Trilhos Serranos

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quarta, 11 dezembro 2019 15:36

DR. FERNANDO AMARAL, EX-PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

Escrito por 

«LANTERNA DE DIÓGENES»

Em 2004, com o subtítulo em epígrafe, deixei no meu velho site “trilhos serranos.com” o texto que se segue. As razões da sua “migração”, hoje mesmo, para este espaço, (dezembro de 2019) estão expressas na nota de rodapé nº2, para onde remeto o leitor. Dado versar sobre um cidadão de Lamego - UM HOMEM - que muito admirei, em vida, entendi que era tempo de, em sua memória, trazer novamente estas linhas à luz do dia, mesmo sem recurso à «Lanterna de DIÓGENES». Assim:

lanterna-livros

“Durante a minha caminhada pela ágora-mundi com a «Lanterna de Diógenes» na mão (já lá vão 65 anos) encontrei alguns homens que admirei, que admiro e alguns deles a quem nunca pude, sequer, apertar a mão. Comecei por conhecê-los na minha aldeia, quando, jovem, nada sabia da lanterna do cínico filósofo, mas era catedrático no lampião que me mostrava o caminho para o moinho, para as leiras a regar o milho, para o palheiro a dar a ceia aos gados.

Homens rudes, mãos calejadas, poucas falas, a sua postura, contudo, impunha respeito e distância aos mais novos. Mas não eram bichos monteses desprovidos de solidariedade e de ajuda, se pedida e necessária fosse.

Com sete ou oitos anos de idade, guardando gado na serra, descalço, um chantão enterrou-se-me num pé. Dores terríveis, corro ao “tio” Samuel, que andava perto. Um desses homens de respeito, de manter à distância. Conto-lhe. Anda cá meu menino, senta-te aí, levanta o pé. Obedeci. Ajoelhado à minha frente, com uma mão segura o meu pé e com a outra, dedos polegar e indicador postos em tenaz, aperta a pele e com os dentes arranca o estoque que me feria. Nunca mais esqueci. Todos os natais,  quando beijava o pé do Menino Jesus, sempre muito limpinho, lembrava-me do homem que, para me aliviar da dor, me tinha beijado o pé sujo de chão e de sangue. Era um homem bom e solidário.

Mas a que propósito me lembrei eu desse episódio, agora, depois de tantos anos passados? A que propósito me lembrei do “lampião” que me mostrava o caminho para o moinho, para as regas e empalho para os gados? Me lembrei do “tanchão” que, enterrado até ao osso, partido ao rés  da sola do pé me fazia gritar de dor? Me lembrei de um homem adulto e inteligente que, numa emergência e com recursos próprios, me aliviou do estoque que me feria, facto devido a muito coisa, mas também à minha imprevidência de garoto? Porque me lembrei da Lanterna de Diógenes”?

Respondo.

Foi no decorrer da leitura que só agora fiz do livro do Dr. Fernando Amaral, publicado o ano passado: “Águas Passadas: Visita à Estónia, Cancelada”. Livro que trata, de forma esclarecedora, tudo o que aconteceu no ano de 1987, relacionado com a visita oficial que uma delegação parlamentar, por si chefiada, fez à União Soviética. 

Ciente de tudo quanto - antes, durante e depois -  envolveu o evento, badaladas que foram, ao tempo, nos media, as posições estremes do Governo e do Parlamento sobre o caso, ele teria deixado para a História, presumo eu, o cabal esclarecimento dos factos. Mas eis que a recente “Autobiografia Política” ( primeiro volume) do prof. Cavaco Silva veio ressuscitar a questão, fazendo eco, 15 anos depois, do ponto de vista do Governo a que presidia e, por isso mesmo, a fim de, seguramente, reforçar essa tese, escusando-se a ficar pelos dados factuais do problema, entendeu rabiscar os traços que julga adequados ao perfil  psicológico do, então, Presidente da Assembleia da República:

Dr. Fernando Amaral«(...) um respeitado advogado de Lamego, era visto no partido como uma pessoa educada, de discurso gongórico e pessoalmente muito sensível, mas um pouco ingénuo politicamente, gostando de receber aplausos vindos dos partidos da oposição».

 Cá por cima, pelas Beiras, diz-se que «quem não se sente, não é filho de boa gente». Mas estou certo não serem estas picardias que levaram o Dr. Fernando Amaral a verter em livro a sua versão dos acontecimentos. Foi sim por estar convencido que o Governo agiu sem sentido de Estado e sem respeito pelo “sentido da solidariedade institucional” princípios que lhe são caros.

 Admiro, há muito, o Dr. Fernando Amaral, apesar de lhe ter apertado a mão uma só vez, numa cerimónia que teve lugar no Centro Municipal de Cultura de Castro Daire.

Sabê-lo, quase conterrâneo; sabê-lo eleito para a Assembleia da República por um Partido que não era o meu; vê-lo presidente desse órgão de soberania e assumir esse cargo com imparcialidade, sabedoria e educação; ouvir as suas intervenções parlamentares; saborear os seus discursos empolgantes, empolgados e literários, tudo encantava este aprendiz de feiticeiro já adulto, mas que nas pessoas sabedoras, independentemente dos seus ideários políticos ou religiosos, sempre procurou arrimo. E a tudo isso não era alheio o facto de eu saber que também ele  «subira a vida a pulso». 

Só agora li, como disse acima, o seu livro “Águas Passadas” a começar, claro está, pela dedicatória que fez “À Esperançosa juventude da Novena de seus netos”, todos ali nomeados. Um poema, nome a nome, verso a verso, dístico, terceto, quase soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, amor à verdade, amor à família, amor ao país, amor às instituições democráticas, amor ao futuro, lição de independência política, intelectual e moral para netos seus e nossos, grão de milho que, fugindo ao granel da moega, saltita sobre a mó e se recusa a ser moído, se recusa a deixar que façam de si farinha.

Não. Para mim, não são «Águas Passadas». Aberta a comporta, são águas agitadas, águas que movem os moinhos da inteligência, da argumentação lúcida e clara, dos afetos, da educação, da urbanidade, tratando com amizade e gentileza até aqueles que, neste meu estilo serrano, mereciam ser tratados à Malhadinhas num varrer de fim de feira. Não são águas passadas. São lições presentes e futuras e bom foi escrevê-las, já que, nada leva «à prescrição da verdade, nem da necessidade de esclarecer o que então se passara».

 A verdade é para ser dita, lida e vivida. Em todo o tempo. Em todo o lugar. Em qualquer função. E se ser “um respeitado advogado de Lamego” significa um respeitável cidadão de província que ascendeu à 2ª figura do Estado; se “ser educado” é patente de marca; “ser gongórico” é ser culto e eloquente; “ser ingénuo politicamente” é estar na política sem tabus nem calculismos imediatos ou futuros; se “receber aplausos da oposição” é saber agradecer a distinção que lhe tributam os pares; se “ser sensível” é “andar perdido entre a gente”, conhecer as suas necessidades, captar o seu sentir, os seus anseios e ser solidário com ela quando se governa? então, entre duas versões da mesma questão - «Visita à Estónia - Cancelada», eu opto, claramente, por aquela que, além de se apresentar apoiada em substancial prova documental, é assinada pelo Dr. Fernando Amaral, ex-presidente da Assembleia da República, homem que reúne todos esses predicados e cuja verticalidade, educação e solidariedade admiro, ao contrário de alguns pares de direito que perderam a direitura, vergando a cerviz às conveniências do momento. Educado e de etiqueta, sim senhor! Incapaz de, em qualquer circunstância, mastigar um bolo de boca aberta. Podia ser algarvio, mas dá-se o caso de ser beirão.

Mas na senda do seu estilo, na sua forma de estar na vida, quem vir neste seu  livro apenas um documento histórico a lançar luz sobre  o evento em apreço, não vê tudo. Quem vir na dedicatória de entrada, dirigida aos seus netos,  apenas nove nomes (há muito boa gente que nas pessoas vê apenas números) sem dela extrair a ternura e a verdade que se quer projetada nas gerações futuras a começar pelos herdeiros, a bem da relação entre os homens e os povos, não entenderá o que é repelir energicamente um chantão espetado no carácter de uma pessoa de bem, numa pessoa de palavra que, por solidariedade institucional, e nas funções do 2º magistrado da Nação, teve, numa emergência, de dar “o dito por não dito”. Quanto lhe doeu! Mas é nesses momentos cruciais da vida que certos homens marcam a diferença. O Dr. Fernando Amaral, fê-lo. HOMEM que, agindo com  sentido de Estado “no decurso da sua vida sempre procurou servir ideias e não servir Senhores, por mais respeitáveis que fossem”.

Dito e feito”

 

 

NOTA 1: cf. Texto alojado no site antigo, onde permanece aberto à leitura.

NOTA 2: Procedi hoje à sua “migração” para este site “ativo” por três razões. A primeira por aludir a Diógenes e a sua dificuldade em “encontrar um homem” na cidade de Atenas. A segunda, por que estamos na “quadra festiva do Natal” e eu ter aludido ao “beija pé do Menino” quando o “tio” Samuel Duarte me tirou do pé o chantão com os dentes. A terceira, por que, olhando o mundo de hoje e os políticos que o governam, desde os grandes países, às pequenas autarquias, bem apetece imitar DIÓGENES e cirandar pelas ruas “à procura de um homem que dignifique o lugar que ocupa”, seja ele qual for. Um HOMEM cuja AUTORIDADE MORAL ofusca ou apaga o fugaz brilho do PODER

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.