Trilhos Serranos

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sábado, 12 outubro 2019 16:58

A DENTADA

Escrito por 

CIÊNCIA, TÉCNICA E ARTE

Não há fome que não dê em fartura”. Tal diz a sabedoria popular - altos pensamentos - e cujo acerto se vê confirmado na lonjura dos tempos.

Cá para mim, nos que respeita a dentes, em tempos antigos (não tão antigos assim) a natureza impunha os seus ditames. Os dentes nasciam e caíam na idade própria. Quisesse-se ou não se quisesse, primeiro, os “dentes do leite”, depois os “dentes adultos” e, finalmente, os “dentes do siso”, mesmo que “siso” não houvesse.

 

Digamos, aqui p’ra gente, que os primeiros são os soldados destinados a integrar um pelotão da frente, alinhado em parada, (meia lua mal desenhada) prontos para recruta. E esta acabada, vida curta (duração que vai dos seis e os doze anos, consoante), respondem ao toque de chamada os soldados prontos, dispostos a enfrentar a cada instante, toda a espécie de inimigo que lhes apareça por diante. E, aos 17-18 anos, todos em marcha, é uma certeza, as leis da natureza obrigam a juntar-se mais quatro: são os dentes do siso. E todos, a toque de caixa, marcham em direção ao inferno ou paraíso. Mais inferno que paraíso, estou em dizer.

3 - CópiaNo percurso há muito que roer. E para tal saber, pela história puxo. Nada de luxo, para acertar com arame a dentadura serrilhada. Se nasceu e cresceu alinhada, muito bem. De contrário serrilhada, tal como nasceu morre também, pois não se recorre ainda a técnica do arame, nem “arame” existe no mealheiro doméstico para tal luxo pagar. E não temo dizer que nas terras do demo, seja criança, homem ou mulher, tudo é como deus quer. O dente dói? Há que aguentar ou então, trazer até hoje o tempo que já foi: bochechar com aguardente, ou, como antigamente (tal reza a conquista romana) bochechar com urina humana. Isso mesmo. Boca aberta de espanto? Pois sim, se ri pelo que digo, e hoje tem um sorriso de encanto, mergulhe comigo na história e verá partir da Ibéria, em direção a Roma, digo coisa séria (coisa que ao conhecimento soma) capital do império, ânforas e ânforas cheias de urina para todas aquelas gentes, senadores, legionários e tribunos, cuidarem dos seus dentes. Direito ou torto este mundo, não é opinião minha, qualquer ideia pindérica, isso nos diz o saber profundo de valor: se hoje é o vinho do Porto o nosso embaixador, tempos houve que foi a urina ibérica.

E passaram séculos. Nasceu e morreu muita gente e animais. E com tal higiene dentária incorporada na aprendizagem, crescia-se e morria-se segundo as leis naturais. Sem pasta dentífrica por perto e ignorando-se totalmente o que era uma escova de dentes, a cárie (a pedra) ia, dia a dia, exercendo o seu poder demolidor na dentadura e, por este Portugal afora, vilas e aldeias perdidas entre montes, gente a roer constantemente uma vida dura, raramente chegava a idade avançada com todos os dentes na boca, quando muito, um ou outro à dependura.

E era assim. Se os dentes doíam (e não era coisa pouca) aguentavam-se dores. Mas passados os limites, o barbeiro, o ferreiro ou qualquer jeitoso do sítio que soubesse manejar um alicate ou uma turquês, era uma vez um dente! Ele, num repente, punha fim ao sofrimento, dava termo à guerra. E, dessa maneira, um soldado desertava da fileira do pelotão inicial e, em vão, ficava o espaço. Os restantes, enfileirados em torno, firmes que nem aço, que roessem sozinhos a vida, a côdea de milho, rija que nem corno. E, feita a operação, na barbearia, na forja ou no campo, junto de uma saibreira abrigada do vento, o camponês prosseguia a caminhada, ano após ano, até envelhecer e morrer com mais ou menos sofrimento. E se, um após outro, cada soldado desertava, e deixava vazia a parada, a boca desdentada, o idoso, dia a dia, nesta vida dura, fazia da gengiva dentadura, tão calejada quanto a mão que granjeava o pão que comia.

Mas, “atrás dos tempos, tempos vêm”, também diz a popular sabedoria. E, passado que foi tanto século, tanto ano, tanto dia, eis que, nesta demorada e extraordinária caminhada da história, chegaram, com glória, às vilas e cidades do país, os especialistas de “medicina dentária”. Um a um. Estamos no século XXI.

E adeus “barbeiroferreiro, ou jeitoso” de antigamente. Hoje os dentistas são tais e tantos com consultório aberto aqui e ali, que toda a gente se dá ao luxo de optar pelo que fica mais perto, ou que dá sinais de melhor garantia. E não se vai ao consultório só para tirar o dente que dói. Não. Quando um dente se vai e outro já se foi, chiça! vai-se buscar uma dentadura postiça inteira, pois se mastigar é preciso não fica mal a ninguém um rasgado sorriso, à maneira. O visual conta, coisa de monta. Estamos no tempo do império protésico. As próteses superior e inferior substituíram a dor e o efeito anestésico, da aguardente, da urina e do grão de sal metido no dente lorcado para o estoirar semelhantemente a um penedo. Chegou, enfim, a civilização. Perdeu-se o medo. Mudaram-se os hábitos e a educação. Cuida-se do visual e, pois então, vulgarizou-se em Portugal, o sorriso enganador, enganou-se a própria idade. Os lábios mantêm-se firmes no lugar e a cavidade da boca não altera a forma, o assobio nem o falar. Mesmo com demora, os tempos históricos sopraram uma certeza: a ciência, a técnica e a arte venceram a natureza, por agora.

1 - CópiaPois. E com tanto dentista à porta, podendo pagar a consulta e a dentadura, um certo senhor resolveu testar qual deles era o melhor. Desdentado, já com idade de descer à cova, foi a um, foi a outro e aceitou que lhe colassem ao palato uma dentadura nova. E seguiu-se o período de adaptação. Acerta hoje, acerta amanhã, mais para aqui, mais para ali, tira, põe, raspa que raspa, burila que burila, não havia maneira da dentadura exercer, sem dor, a função de mastigar. Mau, mau, senhor doutor!

E o idoso já cansado de ir e vir, de repetir o gesto, homem de humor inteligente e lesto, assobiando e rindo, resolveu dar por findo o serviço iniciado. E decidido a rejeitar a dentadura, explicando a razão da rejeição sem a pagar, meteu no bolso uma castanha seca, pilada, disposto roê-la, à frente do especialista, de uma só assentada.

- Vamos lá ver isso. Desta vez vai ficar bem.

- Assim o espero.

2 - CópiaTira, põe, raspa que raspa, burila que burila, já está.

- Pronto, veja lá.

Serviço terminado, o cliente fecha a boca, aperta as maxilas e, sem mais delongas, ripou da castanha, meteu-a na boca, pôs-se a mastigá-la e disse:

- Vamos ao teste.

Movendo a castanha com a língua, de lado para lado, calado, o especialista assistia estupefacto. Por essa não esperava ele. Mas aguardou esperançado de ver o seu serviço aprovado. Nele tinha posto não só a ciência, a técnica e a arte aprendida, mas também toda a sua experiência de vida. Só nunca lhe tinha entrado no consultório um cliente com tal repertório. Coisa que preste, uma castanha pilada, dura, para fazer o teste à dentadura. Homessa! Deu-lhe tempo. E, de repente, ele, mastigando, levantou-se da cadeira e sentenciou, à sua maneira de camponês:

- Está aprovado. Desta, foi de vez.

Pagou. Despediu-se, foi à vida. E a dentadura acamou de tal sorte que lhe deu a esperança de o servir até à morte.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.