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domingo, 08 dezembro 2019 20:40

FEIJÃO-MACADO

Escrito por 

TETE - CAFÉ DOMINÓ

Aquilino Ribeiro escreveu algures que o “escritor” (porque escreve muito) pode correr o risco de se plagiar a si mesmo. É o que estou a fazer relativamente a mim próprio, já que o texto que se segue foi publicado em 2015, no mural do Facebook: “PICADAS DE TETE”. É de lá que o transcrevo para este meu site, com ligeiras alterações, já que, não o tendo feito então, considero que ele tem aqui cabimento.


“Começo por esclarecer que estive, como civil, na cidade de Tete e pisei as "picadas" do distrito dentro de Land Rovers dos Correios, liderando uma equipa de guarda-fios nativos, cuja responsabilidade era mantermos as "comunicações" em ordem. 

Os telefones da época eram de magneto e manivela, ligados a uma mesa de PBX, instalada no edifício dos Correios, ali mesmo a beijar o Zambeze, PBX que era a "central de comunicações" a cargo de duas telefonistas que se revezavam por turno, a meter e a tirar as cavilhas no painel luminoso que tinham à sua frente. Cada luzinha acesa correspondia uma chamada, ou pedido de ligação. Uma dessas telefonistas chamava-se Ema e residia no Matundo, uma menina mulata bem bonita e aproximadamente da minha idade. Ela foi alvo de muitos piropos meu tão próprios do tempo, sem nunca levar a mal.

Um dia, regressado do mato com uma quantidade bastante de penugem (esporos) de feijão-macaco recolhido num recipiente, resolvi pregar uma partida aos meus amigos que só pisavam o alcatrão da cidade e levavam a vida a levantar-se da cadeira da repartição onde exerciam funções e a sentar-se na cadeira do Café Dominó, onde nos encontrávamos frequentemente.


Quem teve a experiência de ser "mordido" pelo "feijão-macaco" entenderá bem aquilo que digo. 

Quem não teve essa experiência, aqui fica uma explicação: o feijão-macaco criava-se dentro de uma espécie de vagem coberta de penugem (esporos) tipo agulha, que se despegava dela ao mais pequeno toque ou sopro de vento. Planta selvagem gregária, a imagem que me ocorre para melhor entendimento, é uma plantação de milharada feita nos campos de regadio e ai daquele que, sem dar por isso, penetrasse em tal plantação. Saía dali, como me aconteceu a mim e à minha equipa, a corrermos todos para o caminho mais próximo, tirar a roupa e rebolarmo-nos no chão, tal qual os asininos e equinos, com vista a libertarmo-nos da comichão com a ajuda daquele pó fino vermelho, tão característico das terras de África, que só na cor difere do pó de talco. Sem rios e água por perto era a solução. Aquilo só visto. Se tivesse sido filmado, tornado vídeo no Facebook (algo não sonhado à epoca) teríamos  seguramente um “viral” de sucesso. Dois europeus a “espolinharrm-se” no pó vermelho da “picada” e os restantes membros da equipa, nativos, conhecedores das plantas e experimentados na relação delas com o homem, a rirem-se da nossa figura e inexperiência.

Mas  foi essa experiência vivida que despertou na imaginação a ideia de recolher alguns desses esporos (devo lembrar que eles não tinham efeitos na ponta dos dedos e palma das mãos, mas somente nas outras partes da pele) e engendrar a tal patifaria. Levava o recipiente na algibeira para o café, metia nele o dedo anelar e, à chegada do amigo, cumprimentava-o estendendo-lhe a mão de modo que o meu dedo lhe chegasse ao pulso do lado interior. 

E chegava outro. O acto repetia-se. Daí a nadinha todos estavam a coçar o pulso e a saber que algum dos amigos fora o autor da partida. Não era difícil adivinhar. Só quem andava pelo mato. Não levavam a mal, iam aos lavabos e ali deixavam os efeitos de uma brincadeira que, parecendo de mau gosto (e era) a juventude e a amizade tudo esquecia. 

Mas, em boa verdade o digo, não fora isso e os "mangas de alpaca" nunca saberiam o que era o "feijão macaco", embora ouvissem falar dele.

Hoje, longe dessa idade, são outras as comichões que me apoquentam. E não são para risadas, como eram as do amigo Cardoso, do amigo Pereira, do amigo Palma, este último, vim a sabê-lo muito mais tarde, tinha sido colega de estudo, em Vila Pery, de uma menina - MAFALDA -  que veio a ser minha a esposa. 


Pegadas de vida, nas picadas dela e, neste caso, nas picadas do "feijão macaco", em terras de Tete. Ali, entre aquela cidade e o Zóbué”.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.