, não podem pertencer ao mesmo corpo das primeiras. Aquele traseiro de pele esticada e um tesão daqueles ao lado, assim, a espreitar a entrada, só podiam pertencer a jovens; e um terceiro, virado para a caveira descarnada, atirou sem hesitar: claro e caveira não pode associar-se a nenhuma dessas peças, de contrário em vez de caveira teríamos cabeça com os músculos e os olhos a arredondar-lhe da face; «em cheio», respondeu um quarto, olhando as duas vaginas e explicando o seu aspecto: esta, referia-se à aparentemente virgem, parece que nunca saboreou o que o mundo tem de bom, pelo aspecto nunca se masturbou, nunca  teve um orgasmo, e aquela, coitada, sem lábios, a lembrar a entrada de uma mina, de uma gruta, ou foi mutilada ou pariu uma série de gigantes. E lá vinha um outro: nem aqueles testículos, o coroar aquele penedo, tão pouco se podem associar às duas primeiras peças. Ali a «hortaliça» está completa, tomates e pepino juntos, o que indicia que o justiceiro ou o criminoso, de um só golpe fez o trabalho.

Todos opinaram sobre tudo e assente ficou entre eles que os macabros achados pétreos não era partes do mesmo corpo. Eram notórias entre eles as diferenças físicas e o estado em que se encontravam. Mortes ocorridas em idades diferentes. De comum e de tamanho agigantado como eles, apenas as armas do crime, as únicas facas que foram encontradas.

Mas descrever os achados, associá-los ou dissociá-los uns dos outros,  dado o aspecto que apresentavam, era uma coisa trivial. Estava ao alcance de qualquer ser humano de mediano raciocínio e com olhos para ver. Explicar, porém, o que teria acontecido há milhares de anos, no tempo dos ciclopes, no tempo em que os deuses andavam pela Terra a emprenhar donzelas virgens que davam à luz heróis dotados de poderes e inteligência sobre-humanas, capazes de fazerem milagres ou de se colocarem ao lado dos seus protegidos e os ajudarem a ganhar uma guerra, era coisa distinta. Esse enigma só podia ser resolvido com recurso aos deuses contemporâneos dos factos, reunidos em «consilium», onde cada um dissesse urbi et orbi da sua justiça, dada as suas capacidades de omnipresença.

Ora, sendo impossível reuni-los no Olimpo grego, alguns podiam ser ouvidos ali mesmo, na olímpica serra da Nave. Eram aqueles deuses que nunca deixaram a companhia dos humanos, que sempre com eles conviveram, fosse no topo dos montes desamparados, desabrigados, fosse nos vales e encostas soalheiras, das cercanias. Que sempre os ajudaram na sua saga de vida. No quotidiano das suas virtudes e dos seus defeitos.

E mesmo à mão de semear estava Eólo,  o deus dos ventos, vivinho da silva há séculos, sempre jovem, cheio de força e de energia. Ontem enfunou os panos dos veleiros, navegadores, piratas e exploradores; ajudou Fernão de Magalhães a dar a volta ao mundo, por mar; ajudou Vasco da Gama a atravessar o Atlântico e o Índico, ajudou os Fenícios a rasgar os mares, ajudou Ulisses a atravessar o Mediterrâneo e hoje, com a musculatura de sempre,  faz girar os geradores que, em homenagem sua, receberam o seu nome: geradores eólicos.  E, à mão de semear, igualmente vivinho da silva,  estava Baco que, provindo das terras chãs  e ladeiras das redondezas, subia aos topos  da serra metido em cantis, em garrafas de vidro, algumas delas com o nome de Aquilino. Ele, com a lucidez que se lhe reconhece quando está animado e disposto a falar,  já tinha dado uma mãozinha na descrição que cada caçador fez dos achados.  A explicação dada por cada um deles, por via de tanto o adorarem, ouvirem e saborearem, arrastada e tartamudeada, recebeu de todos os outros um «ámen», que sim senhores, que era assim mesmo, não se falava mais nisso.

Posto o que se levantou um problema enorme. Entrar em contacto com esses deuses não era difícil, ao que se via.  Eles estavam ali mesmo, ao estender do braço. O Eólo, viam-no os caçadores fustigar os giestais em redor, ouviam-no assobiar, naquele tom ora grave ora agudo,  sentiam-no beijar-lhes o rosto, mesmo que protegido com carapuças adquiridas nas casas especializadas em artigos e roupas de caça. O outro, o Baco, companheiro inseparável de vida na taverna, na vessada, na segada e na malhada, nas feiras e romarias,  na serra e na caça,  sentiam-no escorregar pela goela abaixo e ouviam o sacramental estalo da língua no céu da boca ao fim de cada golada. Mas, apesar dessa familiaridade toda com tais divindades,  como entender a sua linguagem? Como falar com elas?

Aqui a porca torcia o rabo. Um belo bico-de-obra. Só que estas coisas que ligam os homens às divindades, não são propriamente coisas dos tempos idos, peças arqueológicas cheias de pó expostas em museus, explicadas por especialistas nesse ramo de saber. A relação do homem com o divino, com os deuses, com o sobrenatural, com o mundo oculto, com o outro mundo, mantém-se intacta desde que há deuses e homens sobre a Terra. E entre eles sempre houve os seus intérpretes, fossem eles chamados druidas, sacerdotes, bruxos, médiuns, pais-santos, curandeiros, cartomantes, exorcistas, adivinhos, astrólogos, padres, etc. etc., todos eles em franca actividade neste princípio do século XXI. Tão activos no campo das crenças, superstição e fé, quanto Eólo se mostra activo a produzir a energia que lhes alimenta as consultas à distância, via Internet, televisão, telemóvel e outros meios de comunicação congéneres. E o mesmo com Baco, sempre a encharcar estômagos, a animar feiras e romarias, a substituir o sangue de Cristo nas missas e a embrutecer ou  a iluminar cérebros dispostos a dormirem ou a falarem pelos cotovelos e a silenciar os demais.

E numa tribo que  se preze, como é a tribo dos caçadores,  não podia faltar um medianeiro, um mentiroso ou adivinho. E não faltava. Às vezes até era alvo da chacota dos seus pares, quando, em dias limpos, sol radiante, sem sinal de nuvem no céu, lhe perguntavam jocosamente: «hoje chove?» Resposta pronta: «hoje não». E o interpelante ironizava, de seguida: «é bruxo».

Apelou-se aos seus poderes adivinhatórios, à sua relação com o mundo oculto,  e ele não se fez rogado. Depois de algum tempo de meditação, entrou em frenético transe, com tremuras e esgares visíveis no rosto. Parecia uma daquelas artistas porno que fingem com gestos e gritos o momento orgástico. Após isso, suado, transpirado, se calhar mijado, lá começou a gargarejar uns tantos sons imperceptíveis, provindos da boca de Baco, mas a mando de Eólo:

- É fabulosa a vossa imaginação. Mas baixem lá a bolinha, pois não é permitido ao sapateiro ir além do chinelo. Aquelas peças graníticas que vos têm dado volta ao miolo, não passam de penedos de formas bizarras, esculturas minhas, feitas em parceria com as chuvas, as neves, os gelos, os calores, os frios, a intempéries, aquilo que, vocês homens, desvalorizando a minha arte, resolveram chamar «erosão». Ou pensavam que a arte e as parcerias são invenção vossa e só de agora?

O silêncio foi absoluto. Num só momento, muitos pensamentos se fundiram num só pensamento: as parcerias «público-privadas»,  as massas movimentadas que pesam no Orçamento do Estado e puseram Portugal no estado regressivo ao ponto de voltar a andar roto e esfarrapado. Foi só um momento. O vento pirenaico abrandou e as giestas adormeceram. Tal calma imobilizaria qualquer veleiro no meio do oceano, pondo em apuros os mareantes distantes de algum porto onde pudessem fazer aguada.

Pronto os deuses falaram, os homens calaram. Olharam-se uns para os outros, sem mais interrogações prestes a arrumarem o farnel, quando, repentina e inesperadamente, pela boca do medianeiro, enquanto regressava fisicamente ao seu aspecto normal, saiu uma outra voz falando num português escorreito. Não era a voz  da «Casa dos Segredos», não era a voz  dos Big’s Brothers e quejandos que já deram o seu alto contributo a Cultura Portuguesa. Não era a voz que Abraão ouviu no deserto, quando conduzia o seu povo para a Terra Prometida. Não era a voz da TROIKA, do FMI, das AGÊNCIAS  de RATINGS, esses deuses invisíveis da actualidade que governam o mundo e, frente aos quais, todos os deuses invisíveis são uns aprendizes de feiticeiros. Era uma voz que parecia vir de outros tempos, de outros espaços, das profundezas de uma caverna, de uma gruta, semelhantemente ao eco que, não havia muito tempo, repetia a fala que eu e o meu primo, o velho companheiro de andanças por estas quebradas dos montes, tivemos nas minas da Queiriga, concelho de Vila Nova de Paiva. Naquelas galerias subterrâneas sustentadas por colunas de terra que imitavam um autêntico claustro de mosteiro medieval, iluminado pelas  diferentes aberturas feitas na ladeira virada a poente. Aberturas de diferentes dimensões, a quantidade e a intensidade de luz por elas entrada, conforme a hora do dia, emprestavam àquele espaço, àquele claustro escondido, uma atmosfera irreal, de cores gregorianas entoadas nas catedrais góticas projectadas através dos vitrais com imagens de anjos e de santos. E irreal nos parecia, também, o retorno, repentino da voz saída da boca do «medium» caçador:

- Estão enganados, se pensam que têm resolvido o enigma que vos tem entretido o dia inteiro, estão enganados. Fiaram-se na sentença dos deuses, Eólo e Baco, mas os deuses também se enganam. E olha logo quem, olha que dois, um bêbado e  o outro um cabeça de vento. É certo que ambos deram a sua mãozinha na feitura e explicação da obra exposta, mas não disseram toda a verdade. Os deuses são uma elite e, como em todas as elites, em todas as seitas, igrejas, irmandades, confrarias, partidos políticos, associações desportivas, secretas, governos, os membros protegem-se uns aos outros. Todos têm os seus arautos, os seus medianeiros, os seus intérpretes, mas nunca confessam o que vai mal ou de mal se faz no reino da Dinamarca, isto é, no seu reino. E porque é assim, Eu em verdade vos digo: entre os deuses, como entre os homens,  o sexo é o elemento primordial da vida. Entre os deuses e entre os homens Rabosempre se praticou o sexo natural ligado à reprodução da espécie, mas também a pedofilia, o sexo anal e oral, a homossexualidade e a violação. Tudo foi praticado por deuses, reis e príncipes, reinados, papados, califados, bispados, impérios, gentios, católicos, apostólicos romanos. No caso vertente, trata-se de  um violador que, no tempo dos ciclopes, passou das marcas. Violava, torturava e mutilava. Era a torto e a direito. Tudo se enfiava no seu espeto. E foi então que o DEMOS (senhor de todo o poder e saber) resolveu eternizar o feito para exemplo do mundo: transformou em trovões os arrotos que o psicopata dava ao fim de cada refeição, transformou em relâmpagos os gestos da sua faca assassina, e petrificou os órgãos das vítimas, expondo-os  na serra, tal qual fez com os órgãos do violador. Mas a estes com um castigo acrescido ad vitam aetermum: plantá-los junto de uma das vítimas, virada de bruços, lado a lado, nádegas jovens apelando às palmadinhas de aquecimento, mas, hirto, teso, viril, impossibilitado de satisfazer os seus desejos, de saciar os seus apetites. Nas penedias desta olímpica serra instituía-se, assim, pelo DEMOS (repito: senhor de todos os poderes e saberes) uma nova versão do suplício de Tântalo. Tão perto e tão longe. Tudo aqui na serra da Nave, como podia ser noutra serra, noutro continente ou noutra ilha quaiquer do planeta,  já que Terra é a nave onde o homem viaja, com toda a bagagem das suas virtudes e dos seus defeitos. Baús abarrotados desde o australopiteco ao homo faber, do faber ao sapiens,  do sapiens ao demens, na recente classificação do filósofo Edgar Morin. E já agora, demências destas, barbaridades destas,  a darem corpo e enredo a uma estória destas, que não passa do arremedo de um conto sem ponto, situado nesta serra da Nave, viveiro das mais genuína literatura portuguesa, nunca veria a luz do dia, se eu ainda estivesse no activo. Iria tudo para a censura tal como foram muitos escritos de Aquilino Ribeiro, um grande escritor, mas que era do reviralho. E o valores pátrios têm de ser preservados: tudo por nós, nada contra nós. Deus, Pátria, Família. Viva  Salazar! Portugal é Lisboa e o resto é paisagem. E silenciados devem ficar todos os atrevidos que façam da caneta espada e passem das marcas, como passou o psicopata megalítico. Tenho dito.

- Mas quem é você, e como se atreve desmentir os deuses, arrogando-se a saber mais do que eles?

- Elementar, meu caro Watson! Sou um ex-inspector da extinta e celebérrima polícia política portuguesa, assistente «in loco dicitur» Inferno. Ao pé de nós qual FBI, qual KJB, qual SCOT! Problema que essas polícias não resolvessem, vinha ter às nossas mãos. E nós, trigo limpo farinha amparo, resolvíamos tudo enquanto o Diabo esfregava um olho. E um dos nossos métodos científicos mais usado era a voluntária confissão da vítima. E neste caso, para vós tão intrigante e difícil, foi para mim facílimo. O morto, a figura de bruços, de cu virado à lua, «confessou».

Posto o que, eu, caçador me confesso: nesse dia, por força do que ficou dito, regressei a casa com a «grade às costas», gíria usada entre os elementos da tribo quando o dia de caça termina de cinto vazio. E, com toda a propriedade, posso até rematar dizendo «um caçador confessa-se» (onde raio é que eu fui buscar esta expressão?) e assumir que, depois do que aqui li no conto, depois de reflectir no que nele escrevi, seja real ou fantasia,  válido ou inválido, razoável ou absurdo, irónico ou verdadeiro, moral ou imoral, parecido ou verosimilhante, sólito ou insólito, banal ou extravagante, de humor ou falta dele, a mim se deve. A partir de agora, os caçadores passando-o de boca em boca, sabe-se lá, num daqueles encontros na serra, arreganhados por Eólo e aquecidos por Baco, o associem ao «homem das mulheres» contra o qual, por essas aldeias de Portugal em fora, as mães advertiam as filhas quando as mandavam para a serra com os gados: cuidado com «o homem das mulheres» que ele pode surgir, inesperadamente, por detrás de qualquer penedo, giesta, urgueira ou toca natural. O terror mitológico das virgens pastorinhas.

FIM

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.