O CONTO QUE VOS CONTO
SEGUNDA PARTE
Cogitando nisto, pegámos nas espingardas, preparámo-nos para perseguir as perdizes, gatinhámos por um penedo arriba, mesmo ao lado do achado e, já em riba dele, demo-nos conta que estávamos sobre as nádegas bem torneadas de um corpo humano colocado de bruços, de tamanho proporcional à primeira descoberta. Ah! Exclamei de mim para mim, a coisa compõe-se. Matéria já não falta para o conto. Tivesse eu engenho e arte e daria a conhecer, pela escrita, algo inédito, algo jamais saído do tinteiro do Mestre ou da pena de qualquer outro escriba, plagiador, citador ou parafraseador, que tão bem se sentisse entre os faunos dos fraguedos, como entre os humanos catequizados na doutrina anti pagã, para quem era pecado somente falar de sexo, quanto mais praticá-lo.
Nádegas salientes, pele esticada, separadas por um bem marcado rasgo, traseiro de gigante naquela terra de pastores, logo me fez lembrar Polifemo, o gigante, também ele, pastor. Mas Polifemo não era, pois esse tinha o olho no meio da testa, e o olho que se via neste estava no lado oposto e não na cabeça. Naquele rabo ao léu, naquele rego fundo a separar as nádegas, desgaste milenar de tempestades e ventanias, adivinhava-se sair o sopro dos ventos que sempre varreram a serra e, sabe-se lá, os mesmos que, muitos séculos depois, isto é, nos princípios do século XXI, isto é, no meu tempo, isto é, agora mesmo, se tornariam produtores da energia eólica, nome advindo de Eólo, o deus dos ventos, ele próprio protagonista da narrativa épica que empurrou Ulisses pelo Mediterrâneo adentro e o levou até ao território dos ciclopes. E aqui tudo era ciclópico.
Mas a serra da Nave é muito extensa. E quem a palmilha, ano após ano, atrás das perdizes, quem conhece todos seus barrocais, açudes, pontelos, cercas e almuinhas, identifica-se com ela, com as rugas do seu rosto, com os seus sortilégios, com as suas cores e odores. Saboreia os aromas e frutos das suas árvores naturais, os mostajos, as pútegas e as amoras. E, no meio de tudo isso, com algumas quedas imprevistas de permeio, é surpreendido com estas exóticas e eróticas formas que, aqui e além, exibem os penedos, ora assemelhando-se a figuras humanas e a animais, ora a utensílios de cozinha, ora a toneladas de batatas espalhadas e abandonadas por perdulário agricultor, ora a cargas de almocreve cujas bestas de tiro se recusaram a prosseguir viagem, entornando tudo encosta abaixo. Noutros locais mais parecem montanhas de ossadas, carneiras colectivas, para onde se atiraram e amontoaram os corpos de animais e de humanos, dizimados pela fome, pela peste ou por guerra entre tribos de gigantes.
O certo é que aqueles dois pedaços petrificados do feitio do corpo humano, ao lado um do outro, fez-nos divagar pela Geologia, pela Arqueologia, pela História, pela Botânica, esquecer as perdizes definitivamente. Elas, que já tão poucas são, tiveram tempo de sobra para, em bando ou isoladas, gozarem, a sua liberdade selvagem, espojando-se ao sol abrigadas do vento que galga montes e vales, a assobiar que nem pastor invisível, a fazer coro com o passaredo. Basta-lhe, para tanto, o treino de unir os lábios e arrancar desse jeito as notas improvisadas e soltas, incapazes de se acomodarem alinhadas na pauta do mais afamado maestro de filarmónica ou de orquestra requintadas, a actuarem nos grandes salões, aplaudidas por mãos que nunca souberem o que é um calo, resguardadas nos seus punhos de renda.
E nova descoberta, trazida não sei por que mão, veio dar-me um novo fôlego e trazer-me nova matéria à crónica. Não muito longe dali, um par de mamas, seios flácidos, que, semelhando igualmente feições humanas gigantes, nada tinham a ver, à primeira vista, com corpo do primeiro achado. Este, pele esticada, reflectia uma idade pujante de vida, morto prematuramente, por razões desconhecidas. Estes seios, flácidos e caídos, mamilos chupados, só podiam ter pertencido a uma mãe idosa, cujo leite deu vida a uma caterva de filhos ou a uma tribo inteira. (cf. fotos abaixo, à direita)
Tudo somado e visto pelo ângulo da humanidade, estavam reunidas as provas materiais para um qualquer investigador do foro judicial poder seguir, com alguma certeza, uma «linha de investigação», como costuma dizer-se em tais artes. Aqueles pedaços de corpos humanos mutilados, espalhados a esmo, apontavam para a prática de crimes monstruosos, ou rituais canibalescos ignorados pelo homem civilizado.
E a congeminarmos sobre todas as peças descobertas prosseguimos. Mas aquele dia era, definitivamente, dia da caça e não dia do caçador, como é costume dizer-se quando ela não aparece ou o caçador falha sistematicamente a pontaria. Os faunos que andam por estes fraguedos estão definitivamente a proteger as perdizes. É que, alguns passos em frente e mais dois penedos, em separado, nos retinham. O seu aspecto adensava o mistério que a nossa imaginação ia moldando à proporção dos achados. E estava assente que a crónica escrita por mim submeter-se-ia às das descobertas feitas por ambos e, portanto, combinado ficou que deixaríamos em descanso a mira das espingardas, na mira de pesquisamos tudo em redor e encontrar mais achados conexos com os primeiros, de modo a que, todos juntos, se prestassem a dar corpo a uma «estória» com princípio, meio e fim.
E não é que, sem grande esforço nosso, logo nos apareceram, igualmente esquartejados e distanciados entre si, o que nos parecia ser os restos da mesma carnificina tribal, do mesmo ritual canibalesco ou sexual? Analogamente ao tortulho, ao «frade» ou órgão sexual masculino decepado, temos agora duas vaginas à mesma bitola. Uma delas, intacta, aparentemente virgem e a outra com sinais evidentes de ter parido um exército de gigantes. Ou, então, fruto de um ritual ignorado em que os lábios vaginais foram extraídos e tragados a cru, e depois daqueles comidos, outros e mais outros, sempre outros, seguidos de arrotos que faziam tremer a terra e ecoavam em toda a serra. Num ritual assim, comer e saborear um petisco desses, assentará, sabe-se lá, expressão muito usada entre os homens de hoje, quando dizem «ando a comer aquela», vou «comer aquela», referindo-se à prática do coito.
Estas macabras descobertas, corpos cortados aos bocados, assim espalhados na serra como mancheia de milho atirada à terra depois de lavrada, mas deixados a modo de serem vistos e espichados, tornaram-se para nós um enigma a decifrar. Enigma ligado ao sexo. E começámos a pensar que, no tempo dos ciclopes, tal como o vento que, à solta varre diariamente a Nave, na Nave teria andado à solta um assassino, um carrasco, um psicopata a fazer das suas. Quem sabe, «o homem da Nave».
Nessa manhã, a nossa atenção e conversa ficaram enredadas nesse mistério, enredadas na efabulação em torno dos penedos e da paisagem, agreste, rude, selvagem, paisagem cada vez mais abandonada de pastores e caçadores. Aqueles macabros achados acicataram a nossa curiosidade e aventávamos as mais díspares hipóteses. E imaginação e invenção foram coisas que nunca faltaram aos caçadores e pescadores, ainda que muitas das «estórias» por eles contadas, tidas como patranhas descaradas, assentem em factos reais sucedidos e comprovados.
Veio a tarde e com ela o vento que, há séculos, assola a serra. E sabido é que, enquanto assobia e canta, faz as esculturas que nos surpreendem. Eólo lhe chamavam os gregos e geradores eólicos se chamam a colunas metálicas e ventoinhas gigantes que, neste princípio do século XXI, se espalham pela espinha dos montes, a produzirem a energia que faz girar o mundo. O mundo das fábricas, dos computadores, dos telemóveis, das televisões, de toda a invenção humana, inclusive os programas que todos os dias nos entram pela janela que abriu a nossa casa ao mundo, inclusive a chegada do homem há lua, o americano Neil Armestrong que classificaria esse feito «uma pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade», expressão aqui lembrada com todo o cabimento, pois que de gigantes falamos agora.
Mais umas tantas voltas, sempre nas redondezas, e eis que se nos depara, agora, um penedo em forma de caveira, descarnada e encravada naquela penedia. Era demais para um só dia. Todos estes achados, colocados que fossem na mente de Agatha Christie dariam um romance policial único, um best seller de trama enrodilhada, meada bem difícil de desdobar, a não ser para detectives da craveira do Sherlock Holmes, Eugene Poirot e outros que tais. Romances que do papel passaram à tela de cinema, às séries televisivas e, vá lá saber-se e não estavam a espevitar as nossas «celulazinhas cinzentas», para usarmos a máxima de Poirot.
Mas as Ágathas Christies e os detectives desse quilate não se passeiam por montes e vales, não rompem a sola dos sapatos envernizados a pisar carquejais e sargaçais. A contemplar penedias, ossaturas de um planeta esventrado, erudido, carcomido por neves, chuvas, frios, gelos e ventos. Ficam-se pelos meios urbanos movimentados, quando muito, pelas quintas senhoriais dos arredores das grandes cidades, salas aquecidas por salamandras alimentadas a lenha e carvão, esses sim, idos da serra ou da floresta, esfregando e aquecendo as mãos, munidos de lupas e luvas, apoiados nas técnicas e ciências forenses.
Tivessem eles este caso entre mãos e para tirarem conclusões das provas recolhidas faltava-lhes somente a arma do crime. E como a crónica estava por minha conta, essa arma tinha de ser encontrada. Sem ela que remate se daria à estória?
E, para que a estória não ficasse pendurada a baloiçar como o enforcado numa árvore à espera que mão piedosa acabe com o seu vai e vem pendular à vontade do vento, seguindo nós a velha máxima que se tornou lema de vida de Aquilino Ribeiro «alcança quem não cansa», eis que ela apareceu. Duas grandes facas, proporcionais aos corpos decepados e mutilados, ali estavam elas a rasgar o chão, espetadas no ar. Pesando toneladas, a espada de Afonso Henriques, que tão pesada se diz ser, ao pé delas, assemelha-se à agulha de um qualquer alfaiate do seu tempo a alinhavar, com a linhagem apropriada, a fatiota de burel dos ricos-homens de Riba-Douro que ajudaram o Conquistador a tornar Portugal independente, agulha igual à do alfaiate da aldeia que, no tempo de Aquilino, cosia, com a linhagem disponível, as calças de burel, os casacos de burel, os coletes de burel e mais peças de pano cru que vestiam os labrostes seus clientes, orgulhosos de serem portugueses, pois de «Espanha, nem bom vento, nem bom casamento». Força e faca tais que, cada golpe seu, faiscava no ar como meteorito em queda e soava como um avião a jacto que ainda não havia: zzzzuuuuummmm. Nas redondezas tudo ficava a saber que mais uma vítima tinha caído na alçada do psicopata, cortada, retalhada e passada pela sua goela.
Afonso Henriques. Espada descomunal. Homem com eles no sítio. Diz-se agora que nasceu em Viseu e que os documentos mataram a tradição que o dava nascido em Guimarães. A tradição já não é o que era. Nele, e noutros do seu estilo beirão, terá a origem da expressão: «antigamente é que havia homens». Ora, pois, lembrem-se dessa espada, do musculoso braço que a manejava e ponham os olhos naquelas facas e na fotografia do lado. A mão do assassino, do psicopata, não se ficou pela mutilação dos órgãos genitais femininos, que já vimos. Sádico, com igual crueldade, foi-se aos órgãos sexuais masculinos e, zás, decepou-os e colocou-os em lugar bem visível, como troféu de vitória.
E não se pense que a exibição dos membros decepados do corpo humano, como castigo e exemplo, é coisa de eras e de gentes ignotas e ignaras. A História está pintada de sangue resultante da aplicação da justiça instituída a preceito, quer nas comunidades gentias, quer nas comunidades civilizadas. Em meados do século XIX, mais propriamente em 1844, por alturas das lutas liberais em Portugal, um dos assassinos do abade de Castro Daire, foi condenado à forca, levantada na praça central da vila, e a «sentença», proferida por juízes de direito saídos da Universidade de Coimbra, determinava que as mãos do assassino fossem decepadas e expostas, durante seis meses, na sua terra natal, espetadas em paus, bem à vista. (CONTINUA)