Digamos, aqui p’ra gente, que os primeiros são os soldados destinados a integrar um pelotão da frente, alinhado em parada, (meia lua mal desenhada) prontos para recruta. E esta acabada, vida curta (duração que vai dos seis e os doze anos, consoante), respondem ao toque de chamada os soldados prontos, dispostos a enfrentar a cada instante, toda a espécie de inimigo que lhes apareça por diante. E, aos 17-18 anos, todos em marcha, é uma certeza, as leis da natureza obrigam a juntar-se mais quatro: são os dentes do siso. E todos, a toque de caixa, marcham em direção ao inferno ou paraíso. Mais inferno que paraíso, estou em dizer.
No percurso há muito que roer. E para tal saber, pela história puxo. Nada de luxo, para acertar com arame a dentadura serrilhada. Se nasceu e cresceu alinhada, muito bem. De contrário serrilhada, tal como nasceu morre também, pois não se recorre ainda a técnica do arame, nem “arame” existe no mealheiro doméstico para tal luxo pagar. E não temo dizer que nas terras do demo, seja criança, homem ou mulher, tudo é como deus quer. O dente dói? Há que aguentar ou então, trazer até hoje o tempo que já foi: bochechar com aguardente, ou, como antigamente (tal reza a conquista romana) bochechar com urina humana. Isso mesmo. Boca aberta de espanto? Pois sim, se ri pelo que digo, e hoje tem um sorriso de encanto, mergulhe comigo na história e verá partir da Ibéria, em direção a Roma, digo coisa séria (coisa que ao conhecimento soma) capital do império, ânforas e ânforas cheias de urina para todas aquelas gentes, senadores, legionários e tribunos, cuidarem dos seus dentes. Direito ou torto este mundo, não é opinião minha, qualquer ideia pindérica, isso nos diz o saber profundo de valor: se hoje é o vinho do Porto o nosso embaixador, tempos houve que foi a urina ibérica.
E passaram séculos. Nasceu e morreu muita gente e animais. E com tal higiene dentária incorporada na aprendizagem, crescia-se e morria-se segundo as leis naturais. Sem pasta dentífrica por perto e ignorando-se totalmente o que era uma escova de dentes, a cárie (a pedra) ia, dia a dia, exercendo o seu poder demolidor na dentadura e, por este Portugal afora, vilas e aldeias perdidas entre montes, gente a roer constantemente uma vida dura, raramente chegava a idade avançada com todos os dentes na boca, quando muito, um ou outro à dependura.
E era assim. Se os dentes doíam (e não era coisa pouca) aguentavam-se dores. Mas passados os limites, o barbeiro, o ferreiro ou qualquer jeitoso do sítio que soubesse manejar um alicate ou uma turquês, era uma vez um dente! Ele, num repente, punha fim ao sofrimento, dava termo à guerra. E, dessa maneira, um soldado desertava da fileira do pelotão inicial e, em vão, ficava o espaço. Os restantes, enfileirados em torno, firmes que nem aço, que roessem sozinhos a vida, a côdea de milho, rija que nem corno. E, feita a operação, na barbearia, na forja ou no campo, junto de uma saibreira abrigada do vento, o camponês prosseguia a caminhada, ano após ano, até envelhecer e morrer com mais ou menos sofrimento. E se, um após outro, cada soldado desertava, e deixava vazia a parada, a boca desdentada, o idoso, dia a dia, nesta vida dura, fazia da gengiva dentadura, tão calejada quanto a mão que granjeava o pão que comia.
Mas, “atrás dos tempos, tempos vêm”, também diz a popular sabedoria. E, passado que foi tanto século, tanto ano, tanto dia, eis que, nesta demorada e extraordinária caminhada da história, chegaram, com glória, às vilas e cidades do país, os especialistas de “medicina dentária”. Um a um. Estamos no século XXI.
E adeus “barbeiro, ferreiro, ou jeitoso” de antigamente. Hoje os dentistas são tais e tantos com consultório aberto aqui e ali, que toda a gente se dá ao luxo de optar pelo que fica mais perto, ou que dá sinais de melhor garantia. E não se vai ao consultório só para tirar o dente que dói. Não. Quando um dente se vai e outro já se foi, chiça! vai-se buscar uma dentadura postiça inteira, pois se mastigar é preciso não fica mal a ninguém um rasgado sorriso, à maneira. O visual conta, coisa de monta. Estamos no tempo do império protésico. As próteses superior e inferior substituíram a dor e o efeito anestésico, da aguardente, da urina e do grão de sal metido no dente lorcado para o estoirar semelhantemente a um penedo. Chegou, enfim, a civilização. Perdeu-se o medo. Mudaram-se os hábitos e a educação. Cuida-se do visual e, pois então, vulgarizou-se em Portugal, o sorriso enganador, enganou-se a própria idade. Os lábios mantêm-se firmes no lugar e a cavidade da boca não altera a forma, o assobio nem o falar. Mesmo com demora, os tempos históricos sopraram uma certeza: a ciência, a técnica e a arte venceram a natureza, por agora.
Pois. E com tanto dentista à porta, podendo pagar a consulta e a dentadura, um certo senhor resolveu testar qual deles era o melhor. Desdentado, já com idade de descer à cova, foi a um, foi a outro e aceitou que lhe colassem ao palato uma dentadura nova. E seguiu-se o período de adaptação. Acerta hoje, acerta amanhã, mais para aqui, mais para ali, tira, põe, raspa que raspa, burila que burila, não havia maneira da dentadura exercer, sem dor, a função de mastigar. Mau, mau, senhor doutor!
E o idoso já cansado de ir e vir, de repetir o gesto, homem de humor inteligente e lesto, assobiando e rindo, resolveu dar por findo o serviço iniciado. E decidido a rejeitar a dentadura, explicando a razão da rejeição sem a pagar, meteu no bolso uma castanha seca, pilada, disposto roê-la, à frente do especialista, de uma só assentada.
- Vamos lá ver isso. Desta vez vai ficar bem.
- Assim o espero.
Tira, põe, raspa que raspa, burila que burila, já está.
- Pronto, veja lá.
Serviço terminado, o cliente fecha a boca, aperta as maxilas e, sem mais delongas, ripou da castanha, meteu-a na boca, pôs-se a mastigá-la e disse:
- Vamos ao teste.
Movendo a castanha com a língua, de lado para lado, calado, o especialista assistia estupefacto. Por essa não esperava ele. Mas aguardou esperançado de ver o seu serviço aprovado. Nele tinha posto não só a ciência, a técnica e a arte aprendida, mas também toda a sua experiência de vida. Só nunca lhe tinha entrado no consultório um cliente com tal repertório. Coisa que preste, uma castanha pilada, dura, para fazer o teste à dentadura. Homessa! Deu-lhe tempo. E, de repente, ele, mastigando, levantou-se da cadeira e sentenciou, à sua maneira de camponês:
- Está aprovado. Desta, foi de vez.
Pagou. Despediu-se, foi à vida. E a dentadura acamou de tal sorte que lhe deu a esperança de o servir até à morte.