Abro com a mesma frequência e necessidade a caixa de correio tradicional e a caixa de correio eletrónico. A primeira é cada vez mais atafulhada com folhetos publicitários das grandes superfícies comerciais e a segunda meta de chegada das faturas relativas a contratos por mim assinados, na condição de cidadão que cumpre os seus deveres, paga os seus impostos e satisfaz os compromissos assumidos. E também acompanhadas da praga dos links de vídeos e PowerPoints que, como escalracho em solo lavradio, circulam livremente na Internet e amigos ou conhecidos meus, usando e abusando do copy/paste, sem triagem nem critério, toma lá, assim chegou e assim vai, lê, vê, arquiva ou apaga. Apago.
Introito longo e necessário para justificar a razão deste meu texto.
E o caso foi que, há dias, ao abrir a caixa do correio tradicional, dei de mãos com algo diferente dos costumeiros e irritantes folhetos publicitários. Um envelope castanho, almofadado, remetido por um amigo meu a residir na Madalena do Pico, Açores, que eu julgava a morar em Viseu. Não nos conhecemos pessoalmente. Amizade virtual. Empatia e simpatia por letras e tretas. Dentro trazia dois exemplares do jornal “Ilha Maior”, respetivamente de 24 e 31 de julho p.p., mais um livro com dedicatória dupla, a primeira manuscrita pelo autor, MANUEL TOMÁS, e a segunda por um senhor de seu nome LUIS FIGUEIREDO, esse tal que meu amigo se tornou graças às graças que vou deixando de graça no meu site “Trilhos Serranos” e no meu mural do Facebook.
Ele, via MESSENGER, tinha-me pedido o meu endereço físico, dizendo que gostaria de partilhar comigo um “exemplar das leituras da sua preferência”. E, sabido isso, logo dei satisfação ao seu desejo. O resultado está à vista. Lá do meio do Atlântico, daquele sítio superconhecido e badalado nas agências de turismo, voou até mim, até esta ignota aldeia de Fareja, concelho de Castro Daire, “O Pintor Excessivo”, livro congeminado e, certamente, digitalizado por MANUEL TOMÁS, um picaroto que no Pico nasceu, no Pico reside e no Pico, no basáltico Pico, com marouços e sem eles, pica as mentes dos habitantes, usando as letras impressas nos livros e jornais (ele é Fundador e Diretor do semanário “Ilha Maior”) qual ponteiro, cinzel e maceta de canteiro feitos caneta/teclado de jornalista e/ou apontador laser do professor que foca e chama a plateia para os pontos essenciais da aula ou da palestra. E neste seu afã, fez-me lembrar alguém que conheço de ginjeira, mas que, por recato, omito o seu nome, pois não lhe pedi licença para o trazer a liça. Não é picaroto, mas não enjeita, seguramente o epíteto de “picareto”.
Não conhecia o ilustre autor, jornalista e professor, afinal, meu colega de profissão. Passei a conhecer por especial deferência deste meu amigo virtual que, vejam só, chegou junto dele e, naquela postura de quem, reciprocamente, julgo eu, se tratam por tu, lhe disse sem mais meias: “olha lá, pranta aí umas letrinhas dirigidas a este meu amigo do “contenente” que ele, por aquilo que dele sei, vai ficar contente em saber que existes”.
E fiquei. Quem não ficaria contente face à oferta e ao autógrafo rabiscado pelo autor (“um dos mais representativos poetas dos Açores”) que, aproveitando o “F" de “ParsiFal” me dá, de mão beijada, a obra em que se “estreia no romance” pintado em torno do pintor, António Vicente da Costa, que mereceu a atenção da sua paleta, das suas cores e dos seus pincéis letrados?
Um “F” de ParsiFal. Que coisa. Esquecida a ópera de Wagner prefiro o “F" do cavaleiro medieval em busca do Santo Graal, já que todas as mentes inquietas, inquietas são por não se acomodarem ao dito e feito e cavalgarem incansavelmente em busca de algo novo, em todas as direções, não importa o corcel que montam.
Lidas as badanas, o texto da contracapa e o duplo autógrafo, coloquei Aquilino Ribeiro em descanso, na sua estante específica, e dispus-me, de imediato, a ferrar o dente neste queijo açoriano. Costumo comprar leite e queijo das Ilhas. Como professor que fui, ensinei aos meus alunos a descoberta dos Açores, o seu povoamento e aludi à pecuária e seus derivados como fontes de riqueza. Falei das figuras ilustres na política e nas letras, ali nascidas. E dali idas, segundo as leis da natureza, ou, corajosamente, embarcadas por vontade própria. Da sua influência pública, política e cultural no todo nacional. Lembrá-las aqui, para quê?
Mas, aposentado, nesta minha idade, nesta minha entrega, se bem me lembro, com dentadura segura com Corega, um queijo vinha mesmo a calhar. E se fosse fatiado entre amigos degustado numa conversa informal e despretensiosa, assim, onde a oralidade, vagarosa, na boca de um exímio contador de estórias, se sobrepusesse aos artifícios eruditos analógicos, metafóricos e caterva de figuras de estilo que infestam como erva cultivada o texto literário, seria canto de canário, música de fundo durante o seu consumo e, assim consumido, vagarosamente até ao fim, saberia, certamente, a pouco, a eles e a mim.
Posto na mesa, dois golpes seguidos ao centro dirigidos, em raio, eis uma fatia retirada e, no lugar dela, no vazio dela, uma espécie de boca aberta a falar e a rir ao mesmo tempo. Ouvir vozes vinha a calhar. De vista cansada de tanto ler, tudo o que fosse aprender ouvindo de olhos fechados, ou vendo e aprendendo com imagens que não fossem letras pequeninas de imprensa, imagens que a mim chegassem, sem esforço, através delas, era uma bênção em defesa do bem precioso que ainda me permite olhar, ver e sentir o mundo, físico e humano na sua diversidade de encantos e desencantos. E certificar-me que há mais vida, cultura e inteligência para além do FACEBOOK.
Queijo circular, boca aberta, a falar assim, com intenso odor e sabor, fazia-me lembrar um CD, um disco falante, mas tinha espessura a mais para o meter no leitor. De resto, vendo melhor, falantes eram também as cassetes VHS cheias de pó, perfiladas na estante, desde que a produção digital, de palavra e de imagem, substituiu a produção analógica. E, qual queijo, qual CD, qual nada. Na mesa estava era um livro mais parecido, na forma, com uma cassete dessas. Pois seja cassete. Mas como ver e ouvir o seu conteúdo, sem ter de cansar a vista, letra por letra, linha por linha, página por página, sem equipamento adequado em casa, equipamento do porvir?
É certo que tecnologia já pôs à disposição do homem conversores da produção analógica em versão digital, formato diverso. E que jeito me fazia agora poder fazer o inverso. Um texto digitalizado, feito livro, revertido em imagem e som no meu velho leitor de cassetes VHS. Pois. Ainda bem que o conservei no sítio e não o remeti para o sótão das velharias.
Um pouco mais comprido, o livro parecia não caber de través na abertura do equipamento. Mas, dando asas ao pensamento, abertas as cancelas da imaginação, afastadas as leis da métrica e da ciência técnica, aproximei-me do aparelho e zás...não entras de través, entras ao comprido, vais lá para dentro e logo se vê. E vi. E foi lido.
No ecrã da televisão apareceu-me, de contornos bem definidos, a imagem da ilha do Pico. As suas cores e formas. E ouvi aquele grito da Mãe-Terra contra o Pai-Céu, atirando boca fora pedras, cinzas, lava incandescente, nuvens de poeira, até perder o fôlego e ficar esculpida e sólida imersa nas águas do Atlântico, pronta a acicatar a descoberta e os apetites humanos. Corpo de mulher sem rosto, simultaneamente púdica e atrevida, sob a água escondida, num jogo de sedução permanente, combinada com as nuvens, nevoeiro lençol ondulado, ora tapa, ora destapa aquele seio gigante, só por mão de gigante amante abarcado e beijado. Uma montanha de gosto, odor, sabor e manha.
Grito dela, berro telúrico, desabafo seu, saído há milénios de profundezas desconhecidas, livre de todos os Malagridas que, pelas ruas de Lisboa diziam ser castigo do céu, o terramoto de 1755. Se bem me lembro, sinto que hesito em ver isso. O seio maternal de mãe à disposição do bebé que nele suga a vida e a língua materna e/ou o mamilo libidinoso do amante, ou ainda o umbigo do mundo onde o poeta/pintor concentrou “ o céu, a terra, o mar, o ar, o fogo”, íman que tudo atrai para dar vida e morte, só comparável ao misterioso buraco negro do triângulo das Bermudas.
Sons indecifráveis primeiro, vindos de longe, e mais claramente “ouvistos” depois, aproximando-se, dão-me conta de um ajuntamento de pessoas. Poucas. Zoeira de festa, feira, romaria. Não. Ali sinal de gente havia. Era um funeral, ocasião onde, em surdina, que é feito de ti, há quanto tempo, como vai a vida, a família, e aquele nosso amigo e colega, nunca mais o vi, que faz fulano e sicrano e beltrano, ali, onde se fala de tudo, de negócios, de ausências prolongadas, encontros e desencontros, precisamos de mudar de política, é tudo corrupto, impera a mediocridade e o mérito quer-se a léguas, só compadrio e clientelas à mesa do orçamento, são reis no trono em tempo de República, vassalagem e vénias, assim por todo o lado, ali, onde, em instantes, bem se pinta e mal de diz dos governantes e muito bem se diz do finado. Coitado, lá no fundo era boa pessoa. Que a terra lhe seja leve, vulgar e animada frase sem sentido, pois o morto jamais sente o peso da terra que lhe cai em cima.
E nessa zoeira de fundo, chega-me a voz clara do narrador em monólogo contínuo, só interrompido pelas reticências que lhe dão fôlego para continuar a relatar a peça onde encaixa, aqui ou ali uma máxima, um poema ou verso solto a dar sentido à conversa. Não é apenas noticia do evento, homessa, mas, uma conversa animada e culta com um amigo. Timoneiro de barco que rasga oceanos, que aporta em cais inesperados, aproveita a viagem para desbobinar a vida do defunto e a sua. Comparsa e confidente do finado, cúmplice de aventuras e tertúlias por todo o lado, alude a caminhos andados pelos dois e demais amigos. E deixou-me a ideia de que ele, o finado, em vida, deixaria muito a desejar, socialmente. Votado obsessivamente à pintura e farras derivadas, exposições, mulheres, bebedeiras e noitadas, putedo, digamos sem medo, descurou as relações paternais/filiais e, sem laços de afetos familiares, os filhos só comparecem no féretro porque parecia mal estarem ausentes e, que diabo, havia que discutirem a herança do pai, qualquer que ela fosse. Pois. Os afetos cultivam-se, não se compram, nem se pintam.
E aqui lembro a lição de um sábio professor que tive nos trilhos da literatura: “qualquer livro, depois de publicado, deixa de ser do autor e passa a ser do leitor, mesmo que iletrado seja”, à qual associei aquela não menos sábia pincelada de Picasso: “eu não pinto as coisas como a vejo, mas sim como as penso”.
Enquanto isso, assim pensando e vendo, vagueando nestas minha cogitações, a bobine desenrola-se sem sobressaltos. E, pela voz do narrador, chega-me o Pico inteiro, a ralação do continente e ilhas. Chega-me o quotidiano do agricultor, do baleeiro, do poeta, do músico, do escritor, o cheiro a maresia, o paladar do verdelho, do naco de carne, a babugem do oceano a fazer cócegas nas ilhas, o subir e descer a montanha, os morouços, o olhar e o desejo do ilhéu perdido lá onde o mar acaba, sempre ansioso de sair dali e ali voltar depois. Dentro de todos eles, um Ulisses, mesmo que nunca tenho lido a Odisseia. Nem é preciso. A evasão, a vontade de partir e voltar é da essência humana. Quem não sabe das grandes migrações e que a África é o útero da HUMANIDADE? Chega-me a nobreza dos sentimentos da entrega, de solidariedade, e o elo comezinho da intolerância e desafetos continuados entre pai/pintor, agora finado, e os filhos que, unidos pelo sangue, soltos estão como as ilhas soltas unidas pelo mar salgado. Avistam-se, mas não se tocam. Cada um é cada qual.
E o incansável narrador, omnipresente, conhecedor de todos os andanhos dos Açores e dos passos do pintor falecido, seu comparsa e amigo, faz jus a sua profissão de dentista. Fala certo e verdade “com quantos dentes que tem na boca”. E que ternurento e inesperado é aquele encontro do avô com a netinha que se mostrou sensível às cores e pinceis. E aquele outro neto, interesseiro, a solicitar o apoio do avô para ele o ajudar num trabalho universitário. Vá lá que não ignorou a sua morte. o execrável papel da PIDE e do pide de serviço que acabou transferido. E o 25 de abril. E a democracia. E o paradoxo do finado ser, em vida, suspeito de ser um revolucionário, democrata, capaz de agir contra a segurança do Estado, contra a Ditadura, com a pública personalidade vincada de um velho «Pater Familiae» a ditar comportamentos, incapaz de conciliar democraticamente as vontades domésticas?
A cassete dá sinais de estar a chegar ao fim. A preencher o ecrã da televisão lá está a imagem da ilha do Pico. Aparentemente estática. E foi sentado no meu sofá que vi e ouvi tudo o que acabo de relatar. Vozes de gente, canto de pássaros. As manadas de vacas que fazem jus ã carne açoriana. Música ligeira dos anos sessenta e música clássica amassada, compactada em vinil e em CD. Música embalada e música natural e solta. O mavioso som do violino e a irritante orquestra das cagarras.
O pintor excessivo foi-se. Tudo contado em tom de oralidade, sem artifícios literários, ainda que com carga sobeja de LITERATURA CLÁSSICA. Se eu quisesse armar em erudito diria, uma conversa assim remeteu-me para Saramago, para Lobo Antunes e de outros escritores conhecidos e de renome. Mas prefiro dizer que me fez lembrar meu pai que, semianalfabeto, tão bem encadeava, cruzava, cerzia as “estórias” vividas no seu tempo de almocreve, de taberneiro ou negociante de volfrâmio. Ele as contava. Eu me encantava. Tinha um relógio de pulso de marca ARGUS sem saber que ARGUS era o fiel cão de Ulisses. À distância, sei bem que não foi inocente a opção do fabricante. Era um relógio fiel. O meu pai nada sabia da estrutura da narrativa e artes de bem escrever, tal como os demais camponeses montemuranos que, no frenesim de registar os “usos e costumes da serra”, aqueles que a “civilização”, na sua voraz vocação universal, vai apagando de dia para dia, eu não me canso de ouvi-los horas sem conta, no seu bem contar, à espera daquele minutozinho, daquele fiapo que me levou até eles para “comecilho” de novelo.
E no ecrã da televisão, sempre com a Ilha do Pico em fundo, começa a deslizar de baixo para cima o elenco e a identificação dos responsáveis pela obra.
EDIÇÕES PARSIFAL
AUTOR: Manuel Tomás
Título “O Pintor Excessivo”
Capa: Pedro Gil
Fotografia da capa: Pedro Silva
Paginação: Augusto Nunes
revisão Ecições Parsifal
Impressão: Tipografia Lousanense, Lda.
EPÍLOGO