UM REVOLUCIONÁRIO
Um dedo revolucionário. Desenvolvido na posição oponível aos demais dedos das mãos, foi graças a ele que os HOMINÍDEOS puderam fazer a sua caminhada evolutiva, puderam subir às árvores e, solidário com os demais companheiros na sua função preênsil, permitir que esses nossos antepassados (e outros) se deslocassem de ramo em ramo, ora alimentando-se de folhas e frutos, ora defendendo-se dos seus atacantes no solo, ora permitiram o “fabrico” de instrumentos de trabalho, de ataque e defesa.
UM DEDO REVOLUCUIONÁRIO
Em criança eu estava longe de saber a importância que este DEDO teve no seu longo percurso hominídeo. Mas grande importância constatei eu que ele tinha, nos meados do século XX, por este Portugal em fora. Era só ver as mães (caso curioso, só as mães) nas horas vagas dos trabalhos agrícolas, por norma num sítio soalheiro e de conversa, a catar os filhos. Dedos a desbravar caminho na floresta cabeluda, elas espiolhavam minuciosamente as trunfas das crias e era um regalo caçar esses parasitas, denunciados pela coceira e pelas lêndeas brancas. Cá está um. Fincavam as unhas dos dois POLEGARES em posição, entalavam a fera e “zás”. Ouvia-se um pequeno estalido e, entre aquelas talas de queratina, mais não restava do que a pelica espalmada e listada de um PIOLHO, sempre de mistura com o sangue que ele, na sua condição de parasita, tinha sugado da vítima hospitaleira. Era isso. A mulher camponesa ignorava o verniz das unhas e, por momentos, via-as tingidas de vermelho, com o sangue do seu sangue.
Meados do século XX. Um revolucionário, o dedo POLEGAR da mão direita e da mão esquerda. E, digo-o com acinte, se na sua trajetória de vida, ambos passaram pela fase de espalmarem PIOLHOS e PULGAS entre as unhas de que são dotados, neste princípio do século XXI outros trabalhos lhes estavam destinados.
Desta feita, unhas em descanso, passada a fase em que, na vida, os POBRES eram demonstradamente RICOS coabitando com tão abundante fauna, a tarefa cabe agora à polpa da frente, aquela que contém as impressões digitais. Os mais dedos das mãos seguram o SMARPHONE (ou equipamento semelhante) e os DOIS parceiros de sempre, os POLEGARES, libertos das pulgas e dos piolhos, matraqueiam letras e números, escrevendo mensagens, dando vida e conversa no SOALHEIRO dos tempos atuais, pois à pressa (em pulgas e desta arte) está alguém algures, à espera de resposta, de chamamento ou, sabe-se lá, de descarte.
É isso. O POLEGAR é um revolucionário, em numerologia e abecedário.
Mas, para além de ter matado parasitas tais, aqueles que faziam os POBRES serem RICOS nessa espécie de gado doméstico, o POLEGAR averba no seu “curriculum vitae” o símbolo da MORTE e da VIDA. Não é necessário ser historiador. Basta lembrar o destino do gladiador vencido nos círculos romanos. Virado para cima, nas mãos da multidão e do imperador, a sua vida prosseguia. Virado para baixo, era morte certa. Uma dor de coração. Estranha humanidade. Estranha civilização.
E, por falar em coração, o POLEGAR, só ou acompanhado com o indicador, presta-se a fazer esse SIMBOLO DO AMOR, tão em moda nos dias que correm. Neste mundo da escrita digital (sem caneta, tinta e papel) basta escrever a palavra CORAÇÃO e logo salta esse “emoji” para a linha de escrita, como se fosse nesse órgão palpitante que realmente reside esse sentimento humano. Não reside. Tão NOBRE sentimento tem por CASTELO o amuralhado e labiríntico cérebro, acompanhado das demais emoções humanas. Assim o demonstrou a ciência. E, se estou certo, pelo caminho ficou o estômago como sede que foi do afeto. A lembrar isso ficou o adágio, sempre por perto: “com papas e bolos se enganam os tolos”.
Pois. Mas a ciência e esse saber popular não são para aqui chamados. O que interessa é deixar clara a importância do POLEGAR e a sua posição oponível aos demais dedos da mão. E deixo de fora o vulgar símbolo de “GOSTO” e suas variantes do Facebook, para perguntar: quem não sabe que o polegar e o indicador, unidos nas pontas, assumem, a qualquer momento, a função de pinça, de alicate ou ferramenta semelhante, em qualquer emergência? Unem-se e, de pronto, “pegam” num objeto manipulável, v.g. uma areia da praia, uma pilha vazia ou cheia, um alfinete ou uma agulha de costureira caídos no chão. Coisas leves. Mas, em conjunto, à laia de punho fechado em torno de algo, não há ferramenta, cabo de enxada, de picareta, marra e marreta de pedreiro, malho de ferreiro, martelo ou maceta de canteiro que escape a essa garra preênsil desenvolvida na longínqua caminhada arborícola.
E quem é que, à beira de um penedal, esquece a sinfonia tocada pelo tilintar da marra a martelar no guilho, empunhada por mãos de mestre, arte herdada de avô, pai e filho, a fatiar um penedo para cantaria? Melhor, quem é que esquece o “tim...tim…tim…tim” alternado do pico a desbastar a pedra e da maceta a bater no ponteiro naquele ato de esquadrinhar porpianho para uma moradia? Sinfonia de saber, de música e de suor, tocada por profissionais do mesmo ofício, até ao remate das paredes e ramo em cima, sinal de contrato assumido.
Mas, às vezes, não. Se o “lúzio parava santioso”(a) e passava por ali uma “morrasca de pomplinas gidásticas”(b) e metia conversa com o aprendiz de canteiro, despertando nele o desejo de ambos “lastirem prás fianhas” (c), este (cujos saberes geográficos se ficavam pelos mapas dos livros da 4ª classe e pelos horizontes dos montes a perder de vista), mal ela virava costas, levantava a crista e viajava até “segóvia” para satisfazer os impulsos da idade. Na viagem, empunhando a sua maceta, um consolo, uma beleza, a solo, consumava-se, consumia-se e perdia-se ali o milenar milagre da natureza.
Deixada a selva, secundarizada essa fase primeva, o polegar e indicador juntos aprenderam a ler, a escrever e a comunicar. Ambos unidos, além de servirem o alfabeto gestual, em forma de “o”, podem também assumir foros de mensagem ofensiva, e menorizante, isto é, um “ZERO À ESQUERDA”, senão mais ofensivo ainda, consoante. Para uns, esse gesto é uma provocação, uma ofensa impensável. Para outros, sabe-se lá (ai o que penso e vejo) na mesma posição, o significado de um consolador desejo.
Um revolucionário, o POLEGAR, para o bem e para o mal. Oponível aos demais dedos da mão, está sempre disponível para o trabalho, para o amor e para a ofensa.
E se a sua posição na mão contribuiu para evolução humana, permitindo que os nossos antepassados fizessem habitação nas árvores, saltando de ramo em ramo (assim o dizem a natureza, a anatomia e a história), a mão que na árvore agilmente se pendurou nesse passado distante, fase que aqui se não cala, é a mesma que, para sua glória, trôpega se apoia agora num cajado ou numa bengala.
Um revolucionário, o POLEGAR. No chão e no ar.
NOTAS: (a), (b) e (c) “Verbo dos Pedreiros” de Cujó, semelhantemente ao “Verbo dos Arguinas” de Oliveira do Hospital. Feito o cotejo, deixei larga cópia desses vocábulos nos meus livros “Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva” e no “Mosteiro da Ermida”.