SER SERRANO
Julgo não faltar à verdade se disser que conheço a rede viária de estradas, caminhos e carreiros que rasgam as serras da Lapa e da Nave, de lés a lés, pois ali passei anos de vida a perseguir perdizes, na companhia do meu primo Manuel Carvalho Soares.
E, como não podia deixar de ser, no nosso repertório de andarilhos predadores treinados a pisar sargaços, carquejas e tojos, à semelhança de Aquilino Ribeiro que nos precedeu muitos anos antes a gastar sola de botifarras robustas a borrifarem-se para a agressividade dos matos, dos solos e lamaçais traiçoeiros, naqueles andurriais, no nosso repertório de predadores, dizia, constam lameiros, leiras, montes e penedais que bordejam o Vouga, entre as aldeias de Águas Boas e de Quintela da Lapa.
Ambos subimos e descemos aos MOINHOS DO VOUGA, pisámos toda a orografia em redondo, e jamais nos passou despercebido aquele exótico conjunto de penedos encavalitados, sobranceiros à margem esquerda do rio que nasce abençoado à desbanda do Santuário da Lapa. É uma arquitetura natural sem qualquer intervenção humana. Digamos que é um património edificado sob o risco experimentado, compasso e esquadro, do Grande Arquiteto do Universo. E como arquitetura natural, afloramentos graníticos, nem sequer falta no edifício uma porta ou janela que, numa daquelas tardes que por ali passei, em época venatória ou fora dela, me fez lembrar Stonenge, em tempo de Equinócio.
O sol de inverno, na sua trajetória cósmica (no conceito popular de que é o Sol que anda à volta da terra) a rodar pelo lado sul, projetava os seus raios por aquele buraco dentro, qual lanterna de moleiro que, noite escura, a inteirar-se da moenda, entra no moinho de lanterna na mão, forçado que foi, por zelo de ofício, a abandonar as mantas em que se enrolou uma vida inteira, mais a moleira, ambos sobre um colchão de linho abarrotado de colmo centeeiro. As mobílias de estilo, carpinteiradas em castanho, nogueira e de mais madeiras nobres, moravam longe. Moravam nos solares dos domínios senhoriais que daquelas terras e moinhos levavam rendas e foros.
E o escriba, olhando para todos esses penedos, estranha que no conjunto de fotografias e vídeo existentes online a promover o empreendimento, não figure essa granítica janela aberta à curiosidade e à ciência. Basta só esperar pelo dia e hora certa. O Sol, na sua milenar trajetória cósmica, espreitará, seguramente, no dia e hora certa.
Há anos que esta parceria de primos encostou as espingardas. A idade não perdoa, as pernas começaram a fraquejar e os montes, serras e rios, ficaram-se pelo mapa da memória. Eles e as perdizes que, por força do elevado número de caçadores existentes no último meio século, a falta de alimentação por abandono dos campos, cujos proprietários se cansaram e “empobrecer alegremente”, os matos e silvedos a cobrirem terras de sementio, o retorno do javali (um predador exímio na busca de alimentos ao rés do solo ou em profundidade), a alteração do ecossistema secular, a cegueira dos nossos «sábios» no que toca à organização política e administrativa do território, o seu aproveitamento económico e social, inclusive o venatório, tudo, em conjunto, confirmou a sentença lavrada por Aquilino Ribeiro em 1954, precisamente no seu livro «O Homem da Nave», reportando-se ao futuro da CAÇA. Assim:
«Nos batizados a caça fornecia o prato de resistência. Hoje é comer de ricos e há de acabar por ser iguaria de lordes e de grã-duques, como o caviar».
Num tal contexto, desfez-se a parceria de caça, mas manteve-se a parceria de família, de amizade e de convívio. Ontem, desloquei-me a Vila Nova de Paiva e o meu primo convidou-me a entrar no seu carro, com vista voltarmos a pisar “caminhos andados”.
Não perguntei quais. Dentro do seu BMW fomos parar aos MOINHOS DO VOUGA, entre Águas Boas e Quintela da Lapa. Fiquei boquiaberto. Recebidos e guiados pela simpática D. Catarina, jovem ainda, inteirei-me do empreendimento turístico que nasceu naqueles terrenos, aqueles que, cobertos de mato, tantas vezes, pisámos de perna rija e firme. Não resisti a fazer um pequeno vídeo (cujo link anexo em rodapé) e a alinhavar esta meia dúzia de linhas, à laia de notícia. Aprecio tudo quanto se faz neste interior desertificado e felicito todos os concidadãos que, de uma maneira ou de outra, dão o seu contributo para que Portugal seja um país que não desapareça da História, por falta de gente e povoamento.
Não conheço os proprietários, portanto não retribuo qualquer favor. Reconheço é que, inteligentemente, eles são conhecedores do stresse das grandes cidades, conhecedores das potencialidades oferecidas pelas belezas da serra, conhecedores deste Portugal que temos e, por isso, resolveram investir num projeto que se almeja promissor e revitalizador do organismo serrano que, ano após ano, século após século, viu o seu sangue esvair-se para os grandes centros urbanos, deixando-o anémico, sem vida, moribundo. Eis um tónico. Oxalá venham mais. Aqui também é Portugal